As brasileiras que jejuavam sobre camas de pregos

A memória assombrou Alberto Camarero por mais de meio século.

Ainda pequeno, em algum momento da década de 50, o futuro cenógrafo e figurinista acompanhou a montagem de um pavilhão em um terreno baldio de Campinas, no interior paulista. Uma faixa anunciava o fenômeno que ali se manifestaria: “A jovem faquiresa Verinha desafia a morte em sua prova de jejum e suplício”. Dias depois, levado pelo irmão mais velho, ele atravessou as portas do local e fitou com os próprios olhos a misteriosa artista.

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Iluminada por um foco de luz no centro de uma sala escura, Verinha tinha uma expressão vaga. Era bela, loura e trajava uma fantasia de odalisca. Estava encerrada numa urna de cristal e deitada sobre uma cama de pregos. Serpentes lascivas deslizavam pelo seu corpo. O garoto a observava com perplexidade. Aquela figura feminina não guardava a menor semelhança com sua mãe, muito menos com sua irmã.

O erotismo e a morbidez quase necrófila do espetáculo, diz Camarero, o marcaram definitivamente: “A profissão que eu escolhi tem muito a ver com isso”. A lembrança da mulher-faquir serviu de base para várias de suas incursões no mundo das artes plásticas e performáticas. Em 1992, chegou a construir e expor uma gigantesca urna, ao redor da qual uma bailarina dançava com cobras.

Cartão entregue ao público durante a prova de jejum da faquiresa Verinha. Foto: Acervo pessoal

Trabalhos como esse eram uma forma de canalizar o nervosismo gerado pela dúvida. Camarero precisava descobrir a origem, a identidade e o paradeiro da enigmática loura que vira na infância. Seus esforços, todavia, revelavam-se cada vez mais infrutíferos.

“Fiquei tardes inteiras vasculhando calhamaços nos acervos dos jornais de Campinas, sem encontrar nada. Fui atrás de profissionais do rádio e da imprensa, e ninguém sabia do que eu estava falando”, recorda. “O mais louco é que nem mesmo o meu irmão se lembrava daquilo”.

Camarero passou a duvidar da própria sanidade. Já não conseguia mais localizar no tempo a reminiscência que tanto o atormentava. Por vezes, cogitava que tudo não passasse de fruto da sua imaginação. “A experiência deu origem a um eco interno, a uma questão que eu tentava explicar para mim mesmo”, afirma. “Eu sentia a necessidade de encerrar aquele negócio de alguma forma, nem que eu precisasse acender uma vela no túmulo da Verinha, caso estivesse morta”.

Toda a maldição possível

Em fevereiro de 2012, Camarero conheceu Alberto de Oliveira, um jovem historiador com quem compartilhava não apenas do mesmo nome, mas também da fascinação por mulheres malditas. “Eu contei toda a história para o Alberto porque vi que ele tinha um olhar muito atento a esse tipo de coisa”, diz o cenógrafo. “E ele ficou alucinado. Perdeu o sono imediatamente”.

“Sempre tive essa inclinação ao passado”, afirma Oliveira, que aos três anos, assistindo na TV Cultura a uma reprise do Sítio do Pica-Pau Amarelo, apaixonou-se pela Cuca, a folclórica bruxa velha com cabeça de jacaré interpretada pela vedete Dorinha Duval. Pouco depois, se encantaria pelas figuras de Carmen Miranda e Luz del Fuego. A primeira música que se lembra de ter apreciado foi A Volta do Boêmio, na voz de Nelson Gonçalves: “Percebi que gostava daquilo e criei o hábito de acordar bem cedo para gravar em K7 aqueles programas de rádio tipo Saudade Não Tem Idade”, relembra.

