Bati um papo com agentes penitenciários de um presídio do CV

Colaborou W. Azor

Entrei e saí de cadeias e presídios por toda a minha vida. Embora todas as minhas detenções se resumissem à delegacia, não foram poucas as vezes em que visitei cadeias ou presídios. Quando eu era ainda bem novo, acompanhei várias vezes um parente meu em visitas a seus amigos encarcerados. Ao longo da vida, conheci distintas unidades prisionais do Estado do Rio de Janeiro, acompanhando músicos e ativistas, fazendo matérias ou, na infeliz maioria das vezes, visitando amigos. A primeira vez na vida em que eu vi um ar-condicionado Split e uma TV de plasma foi ainda nos anos 90, dentro de uma cela da Polinter. Também já visitei um amigo que estava amontoado dentro de um container selado e fedido com mais de 200 pessoas. O cheiro de merda é sempre uma constante: quando visitei um amigo no hoje desativado presídio de Neves, o pátio fedia a merda: acontece que o pessoal da outra facção recebia visita na véspera e, ao final dela, deixava um presentinho no pátio pra galera do dia seguinte… também já visitei o famoso Padre Severino, só para menores, já visitei manicômios judiciários e já fui a um churrasco em dia de visitas numa penitenciária enorme em Niterói, no maior clima familiar. Já ouvi muitas histórias de amigos que estiveram presos por todo o Brasil, a maioria por porte ou cultivo de maconha para uso pessoal, interpretada na justiça como tráfico. Além do fato de que nunca falta maconha na cadeia, outras unanimidades dessas histórias envolvem a lerdeza e a insensibilidade da justiça, a superlotação, as péssimas condições de salubridade e o abandono por parte do Estado. Também sempre faziam parte desses relatos as regras, as artimanhas e a gestão do crime organizado.

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No inicio do ano, através de um antropólogo que dá aula no curso de Segurança Pública da UFF, pude conhecer um agente penitenciário antiproibicionista da guerra às drogas. Após algumas conversas, ele se ofereceu para me levar a fim de conhecer seus colegas numa pelada/churrasco que rola todo mês entre os guardas num campinho de futebol dentro do complexo penitenciário de Gericinó, em Bangu, onde pude testemunhar uma visão do sistema carcerário a partir de um angulo inédito para mim. O Estado do Rio aprisiona cerca de três mil pessoas por mês, a maioria por tráfico de drogas. O Complexo de Bangu tem 26 unidades prisionais independentes, todas muradas e que, por sua vez, estão dentro de um enorme complexo também murado. O que eu nunca tinha percebido é que, no meio desse complexo, ainda tem um pequeno bairro, com algumas residências (não necessariamente habitadas por servidores) e um campo de futebol. O sinal de celular ficava morto a maior parte do tempo, mas, de vez em quando, dava uma oscilada e vinha aquela chuva de notificações de uma vez só. Coincidentemente, a maioria dos agentes que participava da pelada naquele dia era de Bangu 5, a mesma unidade em que o Rafael Braga estava preso quando o entrevistei. Trata-se de uma das sete unidades do complexo destinadas a detentos que se declararam (por filiação ou localização geográfica) do Comando Vermelho, a maior e mais antiga facção do Estado do Rio de Janeiro.

O CV nasce no fim dos anos 60 no presídio de Ilha Grande quando a ditadura altera a Lei de Segurança Nacional para criminalizar assaltos a bancos e sequestros de maneira a reunir presos políticos e comuns. O resto da história todo mundo conhece. Inicialmente criada como uma organização para garantir a “paz, justiça e liberdade” da massa carcerária, nos anos 80, a anistia política e a expansão internacional do mercado de drogas levaram o Comando Vermelho a trocar os complicados e arriscados assaltos a bancos por algo mais empreendedor: estabelecer pontos de tráfico de drogas na maioria das favelas do Rio de Janeiro. Ainda que o Rio tenha hoje outras duas outras facções expressivas, o CV ainda é a maior delas, e 85% dos territórios ocupados pelas UPPs estão em lugares historicamente ligados ao CV (que continua operando neles).

No total, conversei com sete agentes, todos eles lotados em unidades destinadas ao Comando Vermelho. Um dos caras com quem eu conversei veio das Forças Armadas e outro, da Guarda Municipal, mas a maioria deles era formada ou estava estudando Direito. “Eu vejo o inspetor penitenciário como uma etapa que eu tenho de cumprir para galgar o que eu quero futuramente, que seria ser um policial civil, delegado da polícia civil, delegado da Polícia Federal, agente da Polícia Federal ou agente da Polícia Rodoviária Federal”, afirmou o primeiro com quem conversei. Mesmo que a maioria compartilhasse uma vocação para a área de segurança pública, quando eu lhes perguntava por que escolheram essa profissão, a resposta foi quase sempre a mesma: a possibilidade de melhores ganhos materiais. Hoje, o salário de um agente penitenciário no Rio está na faixa de R$ 4.500, podendo ganhar até R$ 1.200 extras se ele fizer o Regime Adicional de Serviço. “Ninguém gosta de conviver com esse tipo de bandidos com quem a sociedade não quer conviver. É um convívio improvável, mas a gente vive diariamente com eles e acaba, inclusive, pegando aquela fala deles ali, acaba influenciando nossa mente; por isso, é bom a gente ter uma família forte ali fora para se prender, lembrar que somos diferentes deles” afirmou um deles, ex-militar, que prestou o concurso depois que sua namorada engravidou. O último concurso para a SEAP, em 2012, teve 70 mil candidatos para pouco mais de mil vagas.

A pelada parecia estar pegando fogo, porém eu nunca fui muito futeboleiro. Na época da escola, eu fugia da aula de educação física para assistir ao treino das meninas escondido. Em casa, minha família só assistia a futebol durante a Copa do Mundo, já que nossas três nacionalidades colecionam hoje nove títulos. Logo, sendo eu tamanha negação no assunto, ficava complicado trocar ideia com a galera que, quando não se concentrava na pelada, estava discutindo o momento de seu time no campeonato. Tive de esperar os latões de cerveja começarem a bater em mim, e também na rapaziada, para quebrar o gelo e começar a conversar com a galera. Depois de jogar alguma conversa fora, expliquei por que estava ali, me afastei um pouco da muvuca e liguei o gravador. No início, conversei com três agentes, e logo outros foram chegando.

