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Saúde

A corrupção que vi trabalhando num hospital público grego

Dar dinheiro para o médico antes da cirurgia é proibido, mas depois da operação é um “presente de agradecimento”.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Todas as fotos por Orestis Seferoglou, apresentadas numa matéria da VICE Grécia intitulada 'Passei duas noites dirigindo por Atenas numa ambulância grega'. Elas não têm ligação com o hospital, pessoas ou eventos descritos nesta matéria.

Matéria originalmente publicada na VICE Grécia.

“Vou te colocar na unidade de exames de sangue porque você parece inteligente”, disse o diretor de RH, chamando outra pessoa da equipe para fazer minha introdução. Logo depois, uma mulher baixinha ruiva, de óculos branco e preto e batom vermelho, veio me receber e me levou para a escrivaninha onde eu começaria meu estágio de enfermagem de dois anos.

Eu devia ter uns 21 anos quando o programa de estágios da minha escola me deu a opção de trabalhar num dos maiores hospitais públicos de Atenas, na Grécia. Eu não estava muito empolgada com a escolha, mas era um trabalho remunerado, o que me permitiu largar meu trabalho como garçonete num café. E assim, numa manhã chuvosa de outubro, entrei pelos portões do hospital, empurrei a pesada porta de madeira, e tive meu primeiro gostinho do que é o sistema estéril de saúde pública na Grécia.

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Logo percebi que um hospital é o pior lugar para se trabalhar. É uma câmara de dor infinita e cheiros de morte, café e antisséptico, onde você tem que encarar os melhores e piores aspectos da humanidade diariamente. Isso aconteceu há nove anos, mas não esqueço a manhã em que vi uma mulher sentada nos degraus que levavam para o pequeno pátio do hospital. Ela tinha uma expressão de choque no rosto e um lenço na mão. Seus filhos pequenos estavam brincando em volta dela, pedindo biscoito e suco.

Enquanto eu passava, ouvi ela repetir secamente “Gente, me escutem, o papai morreu”. Senti que ela estava tentando injetar o conceito de morte neles, fazer as crianças entenderem que nunca mais veriam um homem que — algumas horas antes — estava entre eles. Nunca tive uma experiência de segunda mão mais chocante, então comecei a andar mais rápido.

Como descobri, todo dia no hospital era mais do mesmo. Pessoas gritando de dor, pessoas chorando nas salas de espera, pessoas carregando sacolas cheias de documentos médicos em filas intermináveis, pessoas falando com parentes pelo celular. E café — um fluxo interminável de café.

Quando comecei a trabalhar lá, eu ficava mexida com todas as histórias trágicas, sintomas e doenças ao meu redor, a ponto de me tornar hipocondríaca. A cada 15 dias eu fazia uma enfermeira fazer um exame de sangue em mim, para ter certeza de que estava saudável. Nos três meses que trabalhei nesse departamento, não sei quantos médicos consultei para garantir a mim mesma que não sofria de alguma doença incurável.

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No final desses três meses, fui transferida para outro departamento porque estava causando problemas para a minha supervisora. A principal questão é que eu não seguia o cronograma que ela tinha estabelecidos para os pacientes. Por exemplo, ela colocou um bilhete na minha mesa dizendo que os resultados dos exames deviam ser entregues aos pacientes depois do meio-dia — não parecia certo para mim, porque recebíamos os resultados logo cedo e tínhamos muito tempo para entregá-los antes do meio-dia. Diferentemente da enfermeira sobrecarregada mas sempre sorridente do departamento, nossa supervisora tirava sua pausa da manhã entre 11 e 12h, o que significava que ela ficava fora do escritório por uma hora, “para tomar um café e comer um sanduíche”. Eu não tinha nada para fazer, então toda vez que alguém me pedia os resultados, eu entregava. Ela me pegou no ato algumas vezes e meu tempo na unidade de exames de sangue chegou ao fim.

Fui transferida para o Departamento de Urologia do hospital. Quatro residentes trabalhavam ali, junto com três enfermeiros auxiliares e três diretores, dos quais um era puramente decorativo; ele ficava só sentado lá, esperando sua aposentadoria. O escritório dos médicos era uma sala muito pequena no segundo andar, decorada com quatro pequenas escrivaninhas e algumas cadeiras.