Quando tomou conhecimento de Verinha, Oliveira pensava em escrever um livro sobre Dora Lopes, figura mítica da boemia carioca e uma das primeiras cantoras assumidamente lésbicas da MPB. “Existia algo de barra pesada na trajetória dela”, constata. “Mas a partir de determinado momento, senti vontade de pesquisar algo ainda mais pesado. Eu queria alguma coisa relacionada a circo, prostituição, marginalidade, loucura, hospício, bruxaria, algo que concentrasse toda a maldição possível”.

Espancada pela polícia em sua última exibição de faquirismo, Suzy King passou os últimos anos de vida nos EUA. Morreu num trailer, sem nunca ter reencontrado o filho que desaparecera em 1962. Foto: Acervo pessoal

Deduzindo que a figura de uma faquiresa pudesse reunir todos esses elementos, o historiador resolveu consultar hemerotecas virtuais. Encontrou menções à Verinha no acervo digital da Folha de S.Paulo e, a partir das informações ali disponíveis, conseguiu localizar outras reportagens sobre ela.

“Quando peguei as matérias na mão, foi impressionante. Lembrei de tudo”, declara Camarero. Suas recordações finalmente assumiram contornos nítidos: Verinha era pernambucana, tinha 22 anos e, antes de se aventurar pelo faquirismo, havia passado por um conjunto de frevo, pelo teatro de revista e algumas chanchadas da Atlântida. Em Campinas, permaneceu mais de 40 dias em jejum, entre 15 de março e 26 de abril de 1958.

Seu leito, segundo O Correio Popular, era composto por 700 pregos, e 32 cadeados lacravam a urna em que permanecia confinada. Ao longo da prova, informava o periódico campineiro, ela teve a companhia inseparável de “cobras de diversas espécies, como sucuri, salamanca, jiboia e coral”.

“Minha família assinava esse jornal”, conta Camarero, que tinha oito anos na época. “Todo dia eles publicavam algo sobre a Verinha. Assim que o exemplar chegava, eu recortava a matéria dela, pintava as fotos com lápis de cor e colava na parede do meu quarto com sabonete. Fiz uma galeria”.

Durante o suplício, Verinha ganhou presentes, recebeu visitas de Mazzaropi e do vice-prefeito de Brotas, foi cortejada por admiradores secretos e despertou a verve literária dos poetas locais. Em seguida, desapareceu sem deixar rastros.

Campinas, testemunha o cenógrafo, era bem mais pacata naqueles tempos: “Não havia grandes assuntos na cidade. Qualquer evento desses adquiria uma proporção enorme”.

Fama e fome

Na busca por informações sobre Verinha, os Albertos acidentalmente encontraram vestígios de outras faquiresas – quase sempre, mulheres de vidas trágicas que encaravam o autoflagelo como um alicerce para a fama e a resolução de questões íntimas. “Percebemos que existia um universo a ser desbravado”, afirma Camarero. “Eram pessoas interessantíssimas, independentes, livres desse pudor classe média, cheias de soluções criativas para os problemas cotidianos.”

O levantamento, garantem os pesquisadores, gerou uma reflexão sobre temas mais amplos. Afinal, as faquiresas submetiam seus corpos à fome, à tortura e à exposição pública num tempo em que o simples desejo de ser atriz ou cantora já bastava para estigmatizar qualquer mulher. “Elas eram fichadas pelas autoridades, sobreviviam como marginais, não se enquadravam naquele estereótipo dócil de mamãe e dona de casa”, diz Camarero.

Três anos e meio de pesquisa em acervos públicos e privados resultaram no livro Cravo na Carne, lançado em 2015 pela Editora Veneta. A obra, que conta com posfácios do analista junguiano Roberto Gambini e da antropóloga Regina Polo Müller, reconstitui a gênese, o apogeu e a queda do faquirismo feminino brasileiro através das trajetórias particulares de 11 mulheres.

A pioneira, Rose Rogé, era francesa e gerenciava uma pensão no centro do Rio de Janeiro. Seu nome ganhou as páginas dos jornais em 1920, ao sofrer uma tentativa de assassinato. O principal suspeito, o padre Domingos Pinna, era inquilino da vítima e costumava assediá-la.

