MDMA

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A cura para o estresse pós-traumático pode estar no MDMA

Como o pesquisador brasileiro Eduardo Schenberg quer tornar o ecstasy parte de uma terapia para transtornos psiquiátricos.

O bater de uma porta já era o suficiente para gerar um ataque de ansiedade e acelerar o coração do ex-sargento americano James Hardin. Depois de dois anos nada agradáveis de combate no Iraque, James começou a notar os sustos frequentes, insônia e pesadelos quando conseguia pegar no sono. Ele também tinha dificuldade para respirar, coração acelerado e problemas com o álcool. Ao consultar um médico, o ex-combatente foi diagnosticado com Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em 2004, uma doença que afeta cerca de 25% dos veteranos de guerra dos EUA. Voltar para casa naquela época, diz ele, foi surreal. "Parecia que tudo estava diferente do que era quando eu fui embora, não era familiar, não parecia que eu estava em casa", relata.

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Em 2005, ele voltou para o combate, dessa vez no Afeganistão. Seus sintomas se agravaram. Foi só em 2010 que ele se despediu do exército, já exausto, e começou uma série de tentativas para voltar à vida normal. Sessões de terapia em grupo, psicólogos, psiquiatras e um monte de remédios: para ansiedade, para dormir, antidepressivos. Eram muitas pílulas, segundo ele. "Mas, em vez de consertar o TEPT que eu tinha, os remédios estavam apenas tentando cobrir os efeitos colaterais." A doença de James foi piorando. Depois de um tempo, estava resistente a todo tipo de tratamento. Sentia-se no fundo do poço. "Eu evitava multidões, nunca saía, não dirigia, me afastei das pessoas e ficava na minha casa o máximo que eu podia, bebendo muito e fumando maconha", diz.

Durante uma viagem a Delaware, ele soube de um estudo que estava sendo desenvolvido pela MAPS (Multidisciplinary Asociation for Psichedelic Studies), uma fundação sem fins lucrativos americana sobre a chamada "ciência psicodélica" que buscava encontrar a cura do TEPT. Há 30 anos atuando nessa ciência, a MAPS estava atrás de pacientes com o exato perfil de James, resistentes a tratamentos convencionais de TEPT, para testar um tipo de psicoterapia assistida com MDMA – a sigla para uma substância sintetizada que tem o nome monstruoso de 3,4-metilenodioximetanfetamina ou, como você já deve ter visto ou lido por aí, o ecstasy, a "droga do amor", entre outros apelidos.

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Sem nada a perder, ele se inscreveu para participar do estudo e começou o tratamento em 2013. Hoje, aos 36 anos, ele voltou a estudar e me contou ao telefone que está curado.

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FASE 1: A Teoria

Popular nas festas de música eletrônica, o MDMA é uma molécula modificada a partir da anfetamina. A substância foi descoberta em 1912 por um farmacêutico da Merck, na Alemanha. Nos anos 60, um químico chamado Sasha Shulgin, falecido no ano passado, começou a pesquisar os efeitos do MDMA em transtornos psicológicos. O problema foi que, com a proibição do LSD naquele tempo, o cerco se fechou para outras drogas sintéticas. Em 1985, o ecstasy foi proibido nos EUA.

Na época, Rick Doblin, psicólogo fundador e diretor executivo da MAPS, se juntou com outros pesquisadores para barrar a proibição. Ele queria investigar melhor as propriedades terapêuticas da droga sintética. "O FDA não sabia que a droga estava sendo usada para terapia, então tentamos aprovar esse uso, mas eles proibiram mesmo assim, então fundamos a MAPS em 1986", conta Rick. No Brasil, a droga foi proibida depois que a ONU adotou as mesmas medidas de suspensão de qualquer tipo de uso, produção e comércio.

A ideia é deixar os sentimentos à flor da pele mesmo.

Assim, Rick e outros especialistas começaram a desenvolver pesquisas com o MDMA para uma série de transtornos, inclusive o autismo. O tratamento de estresse pós-traumático pelo qual James passou dura um ano e consiste em uma terapia assistida por dois terapeutas com o uso de três doses de MDMA em três meses, sendo a primeira de 75 miligramas e podendo ser aumentada para 125 miligramas se o paciente se sentir confortável.

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Antes de tomar a droga, os pacientes passam por três sessões de terapia sóbrios, sem efeito de nenhum medicamento. Depois, começa a fase do MDMA e, por último, um acompanhamento dos sintomas nos pacientes. "Você se sente muito confortável, em paz, não sente medo de falar sobre coisas que você não falava há muito tempo, que o TEPT torna desconfortáveis e você nunca pensava sobre. Na hora, você se sente seguro. Eu me senti muito diferente e melhor sobre o transtorno", relata James.