VICE: Como é o dia a dia de um Inspetor?
Inspetor 1: Eu cumpro regime de plantão, das 8h às 8h do outro dia. Chegamos, reunimos a equipe de plantão, fazemos o confere diurno; conferido, a gente usa o nome de “botar a cadeia para andar”, que é o quê? Liberar os classificados na galeria, porque o trabalho para os poucos guardas que são é inviável; então, tem os classificados que a gente libera para fazer o serviço de limpeza da unidade, de servir a comida que chega, café da manhã no caso, e as outras refeições. É um serviço de observação também que a gente faz.

E qual o critério para escolher esses “faxinas”?
Não tem um determinado critério; no caso, são os presos que a gente mais ou menos julga como “de confiança”. Não é que sejam de confiança, mas têm bom comportamento e são designados para trabalhar dentro da unidade. São classificados pela CTC, Comissão Técnica de Classificação, que, a cada 6 meses, avalia os detentos. No meu caso, eu posso dizer: de 1200 presos, a gente tem 25 classificados que exercem diferentes tarefas dentro da unidade.

VICE: O trabalho de um agente penitenciário é mais perigoso que o de um PM?
Inspetor 2: Olha, são coisas distintas, são riscos distintos, porque o PM não está em confronto em seu plantão [de] 24h; no nosso caso, a gente se encontra em 24h de risco. Pra quem não sabe, a gente lida diretamente com o interno; quem acha que eles ficam só trancados está enganado, agimos diretamente com eles.

Inspetor 1: Quem trabalha numa unidade espera sempre o pior, eu já fui agredido e não me surpreendeu a agressão que eu sofri. A gente entende que o preso esta lá, a gente fica 24h, ele está ali cumprindo sua pena direto; então, ele… apesar de essa facção dizer que são unidos, sempre tem desentendimentos – e, dentro de uma cela, não só tem ele, são vários. Então, se ele não quer mais ficar ali, porém também não quer sair da facção, pra ele dizer que ele é brabo, ele vai lá e agride o guarda, porque ele sabe que, com isso, ele vai conseguir o quê? Uma transferência de unidade, e mais ou menos ele sabe para onde vai. Como que sabe? Porque, em cada unidade, tem três ou quatro unidades pra qual podem mandar esse interno. Então, às vezes, quando ele faz isso, não foi algo diretamente contra o inspetor penitenciário, e sim para se safar daquela unidade em que ele estava – é o vulgarmente chamado “pulo”. Mas ele não pulou da facção, ele pulou da unidade.

E se ele quiser sair da facção, como ele faz?
Inspetor 1: Alguns presos, que têm um certo (vulgarmente chamado) cargo – que eu não entendo como cargo; pra mim, é tudo bandido –, eles têm uma certa atribuição. Então, muitos não aguentam essa atribuição, ou eles estão devendo, são viciados e estão devendo no coletivo, não têm dinheiro pra pagar… então, digamos que um preso não quer mais ficar na facção; então, ele usa do pulo: no momento em que o guarda abre a cela, ou ele vai agredir o guarda na saída, ou ele vai se abraçar com o guarda, ou simplesmente vai esperar o guarda passar e vai sair batido – e vai sair da cela pra tentar ser detido pelos outros guardas, o que já ocorreu. Aí, na maioria das vezes, ele consegue sair ileso. Ele, o preso, acha que vai sair – na cadeia, ele vai sair, pois nós temos as unidades de seguro, que são neutras, não tem nem uma facção nem outra. Agora, lá fora, depois que ele sair, é tudo com ele…

Tem se falado recentemente da “fuga pela porta da frente”. Como é que funciona? Quando o cara tem algum benefício, sai e não volta mais?
Inspetor 2: Isso daí, no caso, não é a fuga pela porta da frente. Nós recebemos a obrigação da justiça, tudo em acordo judicial. Nós não liberamos, a justiça que libera; então, mesmo sabendo que aquele preso não vai voltar, pois, às vezes, ele vem e fala pra gente que não vai voltar, a gente tem de botar na rua. Não é nosso papel travar o preso, até porque o que a gente sempre fala é “É adeus ou é até logo?”, e ele fala “É Adeus!”. A gente sabe, com o nosso cotidiano e nosso trabalho, que ele não vai voltar, principalmente essa determinada facção – eles não voltam.

Fica ruim pro cara se ele voltar? Com a galera do CV?
Inspetor 2: Se ele voltar, ele vai ser tirado como comédia, como trabalhador… se ele voltar, ele morre dentro da cadeia, pois está tentando se ressocializar. Só que, como ele está agregado a essa facção, a facção não aceita isso: ela aceita que você seja membro dela, uma coisa ou outra. Ou vai, ou fica.

Inspetor 3: Quem acha que o crime não é organizado… ele é muito organizado: por exemplo, dia de escola, a gente acha que o preso quer estudar para remir [diminuir] tempo [da pena imposta] quando, na verdade, ele é ordenado a ir à escola, pois ele é uma peça fundamental lá fora e, portanto, precisa sair logo pra ele poder ficar menos tempo na cadeia, porque ele precisa voltar para os afazeres da facção na rua.

Inspetor 2: Então, existe uma seleção, por exemplo. Porque tem uns presos que têm menos pena [de cadeia] se eles trabalharem dentro da unidade, os classificados; ou, se frequentar a escola, a cada três dias trabalhados, você reme [diminui] um dia de pena; a cada 12 horas de escola, você também reme um dia de pena. Então, existem presos que têm uma certa influência lá, e [o preso] que pegou uma pena menor, pois deveria pegar maior, ele é selecionado para ir à escola ou para trabalhar ali para sair mais rápido. Esse aí é o que a gente diz que sai pela porta da frente: ele reme pena, ele tem a progressão de pena normal e vai sair pela porta da frente realmente. Mas esse aí, apesar de ter mais uns anos para cumprir, ele não vai voltar: vai retornar ao crime, [de] que ele nunca saiu, e vai continuar. É um circulo vicioso.