A faquiresa Rossana e seu empresário. Em 1956, já afastada do faquirismo, ela cometeu suicídio no banheiro de um apartamento em Copacabana. Foto: Acervo pessoal

Publicamente desmoralizada, Rose Rogé perdeu tudo o que tinha e caiu na miséria. Para driblar as dificuldades financeiras, tomou uma decisão drástica: entrar num caixão e enfrentar oito dias de jejum sepultada no interior de um cinema. O espetáculo foi visto como um marco feminista, já que o território do faquirismo era predominantemente masculino e nenhuma mulher no Brasil havia participado de uma prova daquele tipo até então.

A primeira faquiresa genuinamente brasileira a dar as caras no livro é a paulista Arady Rezende, que se apresentava ao lado do marido e morreu em 1935 no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, vítima de caquexia – síndrome caracterizada, entre outros fatores, pela desnutrição severa. A era de ouro do faquirismo feminino, entretanto, teria início no país apenas duas décadas depois, com as exibições da gaúcha Rossana, jovem de família tradicional que abandonara o filho pequeno para tentar carreira artística no sudeste.

Em sua derradeira prova, iniciada em 7 de agosto de 1955, Rossana pretendia bater o recorde mundial feminino de jejum. A expectativa era de que permanecesse dois meses deitada sobre cacos de vidro, mas a exibição durou apenas três semanas – a faquiresa sofreu uma crise nervosa e abandonou a urna no dia 28. Em junho de 1956, cometeu suicídio no banheiro de um apartamento em Copacabana, intoxicada com o gás do aquecedor. Tinha 26 anos e havia brigado com o amante na véspera.

A morte de Rossana prenunciava um dos mais singulares fenômenos daquele universo: sua associação com o imaginário trágico da crônica policial. “Por volta de 1955, começou a surgir um monte de faquir e faquiresa. Muita gente barra pesada foi se envolvendo nisso, toda hora aparecia algum falsário. O faquirismo chegou inclusive a ser proibido em alguns estados brasileiros”, explica Oliveira.

Já em 1957, a imprensa paulistana dedicaria inúmeras manchetes às exibições de Yone, ex-prostituta que jejuava na Praça do Correio ao lado do marido, o faquir Lookan. Muitos eram os boatos acerca do casal – dizia-se que tinham pacto com o demônio, mas também que as bitucas dos cigarros fumados por Lookan possuíam propriedades curativas. Em 1966, Lookan assassinou Yone com quatro tiros na presença dos filhos, alegando razões passionais. Cumpriu pena e casou-se novamente.

Deitada sobre uma cama de pregos, a ex-prostituta Yone recebe a visita do marido, o faquir Lookan. Em 1966, ele a executou com quatro tiros na presença dos filhos. Foto: Acervo pessoal

Nenhum caso, porém, rendeu tanto material para tabloides quanto o da artista circense Geny Santana Pastore, dona de uma vasta ficha criminal que incluía acusações de roubo, estelionato, charlatanismo, falsa identidade e, principalmente, sequestro de menores. Em 1958, adotou o pseudônimo de Marciana e promoveu uma exibição fajuta de jejum na zona oeste da capital paulista, aproveitando os horários de baixo movimento para comer macarronada às escondidas. Envolvida no sumiço de pelo menos 12 crianças, Geny sumiu dos radares públicos no ano seguinte. Conforme apurado pelos pesquisadores, morreu no Paraná, onde deu continuidade à sua carreira de contraventora – dessa vez, fazendo-se passar por mãe de santo.

O livro se encerra com um perfil da baiana Suzy King – a mais anárquica, libertária e escandalosa de todas as faquiresas.