Tony Macie, soldado de 28 anos que também combateu na operação americana no Iraque em 2005 e foi diagnosticado com TEPT, descreve que a experiência com o MDMA o fez pensar sobre as coisas que viu na guerra sem a sensação de culpa e mal-estar que carregava desde que voltara para casa. "É uma sensação de paz interior e relaxamento que eu buscava desde que tinha voltado da guerra. Consegui processar a minha ansiedade, meus pensamentos autodestrutivos", conta. "Não foi algo que eu experimentei por algumas horas, isso se manteve depois. Ainda lembro como me senti naquele dia, é como uma jornada, você pega o que aprendeu e passa a usar com sabedoria."

Assim como James, Tony tomou muitos remédios e tentou várias terapias para aliviar seus sintomas, mas nada deu certo. "Eu não gostava da ideia de um médico me receitar remédios para tomar todos os dias e não poder me dizer quando eu ficaria melhor", diz.

Os efeitos de diminuição da ansiedade, aumento da sociabilidade e redução de medo que James e Tony sentiram na pele foram observados na teoria durante a Fase 1 dos estudos da MAPS. Os pesquisadores descobriram que o MDMA poderia fazer com que os pacientes conseguissem falar sobre o trauma. A ideia é deixar os sentimentos à flor da pele mesmo. De acordo com o biomédico brasileiro Eduardo Schenberg, que estudou o modelo de terapia da MAPS durante seu doutorado na Inglaterra, o MDMA age no hipocampo do cérebro, região ligada à memória, e aumenta a atividade do córtex frontal, relacionado aos pensamentos mais elaborados e ao raciocínio abstrato.

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"O modelo proposto é que o MDMA, ao diminuir o tom emocional de medo, aumentar a evocação de memórias e aumentar a atividade do córtex frontal, fornece a oportunidade para que, com auxílio dos terapeutas, o paciente faça uma ressignificação do trauma, ele consegue desassociar o trauma desse medo pavoroso e ele começa a conseguir olhar para o trauma como uma memória distante que aconteceu lá no passado, mas que não está mais acontecendo agora. Ele consegue separar isso. Esse é o caminho da cura", explica Eduardo. Ele alerta, no entanto, que a droga em si não é a cura nem um remédio, e sim parte de um processo.

Fase 2: A Prática

Depois da teoria, veio a parte prática. Na chamada Fase 2, foi colocado sob análise, nos Estados Unidos, um grupo de veteranos de guerra que apresentavam sintomas fortes do transtorno e não tiveram melhoras com os tratamentos psiquiátricos convencionais.

Os resultados foram positivos. Um estudo publicado pela MAPS apontou que 83% dos pacientes tratados com o MDMA não apresentavam mais os sintomas do TEPT. Os outros 17% tiveram uma melhora significativa dos sintomas, apesar de ainda terem a doença. No mesmo estudo, foi feita a pesquisa com um grupo que recebeu comprimidos placebo; 25% desses pacientes também não apresentaram mais sintomas de TEPT, atestando certa eficiência do tratamento somente com a terapia.

Os experimentos foram muito elogiados pela revista Nature, uma das mais importantes revistas científicas do mundo, e a pesquisa se difundiu para outros países. Agora, além dos EUA, Canadá, Israel, a Suíça e também o Brasil, entraram na Fase 2 da pesquisa.

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Eduardo Schenberg, 35 anos, tomou para si a missão de trazer a terapia com MDMA para o Brasil. Crédito: Felipe Larozza/VICE

Eduardo será o responsável. Formado em biomedicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele fez doutorado na mesma universidade sobre o uso de Ayahuasca na neurociência. Parte dos seus estudos ele completou na Imperial College em Londres, onde entrou em contato com o experimento com MDMA da MAPS. Ele completou um curso sobre a terapia oferecido pela organização e, tocado pelas histórias de vida que viu lá, ele achou que era hora de trazer a novidade para cá. As razões são muitas, diz.

A primeira está ligada ao grande número de casos de TEPT no país. Uma pesquisa da Unifesp aponta que, apenas no eixo Rio-São Paulo, 90% da população já sofreu alguma experiência traumática e 10% dessas pessoas desenvolveram sintomas do transtorno de estresse pós-traumático. Episódios de assassinatos, violência doméstica e sexual, assaltos e sequestros ocasionados nas grandes cidades são apontados como responsáveis pelo desenvolvimento de TEPT, depressão, síndrome do pânico e outras doenças psicológicas.

