Saúde

Aprendi como fazer um aborto num mamão

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“Este é um útero grávido de 10 semanas”, disse Zoey Thill, segurando um mamão “grávido” do tamanho de um punho grande. “E isto”, ela acrescentou, gesticulando para a própria barriga de grávida, “é um útero grávido de 38 semanas”.

Thill, uma fornecedora de abortos de Nova York, estava explicando a anatomia do útero para um grupo de doze pessoas, no escritório do Brooklyn da Verso Books numa noite de segunda-feira. A parte mais estreita do mamão, onde ficava o cabo, é como o cérvix, ela disse. A parte mais larga do mamão é como a parte superior do útero conhecida como fundus – a parte que deveríamos tentar não perfurar com nossas ferramentas, quando, em alguns minutos, treinaríamos realizar um aborto por aspiração nos nossos próprios mamões.

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Mas se isso acontecesse sem querer, tudo bem, disse Thill. “Não vou criticar os perfuradores”, ela nos garantiu.

Thill nos levou até uma longa mesa no salão, onde vários mamões papaia estavam colocados em tecidos cirúrgicos. Depois de nos explicar as ferramentas que íamos usar – além daquelas que ela não tinha à disposição, o espéculo e o tenáculo – Thill demonstrou um aborto de primeiro trimestre no mamão que ela mostrou antes. Ela conversou com a “paciente” durante todo o processo, vendo como a pessoa estava se sentindo ao inserir um dedo no “cérvix”, depois imitando inserir o espéculo; ela fingiu aplicar a anestesia local e começou a inserir as hastes metálicas afuniladas que estavam na mesa uma por uma, para dilatar a abertura.

Quando o mamão estava totalmente “dilatado”, ela colocou um tubo plástico chamado cânula dentro dele e conectou o aspirador a vácuo manual, um aparelho que é tipo uma seringa plástica, sugando os conteúdos internos do mamão: o que, para o nosso treino, era a gravidez. Do começo ao fim, o procedimento não levou mais que três minutos.

Thil admirou as sementes no tubo plástico. “Esse aqui está muito bom.”

Aí era nossa vez. Em duplas, seguramos os mamões uns para os outros enquanto repetíamos o que ela tinha acabado de mostrar. Me senti um pouco nervosa, mesmo sabendo que estava treinando numa fruta, não numa pessoa. Thill segurou o mamão pra mim e depois que o dilatei, ela me lembrou como ligar o aspirador na cânula. Fechei as duas pequenas travas na ponta do instrumento, puxando a maçaneta na minha direção para criar sucção, e inseri gentilmente o tubo plástico – eu não queria ser a pessoa que ia perfurar o fundus do meu mamão.

Em um movimento fácil, girei o aspirador, sugando dezenas de sementes, surpresa e feliz de ver que minhas habilidades amadoras produziram o mesmo efeito. Ao meu lado, outras pessoas estavam fazendo o mesmo, satisfeitas com cada extração de sucesso. “Sim!”, as pessoas exclamavam.

“É ainda mais satisfatório quando é um aborto de verdade”, disse Thill.

papayas laid out on surgical pads
Todo mundo conseguiu extrair as sementes de seus mamões. (Cortesia da NYC for Abortion Rights)

Oficinas de mamão como a que Thill realizou não são novidade. Elas começaram em 2005, quando duas professoras da Universidade da Califórnia, San Francisco publicaram um artigo mostrando que, por seu tamanho e composição, um mamão pode servir como um “modelo de simulação” para treinar procedimentos de aborto de primeiro trimestre, conhecido como aspiração a vácuo manual, ou AVM. O Reproductive Health Access Project (RHAP) usou a pesquisa para criar um treinamento abrangente com mamões para estudantes de medicina, enfermeiras, e médicos, para ensinar a fornecer o procedimento numa clínica. Depois de cinco anos, o RHAP começou a oferecer a oficina para públicos leigos em medicina, e já realizou centenas delas.

Com as ameaças ao Roe v. Wade nos EUA aumentando, as oficinas têm ganhado mais atenção e encontrado um público mais amplo. No começo do mês, a ex-diretora da clínica de aborto de Nova Jersey Jen Moore Conrow e a fundadora da Abortion Access Front Lizz Winstead demostraram um aborto numa melancia (na época estava acontecendo um surto de salmonela em mamões) na convenção de políticas progressistas Netroots, para um público de cerca de 100 pessoas. Winstead disse que já participou de várias oficinas do RHAP, mas que aquela era a primeira vez que ela fazia o procedimento na frente de um grupo tão grande.

Lisa Maldonado, diretora executiva do RHAP, disse que nos últimos anos notou um aumento no número de pedidos para a organização realizar oficinas de mamão. E mais fornecedores de aborto individuais como Thill, que aprenderam a fazer abortos em mamões quando estudavam medicina, decidiram desenvolver oficinas similares e abri-las ao público. Descobri sobre o evento daquela segunda-feira no Facebook de Thill.