Cantora e atriz frustrada que dançava com cobras nas boates do eixo Rio-São Paulo, Suzy King era mãe solteira, causava pânico ao se alojar em hotéis na companhia de serpentes fujonas, escreveu uma peça interditada pela censura sob alegação de obscenidade, foi presa por desacato ao xingar policiais numa batida noturna e, para divulgar uma prova de jejum, desfilou quase pelada em plena Avenida Rio Branco, montada a cavalo.

Em janeiro de 1960, depois de se exibir pela última vez como faquiresa, Suzy King foi conduzida a uma delegacia e espancada pela polícia. Seu filho, portador de transtornos psiquiátricos, desapareceu em meados de 1962. Ela publicaria diversos anúncios implorando por notícias do rapaz, mas nenhum foi respondido.

No início da década de 70, tendo percorrido vários países da América Latina, passou a viver nos EUA sob identidade falsa. Em 9 de agosto de 1985, foi encontrada morta no trailer onde morava, na zona de meretrício de Chula Vista, cidade californiana próxima à fronteira com o México. Seu corpo estava nu e em estágio avançado de decomposição.

A violência sofrida pela faquiresa baiana, sustentam os pesquisadores, era reflexo de transformações culturais que ocasionariam o declínio do faquirismo brasileiro nos últimos anos do governo Kubitschek. Naquele país pretensamente cosmopolita do Plano de Metas e da bossa nova, já não havia mais espaço para uma mulher como Suzy King – a antítese por excelência da Garota de Ipanema.

“Antes, o faquir era visto com silêncio e reverência. Em torno das provas havia também uma coisa meio cívica e ufanista, de comemorar os recordes brasileiros e louvar os heróis da nação”, explica Camarero. “Mas, a partir dos anos 60, o deboche tomou conta. O público dava risada. Faquirismo virou sinônimo de atraso, credulidade, ignorância”.

Casos de família

Nos preparativos para o livro, os Albertos se depararam com um obstáculo inesperado: a recusa de herdeiros em falarem sobre o assunto. Acervos inteiros, alegam os pesquisadores, foram incinerados por filhos e netos – em sua grande maioria, evangélicos.

“Foi uma batalha entrevistar essas pessoas”, lamenta Camarero. “Os familiares odeiam admitir que tiveram uma mãe ou avó faquiresa. Acham sujeira, querem destruir essa memória.”

Verinha, a única faquiresa ainda viva dentre as perfiladas em Cravo na Carne, renega seu extravagante passado. Decididos a localizá-la, os autores realizaram incontáveis ligações para gente de todo o país, guiados unicamente pelo sobrenome citado num antigo recorte de jornal. A busca se afunilou, e logo a dupla estaria conversando sobre faquirismo com o sobrinho, a nora e os filhos da ex-jejuadora. A surpresa foi grande quando, três meses depois, a própria Verinha atendeu o telefone.

“Ela ficou puta”, conta Camarero, aos risos. “Aquilo tudo era segredo. Ela nunca tinha contado nada para ninguém. Sem querer, sujamos a barra dela. Disse que ia processar a gente, que não queria saber de nada daquilo. Trememos na base.”

A hostilidade logo se desfez. Verinha, hoje uma avó de 83 anos residente em Belo Horizonte, tornou-se amiga do antigo fã mirim. Mas a resistência, segundo Camarero, persiste: “Nosso diálogo só vai até certo ponto. Ela detesta falar daquela prova, está sempre se esquivando. Não esclarece os motivos, mas diz que foi a pior experiência da vida dela e que passa mal só de olhar a capa do livro”.

Mara, a primeira jejuadora a receber da imprensa brasileira o título de “faquiresa”. Foto: Acervo pessoal

A vergonha domina também os filhos de Mara, a primeira jejuadora a ganhar da imprensa brasileira o título de “faquiresa” – vocábulo provavelmente introduzido por seu marido, o faquir Urbano. Nos últimos anos de vida, o casal esteve afastado da vida artística: Urbano era diretor do Clube Atlético Paranaense, e Mara passou a militar na Liga das Senhoras Católicas de Curitiba. Os herdeiros cederam material para o livro, exigindo, em contrapartida, que o texto não mencionasse nenhuma informação capaz de identificar os membros da família.

