No show que fez no palco do Lollapalooza em março desse ano, Mano Brown deu um conselho para a plateia do Boogie Naipe. "Se possível, em tempos de crise, dance", disse, depois de cantar a música "Dance, Dance, Dance", uma parceria com Seu Jorge. Parece ter sido com esse mote em mente — vindo de ninguém menos que Brown, um dos artistas cuja voz política é uma das mais relevantes no Brasil — que Gal Costa, cuja voz também teve e tem importância artística e política incalculável, criou A Pele do Futuro, disco lançado em outubro.
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Trigésimo disco de estúdio da cantora baiana, que chega 51 anos depois do primeiro de sua carreira, A Pele do Futuro realiza um sonho antigo: fazer um disco todo inspirado na dance music, principalmente a música disco. Imagine essa cena: segundo um dos produtores do álbum, Marcus Preto, que também trabalhou com ela em Estratosférica, Gal ligou para Guilherme Arantes e pediu uma música que fosse "tipo Earth, Wind & Fire". O resultado foi "Puro Sangue (Libelo do Perdão)", sexta faixa do disco.
Na sexta-feira anterior ao lançamento do disco, no dia 21 de setembro, conversei com Gal e Marcus para entender como foi o processo de criação de A Pele do Futuro. A cantora explicou que, além de se inspirar na dance music, o disco também pretendia ser uma homenagem à Amy Winehouse, artista de quem Gal é muito fã. Durante o processo criativo, porém, A Pele acabou tomando vida própria e se transformando num amalgamento de não só dance music, mas MPB, samba e até baladas românticas.Isso se mostra no time de compositores que participou do disco. Além de Guilherme Arantes e outros veteranos, tanto da voz de Gal quanto da música brasileira num geral, como Gilberto Gil e Djavan. Mas nomes novos também não estão em falta: além de uma composição de Tim Bernardes ("Realmente Lindo"), A Pele também conta com uma letra de Marília Mendonça, que também participa da faixa "Cuidando de Longe" cantando.Gal conta que Marília participou do disco a seu pedido. "Marília é uma coisa especial dentro da música sertaneja. Ela tem um canto rasgado, um jeito de compôr muito intuitivo e popular", fala. "Tive a ideia de chamá-la porque queria cantar uma sofrência como dance music. Queria cantar uma música de sofrimento, mas que ao mesmo tempo que você está cantando, está dançando."
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A cantora também se diz muito fã do feminejo, e enxerga Marília como peça fundamental desse quebra-cabeça. "Só tinha homem, né? Agora as mulheres estão chegando. E ela chegou com tudo, ela é a rainha", diz.O feminejo e seu mote da presença, voz e ponto de vista feminino no sertanejo foram uma mudança política sutil, mas importante: um som que era o símbolo perfeito do homem-hétero-padrão brasileiro (e cujos muitos grandes artistas declararam apoio aos "valores tradicionais" do presidenciável Jair Bolsonaro) foi tomado pelas mulheres que falam de infidelidade e amor à sua maneira e se colocam, inclusive, contra esses valores — Marília Mendonça se juntou à campanha #EleNão, contra Bolsonaro (e foi atacada e ameaçada por tal atitude).De certa forma, essa foi a atuação política que Gal buscou durante algumas décadas de sua carreira, em suas próprias palavras: "Meu jeito de fazer política nunca foi militante. Foi mais do lado transgressor, maneira de vestir, jeito de fazer música. Mais comportamental do que militante. Já apanhei muito e já fui muito elogiada por essa razão, mas é uma coisa que me dá prazer porque se arriscar é importante, revolucionário e renovador pra mim mesma. Quando dá certo, é uma guerra que você vence."
Mas, comparando a recepção de seus riscos artísticos em outras épocas e a resposta que esses novos artistas recebem hoje, Gal chega a uma conclusão infeliz. "O Brasil encaretou muito. Sempre teve gente careta, mas o mundo está muito esquisito. As pessoas são intolerantes, não respeitam os outros, agressivas", fala. "Elas têm que aprender a conviver com o amor, com as diferenças e respeitar o outro como ele é e quer ser. O mundo tá parecendo que quer acabar."Perguntada se sente influenciada por algum novo artista da música popular brasileira, Gal responde que não, mas que se enxerga em muitos deles. "Minha influência é consequência desses anos todos de carreira que tenho, fiz muita coisa. Tive várias fases e comecei a experimentar coisas diferentes, ousar mais. Cantar diferente de tudo o que eu imaginava que seria a vida inteira", completa.A Pele do Futuro é nada mais que uma representação de todas essas facetas de Gal e uma retrospectiva dessas mais de cinco décadas de carreira numa roupagem nova. Além de, claro, uma imagem palpável da Gal de 2018: a que dança em tempos de crise.Leia mais no Noisey, o canal de música da VICE.
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