O objetivo das oficinas de mamão não é necessariamente ensinar pessoas a realizar o aborto por aspiração em casa. Thill disse que queria educar as pessoas sobre como é um procedimento de aborto – uma informação que ela acredita que não deveria ficar só entre os médicos – para ajudar a combater o medo, a desinformação e o estigma. “Só quero deixar claro que quando sair daqui, vocês não serão pessoas competentes para realizar abortos, então não façam nenhuma maluquice”, avisou Thill.

Thill points to the papaya's
Thill aponta para o “cérvix” do mamão. (Marie Solis)

Mais tarde, Thill me disse que esperava eventualmente realizar um evento para pessoas que fornecem abortos clandestinos; ela só não tinha encontrado um grupo do tipo ainda. (E Thill provavelmente não vai encontrar em Nova York, onde os direitos de aborto recentemente foram protegidos em lei estadual.) Mas sabemos que essas pessoas existem: Uma matéria de 2018 da California Sunday Magazine cobriu uma rede secreta de fornecedores realizando abortos fora do sistema de saúde dos EUA. E em seu novo livro Everything Below the Waist, Jennifer Block escreveu sobre participar de uma oficina de mamão secreta dada por um fornecedor clandestino, que pediu para não ser identificado por razões óbvias.

Ainda assim, a maioria das organizações e médicos que realizam as oficinas para leigos dizem que o objetivo principal é desmistificar o aborto, e mudar o jeito como apoiadores do procedimento o defendem.

“Vemos isso como uma estratégia para começar um diálogo realmente honesto sobre o que é aborto e o que não é, e derrubar o estigma”, disse Maldonado. “A oficina de mamão nos ajuda a fazer isso de maneira muito concreta, geralmente para pequenos grupos onde podemos responder todas as dúvidas que as pessoas possam ter.”

Thill focou parte da discussão daquela noite na linguagem: Em vez de chamar aborto por aspiração e outros procedimentos realizados mais tarde na gravidez de “aborto cirúrgico”, ela conselha as pessoas a usar o termo “aborto procedimental”. A palavra “cirúrgico”, argumentou Thill, sugere incisões, e implica que uma paciente que passa por um aborto assim terá um longo processo de recuperação pela frente. “Essa expressão faz as coisas parecerem mais dramáticas do que o necessário”, ela disse. “Além disso, não sou cirurgiã.”

Thill me disse que, num dos primeiros eventos que realizou, uma mulher que tinha passado por um aborto anos antes disse que mesmo não se arrependendo, ela ainda tinha sentimentos não-resolvidos sobre o procedimento. Depois de ver Thill demonstrar um aborto, ela disse que percebeu que esses sentimentos vinham do fato dela não saber o que tinha realmente acontecido com seu corpo.

Thill disse que espera que as oficinas sirvam o propósito duplo de empoderar pessoas que um dia podem passar por um aborto, e educar ativistas – além de médicos – para mudar nossa retórica sobre o procedimento, e fortalecer o argumento pelo direito das pessoas de ter acesso a ele. Ela imaginava se os participantes podem capturar um pouco da energia que ela sente extraindo sementes de frutas e usá-la para desfazer a seriedade e reverência que colocamos ao redor do procedimento.

Uma mulher que tinha passado por um aborto anos antes disse a Thill que mesmo não se arrependendo, ela ainda tinha sentimentos não-resolvidos sobre o procedimento. Depois de ver Thill demonstrar um aborto, ela disse que percebeu que esses sentimentos vinham do fato dela não saber o que tinha realmente acontecido com seu corpo.

“Quando mais eu puder minimizar o jeito como pensamos nisso como um procedimento ‘perigoso’, mais pessoas terão experiências melhores de aborto”, ela me disse no dia seguinte.

Depois que realizamos o aborto nos mamões, falei com uma participante chamada Nikki Blazek, uma ativista do grupo que organizou a oficina, o NYC for Abortion Rights. Ela me disse que fica incomodada com o jeito como a retórica conservadora pode se infiltrar no movimento pró-escolha, mencionando palavras como “seguro, legal e raro”, o que parece se desculpar pelo aborto em vez de defendê-lo. Ela disse que quando viu quão rápido e simples o procedimento era, isso só confirmou a crença dela de que aborto é uma coisa indiscutivelmente boa, e que ela e seus colegas ativistas não deveriam tentar amenizar sua linguagem para agradar os oponentes anti-escolha.

“Acredito num movimento de direitos de aborto sem remorsos, e em construir estratégias de base para lutar contra a intolerância e o fascismo”, Blazek disse mais tarde. “Participar da oficina me deixou muito mais confiante e preparada para lidar com a realidade cada vez mais assustadora dos nossos direitos sendo retirados.”

Enquanto a noite ia acabando, Thill encorajou os participantes a levar seus mamões pra casa. Uma das participantes levou dois ou três, que ela colocou na sua sacola ecológica junto com o livro que tinha levado: Handbook for a Post-Roe America de Robin Marty.

“Estou levando um mamão verde”, Blazek disse. “Vou fazer uma salada com pimentas tailandesas do meu jardim.”

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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