Outros casos tiveram desdobramentos mais dramáticos.

Um filho do segundo casamento de Lookan se converteu em pastor e acredita que a atuação do pai como faquir tenha sido uma tentativa de expiar os próprios pecados. “Ele chorava muito. Implorava para que eu esquecesse o passado e deixasse a família dele em paz”, afirma Oliveira, que conversou por telefone com o religioso.

O filho de Rossana não apenas desconhecia as incursões da mãe pelo faquirismo, como também nutria uma série de questionamentos sobre as circunstâncias de sua morte. Na memória do herdeiro, a desgraça materna estava atrelada a um outro suicídio, bem mais célebre – o de Getúlio Vargas, em 1954. Ambas as tragédias chegaram aos seus ouvidos através de comentários exaltados do avô, enquanto tomava café da manhã. “Ele sempre conviveu com a dúvida. Muitas vezes, escutava de familiares que a morte tinha sido acidental”, diz Oliveira. O homem, relata, era alcoólatra e faleceu ano passado, aos 67 anos.

As vítimas de Geny, hoje adultas, cresceram alheias à própria história, certas de que tivessem sido abandonadas pelas mães biológicas. Coube aos pesquisadores revelar-lhes a verdade. Em julho de 2016, a descoberta virou pauta do Fantástico.

A criminosa Geny Santana Pastore, responsável pelo sumiço de pelo menos 12 crianças, se apresentando como faquiresa Marciana. Foto: Acervo pessoal

Na reportagem, a jornalista Renata Ceribelli surgia em meio a um picadeiro cenográfico, junto a palhaços e trapezistas. A trilha sonora remetia aos clichês do cinema de horror, e uma encenação mostrava Geny com trejeitos caricatos de cigana. Em frente às câmeras, as vítimas expressavam o desejo de encontrar suas verdadeiras famílias e descreviam, aos prantos, os maus tratos que a sequestradora lhes infligiu.

Artistas circenses se ofenderam com a abordagem, e a corda arrebentou para o lado dos Albertos. “Escreveram notas de repúdio, fizeram vídeos. Num deles, o cara mostrava uma foto minha e me acusava de ser o culpado por tudo aquilo”, afirma Oliveira.

O drama que mais sensibilizou o historiador, no entanto, parece ter sido o de Carlos Sampaio de Araújo – o filho perdido de Suzy King. “Assim que a gente começou a pesquisa, a busca pelo filho dela se tornou uma questão muito importante para mim”, assume.

No acervo da Biblioteca Nacional, Oliveira encontrou uma matéria sobre recolhimento de mendigos, publicada no início de 1984 pelo Jornal do Brasil. Carlos era um dos entrevistados, e comunicava seus planos: abandonar o Rio de Janeiro e partir para Minas Gerais, onde a vida lhe parecia mais fácil. “Pensei que talvez ele ainda estivesse vivo e morando por lá”, conta o pesquisador.

Tal como Suzy King, Oliveira desatou a espalhar anúncios pelos jornais. Por e-mail, recebeu de um policial mineiro o informe que a faquiresa morrera esperando: sim, Carlos estava vivo, e morava em Governador Valadares. “Fiz as malas e corri para lá”, relembra. Foi o início de uma grande amizade.

Carlos, atualmente com 86 anos, vive num cortiço, após cinco décadas e meia de sobrevivência nas ruas das cidades. Quando conheceu Oliveira, ainda não tinha um teto. O filho de Suzy King, relata o historiador, é um homem intelectualizado: lê jornais diariamente, se interessa por economia e conversa com desenvoltura sobre os mais variados temas. Só não fala da própria mãe.