Inspetor 1: Olha só, colocação final é o seguinte: na maioria das vezes, 99%, se você for ver na mídia, qualquer coisa que for relacionada a sistema penitenciário sempre coloca o preso como o coitado, ainda mais com os direitos humanos que, a meu ver, só são colocados para o lado de quem é apenado; em contrapartida [a]o preso que cometeu crime lá fora, que estuprou, que matou, que roubou, que esquartejou, a vítima: ela não recebe nada. Qual auxílio que a vítima recebe? Tem psicólogo pra dar um auxílio para essa vítima? Eu vejo muito auxílio reclusão; legal, o preso, que trabalha lá fora, foi preso, auxílio reclusão, legal – mas e pra vítima? Tem alguma coisa? Zero, nada! Em contrapartida, o guarda ou o agente penitenciário: em geral, ele é considerado como o quê? Como o cara que enriquece às custas do preso, [é] a visão da sociedade ou do mundo… sempre corrupto.

Inspetor 3: Na verdade, já existe um negócio chamado justiça restaurativa que é justamente para dar um certo valor para a vítima. Mas é um negocio muito novo no Brasil.

Inspetor 1: Mas a vitimologia… ela retorce essa aí e sempre dá respaldo pro apenado; o apenado, a meu ver, a pena que ele recebe é chula, é baixa; pra mim, a meu ver, [o apenado] deveria voltar – ou teria de ter prisão perpétua e, a qualquer tempo, o apenado reverter isso à prisão de morte. Olha só, quem entra hoje na Polícia Civil? Quem tá entrando hoje? Colega que tem 20, 22 anos, viveu pouco e vai começar a conhecer como funciona do mecanismo da segurança pública. A cadeia é uma escola de como funciona tudo; então, quem presenciar, quem tiver lá dentro, vai ver como funciona, como eles agem, todas as artimanhas.

Inspetor 3: Uma coisa muito importante numa cadeia de facção: ela privilegia intercâmbios de comandos de favela. Um cara que não tem condição de ter acesso ao companheiro dele, eles chamam “amigos” [para ajudar], pois suas favelas ficam territorialmente distantes; na cadeia, eles fazem a trama deles porque estão na mesma cela, eles se articulam.

Inspetor 2: É como se eles estivessem num armário guardados, mas é um meio de descanso deles. Onde eles vão articular diversos e diversos crimes? Através de quê? Tem celular? Beleza, tem sim, a gente tá sempre apreendendo, mas eles não têm a visita deles? Eles não têm os advogados deles? Ele vai passar a informação através do advogado, da família, e agora está mais fácil. O sistema está um pouco mais precário por conta dessa lei que não permite mais a busca pessoal íntima na visita. Apenas, agora, por scanner – ou seja, é um mecanismo que se vai fazer em casos de relevância e suspeita, e o sistema ainda, nesse intermédio, não tem os scanners. Tem verba, a verba já foi disponibilizada, mas, enquanto isso, [qualquer objeto] vai entrar. Vamos falar de arma? Vamos falar de celular? Vai ser reprimido, pois temos o scanner – mas e a droga? A droga, que é o que enriquece as cadeias? Isso, que traz a maior verba pra eles, tá lá, não vai apitar. Tem diversos meios de entrar. Eu não sei como entra, eu só sei como tira.

Inspetor 3: O preso, ele é preso por conta do tráfico; então, teoricamente, ele foi preso por uma conduta ilegal, só que, na unidade prisional, existe o espaço dele, em que ele comercializa droga. Então, é uma coisa ilógica: num raciocínio rápido, é algo que não deveria existir, pois, se o cara é preso comercializando droga e na cadeia ele comercializa droga, é ilógico.

Inspetor 2: Tocou num ponto legal: para quem acha que a gente não faz as operações, é um combate diário, combate diário ao tráfico. A gente combate o tráfico diariamente na unidade; se for pego em flagrante, ele será procedido, só que ele será procedido em duas etapas: [n]a primeira etapa, de cara, ele recebe uma penalização administrativa do sistema, que é lançada em livro, e ele vai ter ali [a pena]. Se tiver visita, vai ser cortada essa visita. Ele vai pro regime vulgarmente chamado de RDD, regime disciplinar diferenciado. Ele vai pro isolamento. Pego em flagrante, delegacia para ser lavrado auto de flagrante e procedimento – e aí vai responder por mais um crime. E isso é diariamente, tanto o tráfico quanto o adentramento, e permanência de aparelhos de comunicação, e [o] armamento que for, que seja. Isso [é], pra quem não sabe, o trabalho, que é do inspetor ou do agente penitenciário, dentro de todas as unidades, e eu falo da minha, que tem um sistema legal para combater. Aí eu vejo as lá de fora, distantes, precárias: como é que esses colegas não trabalham? Os riscos são os mesmos, é risco de você morrer ali dentro…

E como são essas operações de busca? Vocês entram nas celas com algum tipo de armamento?
Inspetor 3: Arma dentro da unidade, nunca – nossa arma é a caneta.

Nem um cassetetezinho?
Inspetor 2: Cassetete, arma de choque, gás de pimenta, nada disso… não existe e não pode. Nossa arma é a caneta. A caneta serve pra quê? Só pra escrever [sobre] eles. Mas, pra eles, é tudo de ruim: uma canetada do guarda, [e] ele perde tudo, tudo, tudo. Na vulgarmente chamada “geral”, a gente tira todos os presos da cela, os engana antes – porque temos de usar dos nossos meios também, porque senão eles enganam a gente, enrolam para esconder o que tem de esconder –, então, a gente dá uma enganada neles. A gente tira de dentro da cela para a galeria, os tira pra lá; se tem dez guardas, a gente vai tirando dez presos por vez, faz a revista pessoal ali e vai levando pro pátio. Aí a gente revista a cela atrás do quê? Materiais ilícitos, celulares, armas, entorpecentes, munição, estoque, faca, o que for.

Inspetor 1: O apenado, pra gente, é vagabundo, bandido e não vai se ressocializar. Ele vai sair dali e vai continuar cometendo crimes.