Meu trabalho era preencher as fichas de entrada e alta dos pacientes, selar resultados de pacientes ou devolver registros aos arquivos do hospital quando necessário. Eu também tinha que montar o cronograma de cirurgias e dar apoio como secretária. No geral, era o trabalho perfeito: eu tinha todo o tempo do mundo para beber café e falar com meus amigos pelo Facebook.

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No começo, não gostei muito porque tinha que ficar numa salinha apertada com dez pessoas, mas logo nos acostumamos uns com os outros. Médicos são um tipo estranho; eles podem ser santos e demônios, paranoicos e racionais, calmos e histéricos ao mesmo tempo.

Um dia, o gerente virou para mim e disse “É quase hora de ganhar nossos bônus”. Ele então explicou que, três anos atrás, ele tinha operado um paciente com câncer de próstata. Desde então, apesar de o paciente estar saudável, ele o fazia passar por um exame específico a cada dois meses custando US$240. Esse tipo de coisa acontecia abertamente na maioria das clínicas. Não foi a primeira nem a última vez que vi um médico ser subornado ou mentir na cara dura para um paciente.

O tempo que passei lá foi uma lição de vida, já que os hospitais gregos são lugares de mais intriga e drama que todas as temporadas de House of Cards e Grey's Anatomy juntas. Foi lá que aprendi, por exemplo, que dar dinheiro para o médico antes da cirurgia é considerado “corrupção”, mas depois da operação é um “presente de agradecimento”. Aprendi que o dinheiro não é dado para o procedimento — o médico é obrigado a realizá-lo. O dinheiro supostamente é dado para cuidado pós-operatório, algo a que os pacientes também têm direito. Os médicos obviamente sabiam disso, mas criavam uma ilusão de que o suborno era necessário para o cuidado do paciente. Alguns já davam um preço, outros eram mais discretos.

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Às vezes acho que o processo todo — que é endêmico no sistema de saúde da Grécia — faz alguns pacientes sofrerem de algum tipo de síndrome de Estocolmo. O melhor exemplo dessa mentalidade que me lembro foi a vez em que um paciente com câncer insistiu em me dar US$20 “pra tomar um café”. O que ele realmente precisava de mim era que eu carimbasse sua licença médica, o que eu não podia fazer sem a assinatura de um médico. Essas licenças eram dadas às quartas, porque era quando os médicos tinham tempo para assinar o documento. O paciente me procurou na quinta.

Tudo que eu tinha que fazer era xerocar sua licença antiga e passar para o médico responsável pelo diagnóstico dele. Eu disse que faria o que fosse possível e que ele teria que esperar até o médico sair da cirurgia. Recusei o dinheiro, sem graça, dizendo a ele que não bebia café.

Aí você tinha os representantes farmacêuticos. Toda manhã, fora dos consultórios dos médicos, junto com os pacientes você tinha três ou quatro homens ou mulheres de roupa social esperando. Não sei se a relação simbiótica entre médicos e empresas farmacêuticas acabou agora, mas na época em que trabalhei lá os privilégios prometidos pelos representantes de remédios eram escandalosos. Jantares no Hilton, banquetes em tavernas, viagens pagas para conferências, e todo tipo de presentes — de livros a relógios, dependendo do tempo de casa, os médicos podiam pedir qualquer coisa para prescrever drogas específicas para seus pacientes. Até eu recebi presentes, mesmo não podendo passar receitas.

Claro, também há médicos que são o oposto disso. Aqueles que sofrem para dizer aos pacientes e parentes que tem algo errado com sua saúde. Aqueles que adiavam folgas para trabalhar turnos extras num ambiente ingrato. Pessoas que perdiam o aniversário do filho para lidar com uma emergência.

Eles andavam pelo hospital pálidos, com olheiras profundas, e quando os pacientes davam presentes eles compartilhavam com as enfermeiras e o resto da equipe. Quando perguntavam a eles “Doutor, quanto te devo?”, eles respondiam “Só se cuide”, e davam remédios grátis para pessoas que não tinham plano de saúde.

Claro, médicos devem receber salários justos por seu trabalho. Mas para chegar a esse ponto, a mudança precisa vir primeiro daqueles que precisam deles, os pacientes. Precisamos nos livrar da ilusão de que esse é o único jeito que nossa sociedade pode funcionar, só porque crescemos dentro desse sistema. Aí, o resto não terá outra opção a não ser seguir o exemplo.

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