Faquiresas do desbunde

De 2015 para cá, os Albertos se firmaram como referência incontornável do faquirismo brasileiro – assunto praticamente morto antes do lançamento de Cravo na Carne. Uma eventual reedição do livro, garante a dupla, precisaria de mais 200 páginas para contemplar a memória de todas as faquiresas redescobertas nesses últimos três anos. A gaúcha Sandra, por exemplo, caiu nas graças de Leonel Brizola em 1958. Mais ou menos na mesma época, Dzy Tzú, filha de japoneses, desistiu de ser freira e foi se deitar sobre pregos em Juiz de Fora. Najja, por sua vez, era tida como santa nos idos de 1969, quando se exibia crucificada em municípios do interior paulista.

Najja, a última faquiresa brasileira do século XX, estampa a capa do tabloide Notícias Populares em 1969. Foto: Acervo pessoal

O resgate do faquirismo serviu de ingresso para uma longa viagem pelos subterrâneos do imaginário nacional. Ainda em 2018, Camarero e Oliveira pretendem lançar O Fabuloso Silki, biografia do maior jejuador brasileiro de todos os tempos. Eles também preparam mais dois livros: um sobre lutadoras circenses, outro sobre sacerdotisas excêntricas. Nas horas vagas, administram a inacreditável página Desacato – Bad Girls na Parada , uma arqueologia da transgressão feminina escondida no mar de novidades enfadonhas do Facebook.

Enquanto isso, a saborosa estranheza de Cravo na Carne vem inspirando os trabalhos da atriz e cineasta Helena Ignez – nas décadas de 60-70, um rosto emblemático do Cinema de Invenção, figura central dos longas-metragens de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane; no século 21, uma jovem diretora de 76 anos. O responsável por levar até ela o trabalho dos Albertos foi ninguém menos que o cantor Ney Matogrosso, protagonista de seu filme Ralé e antigo parceiro teatral de Camarero.

“O livro já veio cheio de signos e esperanças”, diz Helena, afetuosa. “A leitura foi incrível, muito forte. Remeteu ao universo da minha pré-adolescência na Bahia, quando eu vi um faquir e ouvia falar de uma faquiresa, a Madame Beatriz.”

Famosa cartomante no high society de Salvador, Madame Beatriz se exibiu em provas de jejum e sepultamento entre o final dos anos 40 e início dos 50. Em 1964, foi imortalizada como personagem do romance Os Pastores da Noite, de Jorge Amado. A obra, por sinal, descreve suas apresentações com um misto de ironia e ternura: “Enterrada viva, um mês num esquife, sem alimentação, sem bebida, sensacional”.

Os pesquisadores Alberto de Oliveira e Alberto Camarero. Ao centro, a atriz e cineasta Helena Ignez.

O mesmo encantamento pelos espetáculos de emoções baratas, pedras fundamentais de um passado adormecido, transparece na voz de Helena: “O livro dos Albertos fez voltar em mim toda essa imaginação, das mulheres-gorila e lutadoras que eu via no circo. Tenho profunda admiração por elas”.

Uma admiração que se transfigura em força criativa: essas mulheres serão o eixo de seu próximo filme, Relatos de uma Faquiresa, ainda em fase de captação de recursos. “Mas as faquiresas do meu filme estão nos anos 70”, explica Helena. “Estão vivendo na ditadura. É o momento do psicodelismo, da mudança das mentes, do desbunde, do poliamor.”

Entre essas personagens e as jejuadoras da década de 50, contudo, a cineasta enxerga mais semelhanças do que diferenças: “São muitos os pontos de contato. A reinvenção de si mesmo, não entregar os pontos, o fascínio pela transgressão, a afirmação completamente benéfica a um movimento feminista”, declara. “Em 2018, nesse momento de medo, retrocesso total e grandes rebanhos, elas são extremamente importantes.”

Os Albertos, pelo visto, concordam. “Faz seis anos que trabalhamos com o assunto, e o encantamento não se desgastou. Ainda durmo e acordo pensando nas faquiresas”, confessa Oliveira. “Essa gente era muito maluca”, resume Camarero.

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