Quebrado o gelo com esse primeiro grupo de agentes, novos colaram na rodinha. Um cara, um pouco mais velho que os outros, se aproximou e pediu a palavra.

Inspetor 4: Por conta do estresse do trabalho, é muito alto o índice de pessoas baixadas [de licença] na psiquiatria, comparado com outras categorias, mesmo dentro da segurança pública ou da PM, que é uma pressão altíssima, mas que talvez não seja tão alta quanto aqui. Por exemplo, um colega meu foi reconhecido por uma visita como morador da comunidade em que ela morava. O que ela fez? Ela falou com os bandidos da comunidade. Ela disse: “O cara que mora naquela rua tal é agente”. Os caras foram de fuzil à casa do colega, o colega estava no banheiro, e a mulher dele, ao ser chamada no portão, teve a presença de espírito de dizer que ele ainda não havia chegado do trabalho. O que aconteceu? o colega teve de se mudar às pressas daquela região, teve inclusive de dormir algumas noites na unidade até conseguir alugar um imóvel para sair da comunidade. E ele se safou de ser morto pelo simples fato de ser agente penitenciário, não por nada pessoal; só por ser agente penitenciário, você está marcado. Não é só o caso de você não poder morar em qualquer lugar – é não poder frequentar qualquer lugar. Você tá marcado: você não pode ir a uma quadra de samba, a uma praia onde tenha finais de ponto de ônibus e grande concentração de pessoas das comunidades. Você fica visado. Você tem de controlar: você não sai a qualquer hora, não vai a qualquer lugar.

Por aqui passam milhares de presos: eu não posso gravar a cara de todos, mas eles podem muito bem gravar a minha. Eu já trabalhei num setor de triagem onde eu recebia três mil presos por mês. O sistema penal do Rio de Janeiro, hoje, coloca três mil pessoas por mês. As pessoas costumam falar “Tem de colocar a polícia na rua”, “Tem de prender”, mas elas não têm ideia do número de pessoas que são presas por mês no Estado – são três mil pessoas, incluindo aí todo tipo de crime, e todas essas pessoas passavam na minha triagem, olhando pra mim; então, eu pessoalmente ficaria restrito ao Estado inteiro, bandidos do Estado inteiro poderiam me reconhecer. Se eu fosse daqui pra Muriqui tomar um banho de praia, corre o risco de um bandido de lá me reconhecer; então, [é] essa pressão do agente penitenciário que as pessoas não têm noção.

Como você acha que a categoria de vocês é vista pela sociedade? Acho que existe muito a ideia do agente como um cara violento e punitivo ou alguém corrupto.
Inspetor 4: Costumo dizer: se existem pessoas que aqui fazem como não se deveria fazer, são uma minoria… hoje em dia, tem muita gente no sistema penitenciário que tem curso superior, é muito preparada, e a sociedade, às vezes, não vê isso, nivela tudo por baixo, como se todo nós fôssemos vagabundos, vivendo às custas da vagabundagem, mas não é isso. A sociedade pega fatos isolados, como se não houvesse juiz corrupto, deputados e governadores corruptos, como se a gente fosse uma categoria em que ninguém pode sair da linha; em todas as categorias, tem gente que sai da linha, infelizmente, só que, no sistema, existe lei suficiente pra controlar isso. O cara que é pego aqui fazendo algo ilegal, ele é severamente punido, ele é expulso, a categoria não gosta, não vê com bons olhos esse colega e faz de tudo para que ele seja excluído, pois isso mancha nossa imagem.

E se um agente penitenciário fizer merda e isso for comprovado? Ele vai ser preso onde?
A princípio, ele vai a uma cadeia destinada a ex-servidores públicos que cometeram infração – e que podem ser policiais civis, militares… a partir da segunda condenação, ele vai pra prisão comum. Ele não pode ter um tratamento diferenciado, ele já provou que não pode ser um cidadão de bem.

Aqui, no complexo de Bangu, existem unidades distintas para distintas facções. Como funciona?
O Estado adota esse critério de separar as facções, que veio acalmar o sistema penitenciário, pois visa a evitar conflitos internos, desde a rebelião de Bangu 1, que resultou na morte do Uê; lá, tinham facções misturadas, e o Estado adotou esse critério. E isso trouxe uma pacificação para as unidades, pois eles não têm de brigar entre eles – é como, [n]um time de futebol, brigar[em] os jogadores entre eles. Agora, você misturar CV, ADA e TCP numa mesma unidade é uma bomba pronta pra explodir; durante muito tempo, foi assim, mas, do [governo do] Sérgio Cabral pra cá, tem sido adotada essa forma.

E o miliciano? Como é? Pra onde ele vai?
O miliciano, a princípio, ele tem uma unidade própria para preso de seguro. Se ele não é servidor. Se ele for servidor, ele fica na cadeia de servidor até ser condenado; depois, ele vai ter de cumprir a pena num presídio comum. O cara que tá agregado ali, é PI que a gente chama, ele vai pra cadeia comum e não tem privilegio nenhum. Ele tá usando o poder daquele mau funcionário publico para ter uma situação; então, ele não tem privilégio nenhum.

Como já adiantei, a maioria dos caras com os quais conversei, sobretudo aqueles com nível superior, deseja, num futuro próximo, seguir a vocação para segurança pública prestando concurso para delegado, Polícia Federal ou ABIN. No entanto, o fato de o agente penitenciário no Rio de Janeiro não ser considerado profissional de segurança pública os incomoda muito. Uma das reclamações seria a dificuldade em adquirir armas de fogo para sua segurança própria fora das unidades. “Por isso, tem de votar no [Jair] Bolsonaro”, me disse um dos agentes com quem falei.

Como é essa história de que o “Agente não é policial”?
Inspetor 2: Porque, no nosso sistema aqui, no Estado do Rio de Janeiro, o inspetor não é policial, ele não está elencado ainda no artigo 144 da Constituição; então, ele não é polícia. Porem não há um preso que não fale que o inspetor penitenciário não é polícia – ele é o polícia: “Ó, o polícia tá aqui”, “Ó, polícia tá olhando você”, “É o cana…”. Diferente[mente] de alguns estados em que eles já são elencados, têm poder de polícia.

