‘As Boas Maneiras’ é o filme de terror brasileiro que você não sabia que queria assistir

Tem filme de terror nacional de lobisomem nos cinemas e, mais impressionantemente, é muito, muito bom. Difícil de acreditar, sei como é. O cinema de gênero definha no Brasil, especialmente nas grandes salas. Então, você tem muitas boas razões para sair de casa e assistir As Boas Maneiras.

O filme é um delírio, uma alucinação, um sonho bom. Um conto de fadas bom, no caso, com altos elementos de horror. Tipo clássicos mesmo, de remeter a Frankenstein e outros monstros sagrados da Universal. O mestre José Mojica Marins, maior nome do nosso terror, sempre enalteceu o potencial de nossa cultura e folclore para esse tipo de cinema. Os diretores e roteiristas Marco Dutra e Juliana Rojas ouviram.

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Tá certo que o mito do lobisomem é bem europeu, mas os toques regionalistas fazem de As Boas Maneiras a experiência cinematográfica mais intensa, sensível, sensual e amedrontadora desde a inexplicável tensão d’O Som ao Redor. E claro que aqui estou falando de experiência de terror nos granes circuitos de cinema, porque nos festivais, especialmente internacionais e de curtas, temos expoentes brasileiros do horror: Rodrigo Aragão, Dennison Ramalho, Samuel Galli são alguns dos nomes desse secto. Marco e Juliana, que já haviam coescrito e codirigido o pesado Trabalhar Cansa, definitivamente entram para o seleto grupo com As Boas Maneiras.

O regozijo de ter um filme de lobisomem para chamar de meu é tanto, que precisei trocar uma palavra com a dupla de diretores para descobrir como os segredos nefastos por trás de As Boas Maneiras. Por email, Marco e Juliana me responderam a algumas perguntas.

Atenção: a entrevista contém spoilers do filme.

Marjorie Estiano e Isabél Zuaa em ‘As Boas Maneiras’.

VICE: Como aconteceu a aproximação de vocês dois, Marco e Juliana, e como foi o processo de escrever o roteiro e dirigir juntos?
Marco e Juliana: Nós nos conhecemos há mais de 18 anos, no início da faculdade de cinema. Um dos motivos da nossa aproximação foi o gosto em comum pelo cinema de gênero — filmes de horror, de ficção científica, musicais. Fizemos muitos exercícios e curtas juntos antes de decidir fazer em parceria nosso primeiro longa, Trabalhar Cansa. As Boas Maneiras e seu processo foi parecido com os nossos projetos anteriores: não dividimos tarefas, escrevemos juntos e acompanhamos ambos de perto todas as etapas do processo.

Por que existe um preconceito tão grande por parte do público brasileiro com relação a filmes de terror nacionais? As bilheterias de filmes de fora são enormes, mas ainda existe um bloqueio com o que é feito aqui. Talvez isso esteja ligado ao fato de serem produzidas pouquíssimas obras do gênero?
De maneira geral, existe uma resistência com filmes nacionais que não sejam comédias, mas isso tem começado a mudar. Quando estávamos na faculdade era estranho falar em produzir um filme de horror por aqui. O momento agora é outro: a produção é maior e mais variada. Temos cineastas como Gabriela Amaral Almeida, que lança O Animal Cordial no próximo mês, Rodrigo Aragão, que prepara seu quarto filme de horror, e Dennison Ramalho, que finaliza atualmente seu primeiro longa — isso sem falar no vasto universo dos curtas. As novas gerações sabem que não há motivo para impor limites à criatividade, e esperamos que o público reconheça cada vez mais essa variedade.

As Boas Maneiras aborda o mito do lobisomem de forma bem original, com muito folclore brasileiro inserido. Meu pai é de Minas Gerais e ouvi coisas parecidas com o que aconteceu com a personagem da Ana, por exemplo. Vocês poderiam falar um pouco mais sobre esse aspecto do filme?
Nós gostamos do lobisomem como criatura de cinema, mas sempre quisemos usar aspectos brasileiros do folclore, justamente porque esse é um mito que criou raízes aqui, aparecendo geralmente em histórias ligadas ao campo. Nosso filme se passa na cidade de São Paulo, mas Ana vem de Goiás e foi lá que ela primeiro teve contato com a criatura. Em nossa pesquisa, vimos que o lobisomem no Brasil surge muitas vezes como punição moral — uma resposta ao adultério, ao incesto, ao ato sexual com padres. Trouxemos alguns desses elementos pro filme. E tentamos trazer, também, o mundo do campo pra cidade, através da personagem Ana, da música sertaneja e das festas juninas. O livro Lobisomem: Assombração e Realidade, de Maria Tavares Lima, foi uma importante fonte de pesquisa.

