Batemos uma bola com um pessoal da seleção da Palestina

Quando Cristiano Ronaldo desembarcou em Campinas, no último dia 11, as redes de tevê mostraram umas torcedoras histéricas com iPhones ao alto, uns rapazes de polo com sobrancelhas curiosas e dezenas de repórteres que, entre um gole e outro nos isotônicos oficiais da Copa, anotavam cada movimento do craque português. Parece que ele até deu uma sambadinha.

Na mesma semana, uns jogadores da seleção palestina de futebol aterrissaram a alguns quilômetros dali, na capital paulista, sem provocar alarde. Fora da Copa do Mundo, o grupo veio falar à FIFA que não aguenta mais jogar sob o medo de ser interrogado, detido ou morto por israelenses. As denúncias, mostraram, não são qualquer faísca, não: vão de invasão militar aos centros de treinamento a atletas colocados em cárcere sem motivo. Poucos deram atenção. Para entender melhor o grau dessas ameaças, fomos participar de uma, digamos, partida-diálogo com os caras.

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Pularemos a parte em que este que escreve perdeu um gol feito. E, se possível, o episódio seguinte em que o mesmo perde a bola no meio de campo, erra o carrinho e entrega o jogo. As informações relevantes começam quando a pequena torcida presente, envergonhada pelo triste espetáculo dos peladeiros brasileiros, pede minha substituição.

Husam Younis. Foto: Renato Leite Ribeiro

Do lado de fora do campo, conheci Husam Younis, o técnico da seleção feminina da Palestina. Enquanto tomava água à beira do campo, ele contou sobre as jovens mulheres que treina há pouco mais de um ano. São universitárias ou funcionárias de algum estabelecimento comercial que, nas horas vagas, gostam de driblar e marcar uns gols. “O número de adeptas não para de crescer”, diz. “Nosso futebol feminino já conta com duas divisões: a primeira, com seis times; e a segunda, com 12.” Ele conta que algumas das estrelas da equipe nacional estão recebendo propostas para jogar em países como Egito, Chile, Estados Unidos e Líbano. Com moral, a seleção se prepara para a Copa da Ásia, competição para a qual conquistou vaga dois meses atrás.

Para muitos ocidentais, ao ouvir falar de mulheres boleiras na Palestina, imagina-se onze seres de burca em um campo de terra — talvez com arames farpados ao redor — , temerosas dos olhares masculinos. A realidade, diz Younis, é bem diferente. Algumas jogadoras usam o hijab, uma espécie de lenço que serve para ocultar os cabelos; a maioria, porém, joga com todo o rosto à mostra. E elas contam com a torcida fervorosa dos homens. “A sociedade passou a entender a importância da luta delas”, afirma.

Parte desse incentivo dos homens árabes vem do fato de que as dificuldades enfrentadas pelas atletas são comuns a todos os palestinos. “Não temos apoio financeiro, não temos o direito de ir e vir em nosso território e atletas estrangeiras não conseguem vistos para passar por Israel”, disse. “Há um componente político nesse apoio.”

Formado em gestão esportiva em Cuba, Younis está sempre de olho em algum talento que possa lapidar nos arredores de Ramallah, a capital administrativa da Palestina — a religiosa e oficial seria Jerusalém, que se encontra sob o domínio de Israel. É a única região mais ou menos propícia para a prática do esporte. Embora seja lotada de postos de checkpoints, onde forças armadas israelenses controlam quem entra ou sai, a maioria das autoridades palestinas e representações diplomáticas vive pela cidade de 33 mil habitantes. Trata-se de um local mais seguro do que os terrenos ao leste.

Se uma atleta estiver em Gaza, a situação complica. Histórica cidade de conflitos entre grupos armados, o local tem grande vigilância por parte dos israelenses. São frequentes os relatos de jogadoras que são interrogadas por horas na fronteira e são barradas. “Não conseguimos jogar futebol como qualquer outra nação”, diz Younis. “É um direito que nos é negado.”