Inspetor 1: O agente penitenciário (ou inspetor, guarda), ele também tem sua vida. Quando ele sai, seja em regime de expediente ou de plantão, ele tem sua vida, ele tem sua família, seu filho, suas filhas. Então, ele deixa sua família em casa para entrar na unidade; para quem não sabe, guardar a sociedade. Nós não estamos elencados no artigo 144 da Constituição Federal, porém o agente, o guarda, também pratica segurança pública nas nossas unidades. Porque, até pouco tempo atrás, o serviço era feito em parte pela Polícia Militar. E, para o próprio interno, a gente é chamado de polícia. Então, na rua, pra eles, nós somos polícia e somos tratados como tal. Não é o fato de não estar elencado num artigo A ou B que [diz que] nós não somos polícia.

Inspetor 2: Nós não somos policiais de direito, somos policiais de fato.

Inspetor 1: Tem um delegado, não me lembro qual, que diz que nós somos mais policias do que os policias. O policial prende o preso e dá trabalho pra gente, que lida com eles todos os dias. E a gente cumpre da melhor forma possível.

Inspetor 2: A PM ou PC faz uma investigação, prende, fica três horas com o cara na delegacia. A sociedade quer o quê? Prende, prende, tem de prender, e quem é que tá lá na cadeia? Somos nós. Quem é que segura? Somos nós.

Inspetor 3: Hoje, o Estado do Rio prende uma média de 3 mil pessoas por mês. E a sociedade quer que prenda, que ponha mais polícia. Muitos não deveriam nem estar presos, não têm nem condenação…

A maioria dos agentes presentes na pelada era das turmas lotadas em Bangu 5, mas tinham dois caras que trabalham em Bangu 3 presentes lá e que toparam conversar comigo.

A unidade de vocês reúne as lideranças do CV. Como é o clima lá?
Inspetor 5: São presos com um poder hierárquico e financeiro muito alto. Eles comandam tudo, não sabemos como. Teoricamente, [a maneira] como funciona, a gente até entende, mas não sabemos como isso é exercido. São presos que, podemos dizer, [são] milionários, com faturamentos de 800, 900 mil [reais] por semana, às vezes até com negócios lícitos, e donos de boa parte da cidade, por exemplo. Caxias inteira, um dono; Rocinha tem duas facções, mas uma parte é [de] um dono só, e eles subdividem isso com gerentes, etc. Lá [na unidade], o mais baixo é gerente, e o gerente já tem um poder econômico muito alto, por isso que ele vai diretamente pra aquela cadeia, pois, se não tivéssemos essa separação, teríamos um poder hierárquico em todas as cadeias. Não conseguiríamos direcionar uma segurança para uma unidade especifica.

Mas ai não dá merda lá? Tipo “muito cacique pra pouco índio”? Ou eles se respeitam?
É organizado, cada um tem seu ponto específico e eles usam esse ponto específico para tentar aumentar seu poderio bélico, financeiro, e tentar tomar pontos rivais das outras facções; teoricamente, é assim que funciona.

Não sei se vocês têm esta resposta. Mas qual é o sentido de ter todo esse poder, essa grana, e estar preso?
Isso é complicado, porque eles tinham esse faturamento alto na rua, usufruíam dessa parte financeira na rua. Uma vez que [estão] presos, eles continuam sendo o dono, [embora sejam] gerenciados por um braço direito que continua fazendo uma reserva desse preso para, quando ele sair, ele continuar sendo o dono. A família tem um amparo, ele continua recebendo alguns itens melhores, como vestimentas; então, o que ele conseguir de melhor, uma vez que ele é o rico, ele consegue. Agora, em relação a aqui fora, ele perdeu: ele continua sendo o dono, mas ele, em tese, não tem mais como usufruir.

Existe alguma pensão para a família dos presos?
O Estado paga pensão para quem colaborava com o INSS na época da prisão. O Estado paga por filho até R$ 900.

Mas e dentro do crime?
Eles sempre se ajudam, principalmente quando essa facção é o CV; eles se ajudam, têm hierarquia – e eles têm uma organização dentro e fora das cadeias, o que atrapalha bastante o trabalho do Estado, o trabalho da segurança em si. Eles têm essa disciplina deles; então, quem tinha um comando aqui fora, quem tem uma boca, é gerente, ele continua lá dentro sendo gerente, não da boca, mas da cadeia – ele responde pelos presos.

Inspetor 3: Como é dividido ou repassado [o pagamento d]as pensões, todo preso ou é dono, ou gerente, ou soldado, ou um fogueteiro. De acordo com esse organograma, é repassado um valor, eu não sei se um valor estipulado.

O que muitas vezes acontece… às vezes, tem um criminoso que nem é conhecido pelo próprio dono, mas esse dono é venerado por ele. Então, às vezes, o preso nunca viu esse dono, mas aí ele chega a uma unidade e encontra aquele preso famoso pela mídia. Eu não sei o que passa naquela cabeça, mas, para aquele preso, é uma honra conhecer um criminoso de determinado porte. Então, às vezes, um interno chega de uma forma baixa (um fogueteiro ou alguma coisa dentro daquela organização que não tenha grande expressão ou potencial), mas ali, na cadeia, ele tenta se aproximar. Então, se ele tiver uma pena baixa, quando ele sair, ele já sai pretendendo seguir um caminho de um determinado preso que tenha mais potencial, deixa de fechar com uma determinada favela para se direcionar a outra de uma mesma facção, simplesmente pelo fato de ter crescido dentro da criminalidade na cadeia.