O segundo fator que torna esse tipo de tratamento necessário no Brasil é a guerra às drogas, que já matou mais gente do que a overdose, de acordo com o Eduardo. Para o biomédico, a ilegalidade do MDMA é um crime contra a humanidade. "Tem uma ironia do destino aí porque a proibição das drogas é exercida por meio de guerra, repressão, arma, tiroteio. E isso causa estresse pós-traumático. Estamos causando estresse pós-traumático pra impedir as pessoas de fazer uso recreativo de um negócio que faz elas se sentirem bem e pode ser a cura do estresse pós traumático. Então nós estamos optando pelo trauma ao em vez de optar pela medicina e pela cura."

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Para o Rick, diretor da MAPS, a execução da pesquisa do tratamento com MDMA no Brasil é importante para mostrar que a terapia com a droga pode funcionar em diferentes contextos. "As pessoas são as mesmas em todos os lugares, se alguém tem câncer no Brasil, não é diferente de ter a mesma doença nos EUA, o mesmo vale para os transtornos psicológicos", afirma.

O tema é espinhoso e, por isso, o Eduardo lançou uma campanha de financiamento coletivo para poder colocar a pesquisa em prática aqui. A opção pelo financiamento coletivo – e não o financiamento por meio de um órgão de fomento à pesquisa – foi feita por causa da delicadeza do assunto e também da crise econômica que causou cortes nas verba destinada às pesquisas nas universidades.

Vídeo da campanha de financiamento coletivo para trazer a terapia da MAPS para o Brasil

Com o apoio da MAPS, um estudo piloto será desenvolvido em 2016 com quatro pessoas que serão atendidas por um casal de terapeutas especializados na prática em Goiânia. Os pacientes tomarão o MDMA sob supervisão dos terapeutas e especialistas e passarão a noite no consultório sendo observados, como aconteceu na prática nos EUA. A sessão de terapia sob efeito do ecstasy pode ter duração de até dez horas, de acordo com o Eduardo.

Para poder trazer a droga ao Brasil, ele já conseguiu autorização da Anvisa e reservou cerca de R$ 8 mil dos R$ 50 mil do orçamento para lidar com trâmites e burocracias legais de importação dos comprimidos, que serão fabricados na Suíça. A pesquisa também já foi aprovada pelo Comissão Nacional de Ética em Pesquisa em Brasília. De acordo com o Eduardo, a pesquisa com o ecstasy não é proibida no Brasil, mas há entraves que encarecem e criam uma grande burocracia para trazer os comprimidos.

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"É muito mais difícil importar isso ou maconha medicinal hoje no Brasil do que importar remédio quimioterápico para o câncer, que não tem relação com uso recreativo. A pesquisa é desestimulada por um moralismo, por toda uma ideologia de governo e, principalmente, por uma comunidade acadêmica que sequer sabe que foi mal-educada sobre essas substâncias no seu treinamento acadêmico", afirma Eduardo.

Crédito: Felipe Larozza/VICE

Fase 3: A Comprovação

Esse tipo de pesquisa está enfrentando resistência não só no Brasil, mas pretende revolucionar as terapias convencionais para doenças psiquiátricas. Primeiro, porque se trata de uma droga psicodélica com efeitos fortes. Em segundo, por causa da briga comprada com as indústrias farmacêuticas. Segundo o Eduardo, "estamos falando de menos drogas do que os psiquiatras já receitam".

"É muito pouco rentável vender três comprimidos para o paciente, três cápsulas ao longo de todo o tratamento, enquanto eles podem vender três por dia por muitos anos", diz Eduardo. "Então é todo um novo modelo que está surgindo e que tem bastante oposição quanto a esse modelo. Isso faz parte do jogo científico."

"A pesquisa é desestimulada por um moralismo, por toda uma ideologia de governo e, principalmente, por uma comunidade acadêmica que sequer sabe que foi mal-educada sobre essas substâncias no seu treinamento acadêmico"

Quando o Eduardo conseguir o dinheiro que precisa pelo Catarse, a MAPS pretende dobrar o valor para o lance decolar. Em 2017, quando os quatro voluntários tiverem passado pelo tratamento no Brasil, o país vai fazer parte da Fase 3 da pesquisa da MAPS, que será multicêntrica internacional, ou seja, acontecerá em todos os países participantes.

O objetivo da Fase 3 é reafirmar os resultados obtidos na Fase 2 e encaminhá-los para a ONU até 2021 para que a substância seja reclassificada e cada país tenha a possibilidade de regulamentar a terapia com uso de MDMA. "É uma pesquisa com tremendo potencial, com consequências positivas a curto, médio e longo prazo" diz o Eduardo, que se mantém otimista com os resultados. "O MDMA muito provavelmente vai ser a primeira substância psicodélica regulamentada com finalidades terapêuticas e vai ser o primeiro medicamento na história do planeta feito 100% por instituições sem fins lucrativos", conclui.

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