Petto Kettlun. Foto: Renato Leite Ribeiro

Um time de líderes

Com cabelos compridos e sotaque hispânico, o meia e capitão da seleção masculina Peto Kettlun, de 32 anos, tem estilo de jogador latino. Os rumos de sua família nos últimos 70 anos explicam a semelhança. Seu bisavô fugiu da Palestina por questões políticas e, em 1935, migrou para o Chile junto de uma grande leva de conterrâneos — o país andino tem a maior colônia de palestinos fora do Oriente Médio. Na América do Sul, seu parente constituiu família com sua esposa descendente de italianos. Kettlun cresceu sob forte influência das três culturas: árabe, europeia e chilena.

Minutos depois de ter me dado um drible meio que bastante humilhante no meio do campo, ele explicou, em bom portunhol, que as dificuldades do time masculino de futebol são ainda maiores. Segundo o experiente jogador, o sucesso da equipe no começo dos anos 2000 incomodou os vizinhos de Israel. “A seleção palestina foi reconhecida em 1998 e foi evoluindo de forma muito rápida”, diz, com a entonação mais cabível a um líder político do que a um boleiro. “Nosso time para as Eliminatórias da Copa de 2006 era muito forte, ganhamos de Taiwan e Iraque com facilidade, e isso trouxe muitas manchetes. Aí começamos a sofrer uma perseguição.”

Para Kettlun, o grande problema foi que jornalistas nacionais e internacionais mencionaram por excesso a questão política ao tratar do futebol palestino. “É natural e inevitável falar disso, mas acabou por irritar os israelenses, que tornaram as vidas dos jogadores de Gaza um inferno.” No resto das Eliminatórias, diz o camisa 17, as tropas de Israel não deixavam os atletas que moravam próximos à Gaza chegar às concentrações. Nem mesmo os liberavam para as pré-temporadas no Qatar. “Treinamos sem 13 jogadores”, diz. “Prejudicou nosso trabalho. O ambiente e autoestima estavam muito ruins. Não podíamos trabalhar e, claro, o rendimento caiu. Fomos eliminados.”

O capítulo mais recente dessas perseguições ocorreu em maio. A seleção palestina voltava de uma preparação no Qatar para o Challenge Cup, torneio asiático para nações emergentes, quando, na fronteira com Jordânia, um dos zagueiros da seleção foi interrogado por seis horas. Ele foi preso sob a alegação de “critério administrativo” e não teve direito à defesa. “Infelizmente, é uma rotina”, diz o capitão palestino. Não há informações de quando o jogador será liberado.

De acordo com documento da federação palestina de futebol sobre as transgressões cometidas por Israel, há pelo menos dois jogadores de seleção presos sem direito à defesa. O goleiro de equipe olímpica, Omar Khaled Abu Rweis, hoje com 24 anos, está detido desde fevereiro de 2012. Mesmo período de prisão de Mohammad Saadi Ibrahim Nimer, jogador do Al-Amaari. Ambos não tiveram direito a julgamento ou fiança, segundo as autoridades de esporte da Palestina. Há relatos semelhantes de torcedores e membros de comissão técnica de times locais.

Todos esses casos repetem o emblemático episódio protagonizado pelo jogador Mahmoud Kamel, preso em 2009 pelas autoridades israelenses no dia em que se transferia para seu novo clube, Markaz Balata. Ele ficou em cárcere por três anos. A liberdade foi conquistada em 2012 depois de o jogador fazer greve de fome por 90 dias. Só assim o presidente da FIFA, Joseph Blatter, interviu.

Se há algo de frutífero em meio a tantos obstáculos, é que os palestinos acabam sendo os atletas mais engajados no futebol. Assim como o capitão, a maioria dos jogadores vive em outro país, mas prefere representar a nação que se encontra em dificuldades. “É um modo de reencontrarmos nossas próprias raízes e lutarmos pelo respeito de nosso povo”, afirma Kettlun, que serve a seleção da palestina desde 2002. Ele começou sua carreira nas categorias de base do Universidad Católica do Chile. Foi convocado quando jogava no time chileno da colônia palestina, o Palestino. Depois de boas exibições, transferiu-se para a Grécia e rodou por times de pouca expressão na Itália até que, em 2012, mudou-se para jogar na Cisjordânia. Foi onde conquistou seu espaço como líder. 