Vamos falar de um tema polêmico: a redução da maioridade penal. Qual impacto vocês acham que a redução, que está quase aprovada, vai ter no sistema?
Inspetor 6: Existem os prós e contras: eles falam muito em reduzir para 16 os crimes de maior potencial ofensivo. Só que o preso, o menor que comete uma infração de menor potencial ofensivo, nem sempre vai cometer aquele mesmo crime; geralmente, o reincidente sempre comete um crime mais grave, sempre. Ele comete um roubo; de repente, o próximo roubo dele já é um latrocínio. Eu sou a favor da redução da maioridade penal até pra 15 [anos] pra todos os crimes. Por quê? Porque o próprio sistema penitenciário já divide por crime, e o preso decide se ele mora em área de facção. Ele vai ficar na facção, e os presos que têm baixa periculosidade ficam em cadeias específicas. A cadeia da alta cúpula do CV, por exemplo: quem vai pra lá é quem tem condenação muito alta, mais de 20 anos. Os menores dificilmente irão parar lá. Então, os presos que cometem crimes de menor potencial ofensivo vão pra uma cadeia mais light, mais simples; mesmo sendo de regime fechado, ele [preso] vai estar dentro da área em que ele atua e do crime em que foi enquadrado. Eles falam “Ah, o menor cometeu um crime leve e vai ficar junto de um bandido de alta periculosidade”; não, porque hoje já não existe isso. Ele cometeu um crime de roubo, ele vai estar numa cadeia do CV (se ele escolher o CV), mas de menor potencial ofensivo; se ele escolher [cadeia] que não tem facção, ele vai pra cadeia de seguro.

Mas, em cima de sua pergunta, eu tenho uma pergunta – e que eu não vou dar a resposta, pois é complicado. Estatisticamente, quantos gerentes de boca de fumo menores existem? Existem muitos. E como a gente vai separar um gerente de boca de fumo de menoridade de um de maioridade? Não são gerentes? Não sabem o que estão cometendo? É óbvio que sabem! Não estão portando armas de grande porte, de uso restrito? A partir do momento em que ele está portando uma arma de uso restrito, gerenciando uma boca de fumo, ele tem de ser considerado menor? Eu não vou dar a resposta, mas, numa opinião sutil, eu acredito que não devem.

Como é hoje em dia? Quando um menor é preso?
A pena para os menores que cometem um desvio é em cima do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Se modificar o ECA e aumentar a pena deles, vai aumentar pra quanto? E vai ter de mudar a Constituição: emendar a Constituição é muito difícil, o Congresso briga com o Executivo; então, dessa forma, a gente não consegue fazer isso. Então, a forma mais rápida para aprisioná-los por mais tempo é reduzir a maioridade penal. Hoje, quando um cara de 17 anos comete um crime, ainda que o crime seja um crime de pena alta como estupro, ele fica [preso] no máximo até adquirir a maioridade. Aí você imagina uma pessoa de 18 que comete o crime da mesma forma: ela pega uma pena de 12, 20 anos… então, caso a sociedade entenda que esse menor possa ser recuperado, isso não vai acontecer. Então, eu acho que tem de reduzir a maioridade pra ele ficar mais tempo ali e, de repente, na juventude dele, ele perceber que o crime que ele cometeu ou a forma em que ele foi criado não está certa. E aí o Estado tem de entrar com saúde e educação pra que o menor, quando ele já é adolescente e comete um crime de tamanha violência como um estupro… eu acho que é muito difícil recuperar, eu acho difícil mesmo; eu, que trabalho no sistema, eu ouço a conversa deles, e a conversa deles não é de sair dali e começar uma vida nova. Os presos estão sempre conversando em sair e continuar o negocio deles lá fora; então, eu acho que a política tem de começar lá debaixo, na criança, quando a criança começar a ter sua educação e sua saúde ali… o Estado falido na saúde não consegue manter hospitais, colégios fechados… tem de ser ali, porque, quando [ele] chega na adolescência já rebelde, já querendo roubar aquilo que não pode ter, aí ele não vai ter limites. Aí quando ele entrar no sistema… o DEGASE é nada mais que um estágio para a prisão em si. A gente fez uma estatística na nossa unidade de presos por idade, e a gente conseguiu identificar que, dos 18 aos 24 anos, [essa faixa de idade] é a maioria da nossa unidade, com 1.200 presos. Mais de 50% são jovens que não foram recuperados ali na adolescência e na infância. Depois que começa, é muito difícil de recuperar…

Finalmente, eu fui apresentado ao chefe de segurança de uma unidade, um sujeito bem jovem, apesar de ser um dos agentes presentes com mais tempo de sistema.

O que é o chefe de segurança? É um nome bonito, né?
Inspetor 7: É, isso é verdade [risos]. Antigamente, era dividido, chefe de segurança e chefe de vigilância e disciplina, mas, hoje em dia, o próprio chefe de segurança faz todo esse serviço. O que seria? Ele cuida tanto da parte da carceragem mesmo, do interno, como do corpo funcional do sistema penitenciário; então, hoje, no Rio de Janeiro, está se usando o chefe de segurança que trabalha tanto nessa parte operacional diretamente, com os internos mesmo, como a parte do corpo funcional [em] que é preciso. Eu já estou há 12 anos no sistema, eu entrei em 2004; graças a Deus, na época, fui bem colocado e entrei numa das primeiras turmas. Minha primeira unidade prisional foi um presídio de segurança máxima, que na época tinha vindo de uma pós-rebelião, que foi o Bangu 3, que é uma unidade que até hoje comporta a liderança da maior facção do Rio de Janeiro. Fiquei nela por seis anos e, depois, passei por outras unidades prisionais.

Qual o perfil dos presos dessa unidade, Bangu 3?
Essa unidade é uma unidade de segurança máxima: ela comporta a alta cúpula da maior facção criminosa do Rio de Janeiro, que hoje é intitulada Comando Vermelho. O perfil desses presos… eles são a liderança da facção deles, entendeu? Então, por ser uma liderança, por eles terem uma voz forte no Rio de janeiro, é uma unidade bastante pesada, requer que o corpo funcional seja bom de trabalho, pessoal com bastante responsabilidade, comprometido com o trabalho. Porque é um nível de preso que tem uma voz muito forte dentro do Rio de Janeiro.

