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Cultură

Marie Kondo nada mais é que o método João Doria aplicado aos lares

Nada contra a filosofia kondiana de iluminação doméstica. O problema é quando ela escapa para meios públicos.
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Foto: Reprodução/ Facebook (Marie Kondo)/ Wikimedia Commons (João Doria)

Marie Kondo tem mais em comum com o governador de São Paulo João Doria do que você imagina. Ambos são fruto de um mesmo fenômeno de simplificação higienista de problemas pra lá de complexos que formam a vida conjunta — seja em sociedade, no âmbito público, como com nosso próprio espaço privado, nossa casa e o que fazemos com nosso próprio lixo. Talvez o sucesso de ambos possa ser explicado por uma mesma filosofia.

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Kondo tornou-se um fenômeno mundial com seus livros e, mais recentemente, quando ganhou uma série produzida pela Netflix. Sua mãe sabe quem é Marie Kondo, por mais que ela jamais tenha lido uma página de seus livros. Você também a conhece, alguém já bateu na porta de sua casa com os dizeres “teria um minuto para conhecer a palavra?”, com a Bíblia de Kondo nas mãos. Em uma espécie de filosofia da banalidade doméstica, a guru japonesa tomou posse do planeta com um método organizacional que promove um desapego avariado do que não presta mais. A ideia por trás de seu método gira em torno de um valor que não se sustenta: manter apenas o que lhe traz alegria, ou, no original em japonês, tokimeku (traduzida pela hashtag, mal dos tempos, #sparkjoy).

Tudo muito bonito, quase fantástico. Até que.

Há um calcanhar para todo Aquiles. Kondo, me parece, propõe uma vida irrealizável, tanto do ponto de vista evolutivo (o acúmulo da caça do homem primitivo que possibilitou a concepção de novas e mais efetivas ferramentas de sobrevivência) quanto do ponto de vista mais chão, cotidiano, pragmático: o hábito de guardar “o que não presta” provoca estímulos tão poderosos quanto a injeção de uma substância opióide, ou, por outro lado, estimulante, no sistema nervoso central.

O ser humano se apega, para usar um termo um pouco jeca, aos seus pertences, e a seus vícios, pois o resto de sua vida não lhe basta. Não somos tão programados quanto pressupõe Kondo. Mesmo a cultura oriental, de onde a autora e popstar diz tirar a base de seu pensamento (em especial o xintoísmo), convive com seus fantasmas, com falsas expectativas, com realizações que não estimulam um passo à frente, a não ser aquele em direção para fora da ponte, ou a caminho de Aokigahara. Existe um vácuo enorme entre o mundo ideal, a vida ideal, e a vida que podemos ter. Como sabemos, há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.

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Não cabe aqui detonarmos gratuitamente Kondo, seu método, seus seguidores, sua religião. Não medito, não faço ioga, joguei a psicanálise pro espaço, mas, como se diz, “tenho amigos que são”, e até parecem se dar bem com suas terapias. E fico feliz com quem tenha encontrado em Kondo um Sidarta distópico em forma de youtuber. Quer dizer, feliz não chega a tanto, talvez simplesmente eu não me importe. Há quem encontre a paz em Kondo, há quem encontre em uma comprida carreira de cocaína, há quem não encontre em lugar algum, ou somente por um tempo – ao fim e ao cabo celebrarão em nossos nomes nossos corpos em estado de pré-decomposição. Não estaremos aqui para presenciar esse momento.

O que dói um pouco na alma é uma cultura kondiana (já existe esse adjetivo?) que se alastra como serpente em meios que deveriam propor métodos mais efetivos e menos engabelados, menos utópicos. É onde entra John Doria, numa associação que não parece difícil de estabelecer. Aquelas imagens do então prefeito caminhando por quarteirões devastados de sofrimento humano demarcam um território político nebuloso, anunciando o “fim da Cracolândia”, com abuso da força repressiva de uma polícia tantas vezes tão despreparada, pronta pra atirar, e agora com poder de fogo mais letal e potente – vide promessa aparentemente cumprida como governador.

E a piração de varrer a Cracolândia (sabe-se lá para onde, é hora de consultar Kondo) para construir um belo bulevar com o mítico investimento privado, que, no palavrório da moda, atrairá dinheiro e benesses. Em uma terminologia kondiana, trazer alegria à região e aos corações dos dependentes químicos que, claro, num cenário de deus ex machina, vão se livrar de “tudo o que não presta”. É tão simples. Sejamos orientais. Meditemos.

Caminhar pelo entorno, o que quase nenhum paulistano faz, revela o tal caminho das pedras que, em vez de guiar a um norte, se mostra sinuoso e muitas vezes trágico, uma vez epidêmico. É preciso cautela, cuidado, atenção, e mais do que tudo, é preciso ser humano para caminhar por ali. Aquelas pedras transpiram dor em São Paulo. E no entanto essa dor, de forma mágica e digna de um teatro do absurdo, precisa transmutar-se nessa condição tão iludida: em alegria tola, vazia, disfarçada e reprimida. #sparkjoy

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