O filme teve um grande impacto em mim — o final que, a meu ver, remeteu ao do clássico Frankenstein de 31, foi bem forte. Quais foram as maiores inspirações, tanto cinematográficas quanto de outras mídias?
Nós gostamos de ver filmes desde a infância e temos um repertório eclético. Nos inspiramos em outros cineastas, mas raramente usamos referências diretas. No caso de As Boas Maneiras, os filmes que compartilhamos e discutimos com a equipe foram as animações de Walt Disney e o trabalho conceitual de Mary Blair [artista e animadora] pro estúdio, especialmente em A Bela Adormecida. Também discutimos os filmes de horror de Jacques Tourneur, em especial Cat People e I Walked with a Zombie, e o gótico americano O Mensageiro do Diabo. A cena final com a turba fora de controle deve muito ao Frankenstein, é claro, mas antes de chegar a ele conversamos sobre A Bela e a Fera [de Jean Cocteau], que já havia bebido da mesma fonte.

As Boas Maneiras é dividido em duas grandes partes: antes e depois do nascimento de Joel. A mudança de tom, ritmo e até de linguagem foram propositais?
O filme nasceu assim, com essa ruptura que é a cena do parto. Nas primeiras versões não havia uma passagem de sete anos, e Joel seguia como um bebê na segunda parte. Mas nós vimos que, para que Joel fosse um personagem complexo, precisaríamos vê-lo como um garoto que está começando a questionar e explorar sua própria identidade. O filme continua sendo uma fantasia, mas o gênero de fato se transforma com a presença de Joel — o aspecto de aventura surge na história para representar sua jornada de descoberta. Miguel é uma criança inteligente e curiosa, que entendeu bem o espírito do filme. Ele tinha grande prazer com as cenas de transformação. Pras cenas com efeitos em CGI, ele usou uma roupa verde e atuou, de fato, como se fosse lobo. A empresa francesa Mikros Image usou sua atuação como base emocional pra animação digital.

Marjorie Estiano e Isabél Zuaa em ‘As Boas Maneiras’.

Como vocês chegaram em Isabél Zuaa? Sua atuação surge como alguém quase apática, introspectiva, e como se abre de forma absurdamente natural, revelando uma pessoa amorosa e querida.
Nosso assistente de direção, Daniel Chaia, havia conhecido Isabél nas filmagens de Joaquim, filme dirigido pelo Marcelo Gomes. Ele recomendou que nos encontrássemos com ela. Quando a conhecemos, na fase de testes, percebemos de imediato sua força como atriz. Era como se ela tivesse revelado aspectos de Clara que nós mesmos não conhecíamos. Mais tarde, nos ensaios e na filmagem, ela seguiu colaborando, sugerindo e criando dentro das cenas, tornando palpável e complexa as questões de raça presentes na história, assim como os sentimentos múltiplos e contraditórios de Clara. O contato com Isabél transformou o filme e certamente nos transformou também.

Vocês optaram por um bebê monstruoso e animatrônico, mas escolheram usar CGI com o jovem lobisomem. As cenas do shopping e da festa junina não perderam impacto por haver ali um monstro digital?
O filme é uma coprodução com a França. Nós tivemos contato com as empresas francesas Mikros Image, que cuida de efeitos digitais, e Atelier 69, que faz efeitos de animatrônica e de maquiagem. Ambos os times nos encorajaram a usar uma mistura de técnicas para chegar ao resultado que queríamos. Usamos efeitos mecânicos com pequenos ajustes digitais quando preciso, assim como elementos de maquiagem combinados aos efeitos digitais. Pras cenas do shopping e pras sequências finais, seria muito difícil criar o personagem só com efeitos mecânicos e de maquiagem por conta das necessidades de movimentação e expressão facial de cada plano. Por isso entrou aí o CGI, ainda que planos de detalhe (como as mãos que se seguram no final) tenham sido filmados inteiramente com próteses realistas.

Marco e Juliana, diretores do filme.

Tendo em vista os elementos bem brasileiros do filme, como As Boas Maneiras está sendo recebido fora do país?
Estreamos em Locarno no ano passado, e saímos de lá com o Prêmio do Júri (que contava com Olivier Assayas e Miguel Gomes, entre outros nomes). Foi uma estreia muito bonita, mas o percurso que veio depois nos deixou ainda mais felizes. O filme foi vendido para mais de vinte países e exibido, até agora, em mais de 80 festivais. A verdade é que nunca sabemos ao certo o que vai acontecer com um filme, como o mundo vai recebê-lo. Trabalhamos muitos anos em cada projeto, então ver o resultado final sendo recebido positivamente por tanta gente nos dá ânimo para seguir trabalhando e também para dizer aos nossos colegas e às gerações mais jovens que este é um trabalho importante, essencial para a nossa cultura. Estamos agora começando a desenvolver, juntos, um novo filme fantástico.

Temos a impressão de que filmes de gênero vão continuar surgindo nos próximos anos. Nossa realidade tem material de sobra para servir de fonte às abordagens mais diversas. Estamos, por exemplo, muito curiosos pelo Bacurau, que Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles estão começando a montar. Por isso queremos que as pessoas vão ver As Boas Maneiras agora no cinema e O Animal Cordial no mês que vem. Podemos garantir que mais filmes interessantes estão para chegar.

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