E que tem um poder de corromper muito forte também, né?
Também. Além dessa força que eles têm perante os comandados dele, eles têm um poder aquisitivo muito alto. Mas, desde a minha época para cá, o sistema foi melhorando muito em relação a esse tipo de comportamento do corpo funcional. Hoje em dia, a gente ainda tem essas mazelas, mas muita coisa melhorou pela valorização salarial da categoria. O pessoal que tá entrando pro sistema… é muita gente com nível superior. Então, essa galera tá entrando com uma mentalidade totalmente diferente, entendeu? Uma mentalidade muito profissional, e aqueles que têm uma mentalidade de corrupção, aqueles que acham que é dessa forma que funciona, são muito minoria. E, como eles tão ficando num grupo em que eles são a minoria, eles acabam saindo desse grupo, ou seja, eles acabam saindo até mesmo do próprio sistema; então, hoje, a gente, na SEAP, tá com um grupo muito selecionado, e isso facilita bastante, inclusive no dia a dia do trabalho. Esse nosso trabalho requer muita confiança um com o outro, porque, durante um período de 24h, a vida de cada um pertence ao outro, lado a lado, um precisando do outro, um dependendo do outro.

O inspetor recebendo uma visibilidade e um salário melhor, é óbvio que, em hipótese alguma, ele vai se corromper. A SEAP tem convênio com algumas universidades, o que te dá algum desconto. Eu participei agora de um curso à distância com a UFMG, e a minha turma era composta de vários inspetores penitenciários de todo o Brasil. Eu os ouvia falando e passava pra eles como é a situação do Rio de Janeiro hoje, e, em cima disso, eu observei como o Rio de Janeiro melhorou e vem melhorando o sistema penitenciário – claro que tem muitas coisas pra melhorar ainda, muitas coisas que tem de melhorar.

E a questão da superpopulação ou outros problemas que ainda podem melhorar? Porque eu ouvi que, numa unidade em que cabem 750 presos, tem 1.200 e só oito guardas por turno, né?
Na verdade, hoje, a nossa política criminal tem de ser reformulada; para pegar como exemplo, eu recentemente recebi um preso que praticou o crime de furto, que é o artigo 155 do Código Penal. Eu analisei no prontuário dele e verifiquei que era um furto simples, e ele era um réu primário. Então, assim, a nossa política criminal é que tem de ser revista. Porque, na unidade onde eu estou, eu separo os internos de qual forma? O cara que cometeu crime de tráfico: se ele é primário ou reincidente, você bota numa cela; em outra cela, o cara que cometeu um crime que a gente chama de Código Penal, que é o 121, o 157: roubo, furto, os outros crimes do Código Penal que não sejam [tema] da Lei de Tráfico. Aí, naquela situação, eu pensei assim: por mais que eu faça separação em algum momento, ele vai ter contato com um cara que é gerente de uma boca de fumo, de uma favela… esse tipo de pessoa que comete esse crime não deve colocá-lo numa massa carcerária como a minha, onde eu tenho um montão de reincidentes no tráfico. Aí é onde eu te falo: hoje, nós temos uma superpopulação carcerária em cima disso, é onde não depende do nosso sistema penitenciário, e sim de uma política criminal melhor.

Inspetor 5: O preso, quando ele chega, existe a possibilidade de ele dizer se ele é de alguma facção e ser conduzido a um presídio daquela facção, e isso dificulta um pouco. Às vezes, um crime é baixo, como a história que o colega falou, mas o preso matou no peito uma situação que, às vezes, não existe: ele se denominou de uma facção, às vezes só pela localidade em que ele mora.

E o estuprador? Muito se fala: “Estuprou, tá fudido na cadeia”. Como é o tratamento de fato? Ele vai direto pro seguro?
Inspetor 7: Hoje em dia, na verdade, tem muitos presos… por ter, infelizmente, muitos cometendo esse crime, e até mesmo pela alteração na lei no Código Penal… porque, antigamente, tinha de ter a conjunção carnal, penetração… só que, hoje em dia, não; hoje em dia, com a alteração da lei, um simples carinho ou um beijo à força pode ser entendido como estupro. Então, essas pessoas têm um espaço pouco delimitado dentro do sistema carcerário, pois muitos presos, principalmente dessa facção, eles não aceitam, é um tipo de crime que eles não aceitam. Então, eles mesmos expulsam.

Só que, hoje em dia, existem unidades prisionais só para comportar esse pessoal; então, eles acabam não tendo problema, porque o sistema, na hora de separar e individualizar a pena, que é que ele faz? Ele verifica o crime do cara – aí o cara cometeu o que a gente chama de “duzentão” –, o próprio sistema já separa e já direciona esse cara para uma unidade que comporta esse tipo de crime. Antigamente, era mais pesado: o cara era jogado no sistema, e, ali dentro, como a gente às vezes vê na televisão, “Ah! vai botar o anel de barbante…”, aquelas coisas que a mídia fala, mas fala sem conhecimento de causa, baseado em coisas passadas…

Em várias das matérias que eu fiz com advogados, defensores dos Direitos Humanos, policiais e, agora, com vocês, uma coisa que eu sempre sinto em comum é que o Judiciário tá todo cagado!
Na verdade, não é o Judiciário; se a gente for parar para prensar direitinho, é o Legislativo, porque o Judiciário coloca em prática o que a lei diz, tá me entendendo? A gente, às vezes, critica, a mídia faz sensacionalismo e aí a população, que não conhece, bombardeia: aí chama o polícia de corrupto, chama o Judiciário de corrupto, quando, na verdade, não é o Judiciário nem o Executivo, e sim o Legislativo que tem de mudar as coisas.

E esses caras que saem com indulto e não voltaram mais? Não tem como resolver com a tal da tornozeleira?
Inspetor 5: Na verdade, a tornozeleira é para a condicional, não é no indulto. São coisas diferentes. Mas eu falar que tornozeleira resolve alguma coisa, eu vou estar mentindo. Um desses caras que foi recapturado agora, o Afu da Mineira, a condenação dele é de 90 anos. Aí eu te pergunto… como um cara com uma pena dessas, um potencial ofensivo, bélico e financeiro desses, conseguiu um indulto?

O cara que tem uma condenação de 90 anos, se ele ficar no sistema, ele cumpre 30 anos no máximo, o benefício dele vai em cima do total da pena dele. Enfim, você acha que uma tornozeleira segura esse cara??? Ele até bota a tornozeleira, mas, quando ele chegar à comunidade dele, ele vai cortá-la fora… não vai segurar! O precedente de ressocialização cabe para um preso desses? Não cabe…

Inspetor 6: O precedente de ressocialização não cabe pra nada!!