Clubes e estádios em destroços

A rotina da equipe de Kettlun, o Hilal Al-Quds, traduz como é difícil ser profissional da bola na Palestina. O time pertence a Jerusalém Oriental, mas, desde a construção do Muro da Cisjordânia, em 2005, a maioria dos palestinos não tem permissão para entrar na região. A barreira serve para, de acordo com israelenses, proteger seus habitantes de ataques terroristas. Na prática, impede o tráfego de palestinos. A solução é jogar em Ramallah ou outro território da Cisjordânia na base do improviso.

Outros clubes não tiveram a mesma sorte. O time muçulmano Islami Silwan teve suas portas fechadas pelas Forças de Inteligência de Israel em outubro de 2012. Qualquer membro que participasse de atividade esportiva seria preso. Desde então, não disputa mais qualquer competição

A intervenção ocorre também nas construções relacionadas ao futebol. O estádio Sa’ad Sayel, aprovado pela FIFA em 2009, teve suas obras iniciadas em abril de 2012, na cidade de Nablus. Pouco depois que as primeiras estruturas foram erguidas, as forças armadas israelenses confiscaram o maquinário e ordenaram a interrupção do projeto. Diversos encontros foram organizados nos últimos anos para resolver o impasse. Nenhuma solução foi implementada.

Em Gaza, a situação é agravada por constantes bombardeios. Em novembro de 2012, aviões israelenses atacaram o Estádio Palestino e outros alvos de prática esportiva como a representação da delegação olímpica e as sedes dos clubes Ittihad Al-Shja’iyah, Ahali Al-Nuseirat e Khadamat Deir Al-Balah. Não casos isolados. Todos os atletas que estiveram no Brasil confirmam: a perspectiva de morte no território é alta. De acordo com eles, diversos jogadores profissionais foram baleados nos últimos anos.

Saji Darweesh, de 18 anos, virou uma espécie de mártir da causa do futebol palestino. Ano passado, o jogador foi confundido com um terrorista e terminou a madrugada atingido por um atirador de elite. Morreu na hora. Segundo Susan Shalabi Noho, diretora do Departamento Internacional da Associação Palestina de Futebol, uma mulher de cabelos curtos e voz firme que esteve no Brasil para articular as denúncias de maus tratos, a representação israelense não reconheceu o erro. “Disseram que Darweesh estava no lugar errado e na hora errada”, afirma. “É uma situação de abuso. Temos de pedir permissão para tudo e, mesmo assim, forças militares podem cometer um ato desse e permanecer impune.” Nenhum representante de Israel respondeu ao contato da VICE até o fechamento deste texto.

E qual é a posição da FIFA perante tantas queixas? Segundo o presidente da Associação Palestina de Futebol, Jibril Rajub, único homem de terno e sapatos durante a partida, a entidade apoia a causa, embora, diz, não tenha representado uma melhoria no cenário. Blatter e Michel Platini, presidente da UEFA, a divisão europeia, propuseram um mecanismo de relacionamento entre Israel e Palestina, mas os primeiros rejeitaram. “Nós, como palestinos, reconhecemos os israelenses e respeitamos os direitos deles”, diz Rajub, com aspecto e tom de voz severos. “Eles sequer reconhecem nossa existência.” A prova, afirma o executivo, aconteceu na última denúncia que os palestinos fizeram contra os abusos numa congresso com vários países. Dos 209 países, apenas um não apoiou a Palestina: Israel.

“Só estamos pedindo para que possamos praticar esporte”, diz Rajub. “Queremos que nossos atletas possam ter o direito de ir e vir sem que passem por qualquer tipo de violência ou constrangimento.”

Depois da Copa, a comitiva palestina saberá se a ida ao Brasil surtiu algum efeito. Por enquanto, o mundo segue de olhos e câmeras em Cristiano Ronaldo e grande elenco.