Inspetor 5: Um furto simples, talvez; agora, um preso que tem um material expressivo e financeiro imenso na rua – às vezes, milionário, mensal –, [é] difícil. Eu tenho pouco tempo de sistema, mas, em relação a estudo, mídia, eu não me recordo de um preso de potencial expressivo que tenha sido ressocializado.

Nenhum deles virou, sei lá, pastor evangélico e continuou roubando gente de outro jeito?
Cara, eu nunca conheci um cara que fosse líder de facção nessa. Mas existem alguns presos que pedem para ir a determinados pontos religiosos do sistema para sair um pouco da visibilidade carcerária. Isso existe, mas, a partir daí, você acreditar que um preso de potencial expressivo financeiro e bélico na rua ter sido conduzido para o departamento religioso e ter sido ressocializado, não me recordo.

Inspetor 7: É porque, na verdade, na nossa política criminal, uma pessoa que tem uma liderança, realmente, para ele largar o crime, ele tem de querer mesmo, ele tem de abrir mão de tudo. Eu já tive pessoas presas comigo [em] que eles tiveram uma liderança sim e que, depois de muito tempo, eu encontrei-o na rua, ele me reconheceu e disse que largou tudo. Agora, se ele foi totalmente ressocializado ou não foi, é difícil falar em cima disso. Ele largou por quê? Porque ele quis ficar coma família dele? Por isso que é muito importante a família na relação com esses presos: eu penso muito nessa questão, sabia? Antigamente, eu tinha um pensamento mais assim, como eu posso dizer, um pensamento mais punitivo:

“Ah, o cara é vagabundo”. Hoje, não; hoje, eu até tento fazer um trabalho que talvez possa ressocializar aquele cara, eu tenho essa preocupação. Porque o cara tá preso: ele vai ficar uns trinta anos preso, mas, daqui a pouco, ele tá de volta na sociedade; então, a gente, que tá ali no sistema, a gente tem de ter essa obrigação. Hoje, eu até passo isso pra minha equipe: a gente tem de ter a obrigação de tentar mudar aquele cara, porque, daqui a pouco, ele tá na rua; se fosse uma prisão perpétua, que o cara vai morrer lá dentro… mas não: hoje, se o cara comete um crime e for condenado a dez anos, daqui a pouco ele tá na rua; então, tem de tentar colocar alguma coisa boa na cabeça dele para ele voltar e não fazer merda de novo, não voltar a cometer crimes… tem de ter essa assistência pro preso até para quando ele voltar pra rua, sei lá; de repente, ele pensa duas vezes antes de fazer uma besteira. Porque, às vezes, o cara que tá ali preso, porque a mãe era viciada ou já era do tráfico… o cara nasce naquele mundo… eu escutei isso de preso: “Pô! Eu apanhava na barriga da minha mãe, eu nasci apanhando, eu vi minha mãe correr da polícia e esconder droga dentro de casa. Com 5 ou 6 anos, a polícia dava tapa na minha cara”. Então, ele teve aquela vida de violência. O cara diz: “Pô! Minha mãe é mais bandida do que eu!”. Aí tu vai falar o que pra um cara desses? Vai tentar melhorar a situação do cara. Aí ele diz: “Como você quer que eu melhore se eu tive toda essa vida?”. Aí é quando o cara te dá uma abertura para você conversar com ele, aí tu começa a mostrar o lado bom da vida, que, de repente, esses caras não tiveram esse lado bom da vida…

Existem crimes que, para mim, me causam uma ira maior, entendeu? Uma repulsa maior. Mas o crime de tráfico, em si, eu vejo o seguinte: o cara tá lá na favela dele, ele não desce pra vender a droga dele, alguém sobe pra comprar; então, é um tipo de crime em que você tem como trabalhar com o cara. Agora, um cara que sai de casa para roubar os outros, está disposto a tirar sua vida para tomar seu bem, já é um crime diferente. A gente tem de saber diferenciar, são coisas diferentes: eu conheço gente que ficou presa comigo [em] que o cara trabalhava de dia e à noite ele traficava. Ele mesmo falava: “Eu trafico para ganhar um a mais para sustentar a família”. O cara não era de favela, o cara tinha uma família estruturada, falava pra mulher que fazia um bico à noite, e o bico dele era o tráfico. Uma hora, ele rodou; quando ele foi preso, ele não deu tiro na polícia com arma na mão. Então, são casos que a gente tem de analisar. A gente que tá num cargo de chefia, sobretudo…

Novamente é a questão do Legislativo: transformar o crime do tráfico nesse monstro de sete cabeças.
É, mas, ao mesmo tempo, num caso desses, eu, pensando como o Judiciário, é difícil você identificar esse tipo de coisa. A gente identifica porque a gente fica 24h com os caras; então, eles conversam com a gente. Eu falo pras pessoas na rua que eu entro no meio do coletivo, que fica aquele montão de presos em volta de mim conversando comigo. Eles pensam: “Meu Deus do céu, coisa de outro mundo”. Mas não é coisa do outro mundo. Claro que a gente tem nossa postura profissional que dá o respeito pra ser respeitado. Tendeu?

Tendi! Quando percebi que já tinha mais de duas horas de gravação, demos uma desencanada e voltamos para as proximidades da churrasqueira. Um amplificador espetado num celular tocava pagode desde que eu tinha chegado – até que um cara plugou um microfone, sacou um violão e começou a cantar: primeiro, Legião Urbana (“Pais e Filhos”); logo, emendou no Rappa (“Pescador de Ilusões”); e, finalmente, Bob Marley (“Redemption Song”). Foi quando eu saquei que eu já tava lá pelo nono “latão” e que era hora de ir embora.

Antes de ir, esbarrei de novo com o diretor de uma das unidades que me havia sido apresentado mais cedo. Ele limitou sua participação a apenas uma frase: “O Sistema melhorou muito, estamos fazendo o possível, mas, infelizmente, a maior parte dos nossos problemas ainda tem origem na má conduta de alguns poucos agentes”.

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