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Como ‘Black Mirror’ foi de uma série inteligente para uma pensata televisiva

Still do episódio “Perdedor” da série Black Mirror (Foto por David Dettmann/Netflix).

Matéria originalmente publicada na VICE UK.

Num ano que pareceu mais uma pilha de lixo em chamas, Black Mirror voltou numa boa hora. A série de Charlie Brooker migrou muito bem para o serviço de TV digital Netflix, onde ganhou audiência no mundo todo. Sua terceira temporada, que estreou na última sexta (21) — a Netflix teria pago $40 milhões pelos direitos do programa — continua com as principais fascinações que o título sugere: homem, máquina e a questão de quem controla quem.

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É uma premissa legal. Há décadas o terror tem sido o gênero mais apto para falar sobre nós mesmo. Nada vai mais fundo no comportamento humano que vulnerabilidade, medo e paranoia irracional. Em todas as culturas, os tropos de horror podem ser lidos como antropologia. Mas o que Black Mirror diz sobre nós agora?

Não muito, pode parecer. Não precisamos de terror e ficção científica para se envolver em alegoria, mas nem é preciso dizer que a potência disso aumenta quando isso acontece. O grau pode variar – o cânone tão elogiado de filmes de terror japoneses é muito eficiente nisso, mas se você busca entender, digamos, o patriarcado do país, a fascinação do gênero pela raiva feminina diz muito.

Black Mirror, por outro lado, é uma série inteiramente desprovida de alegoria. É robusta sobre a coisa em si. A tecnologia é dublê, acho, da tecnologia? E nossa devoção servil às conveniências dela deveria encarnar como somos, bom, escravos dessas conveniências.

A grande mudança dessa nova temporada vem da Netflix, onde o programa agora entra na faixa “série original”. Deixamos o confinamento inglês das duas primeiras temporadas e entramos em vários países, sob o olhar de diretores americanos seletos. Como resultado, a textura da nova temporada parece um tanto desigual, com o ritmo e o estilo variando bastante. Os tons saturados que você reconhece da TV inglesa persistem, menos pelo conto de abertura de Joe Wright, que parece mais uma cena de videogame.

O ritmo granulado do drama britânico às vezes é varrido pela edição febril norte-americana. O episódio encabeçado por Dan Trachtenberg, “Versão de Testes”, segue na velocidade de um thriller paranoico, enquanto “Cala a Boca e Dança” de James Watkin é de um sofrimento repetitivo. Uma mudança estranha. Pela minha visão do outro lado do mar, a TV inglesa geralmente é uma experiência insular, algo que a “era de ouro” dos EUA vem tentando adotar desde então — o segredo é não revelar quase nada tanto na tela como abaixo da superfície.

Black Mirror muitas vezes é comparado à Além da Imaginação, outra série bastante niilista. A tecnologia tinha um grande peso em Além da Imaginação também, mas o enredo era mergulhado em paranoia com a Guerra Fria. O caráter cíclico era central no programa de Rod Serling. A ansiedade atômica, os perigos do macartismo, o medo do Outro; Além da Imaginação era repleto de paranoia. Um episódio de época, um cenário moderno, um futuro distópico elaborado; não eram escolhas da narrativa, esses aspectos deveriam significar todos os jeitos como estávamos condenados a repetir os mesmos conflitos, com as décadas e os bodes expiatórios sendo meros detalhes, numa história trágica sem fim.

Black Mirror tem menos a dizer sobre onde estamos e quem somos no século 21, porque ainda estamos tentando descobrir isso mais uma vez. A série é mais sobre comportamento que sobre medo. Se Além da Imaginação parecia um teste de Rorschach, Black Mirror é uma pensata.

O episódio de Brooker é indignado, mas para que fim? Serling se preocupou quase que inteiramente com moralidade, e a ironia de muitos finais niilistas da série parece um “eu te disse” perene. A série tem pouco a dizer, principalmente por causa dos caprichos do momento a que está respondendo. Pouco tempo atrás, a tecnologia estava selada com a bagagem da utopia: uma ferramenta que deveria nos guiar para uma nova era cheia de promessas. Séries como Jornada nas Estrelas corajosamente nos levaram para um tempo em que nossos males seriam amenizados pela tecnologia, não causados por ela. Nesse sentido, Black Mirror é um conto de fadas sombrio sobre nossa época, onde as suspeitas de que as máquinas não estavam totalmente do nosso lado se tornaram real. Mês passado, um ensaio da New York Magazine sobre os perigos do vício em tecnologia se tornou um cartão-postal dessa guinada.

Mas essa é uma tentativa monodimensional de manifestar medos tridimensionais. Alguns episódios se mostraram estranhamente proféticos: num episódio da temporada dois, “Momento Waldo”, um artista de TV consegue enganar o público e escalar os ranques políticos, um eco sinistro do que aconteceria nos EUA; o piloto da série mostrava o primeiro-ministro britânico transando com um porco.

A nova temporada tem um episódio que funciona como uma metáfora poderosa da imigração, tocado o que é uma questão política definidora para os dois continentes a que Black Mirror pertence agora. Vivemos tempos absurdos, no qual assuntos como muros, verificar a idade de refugiados e denegrir advogados de direitos humanos é lugar-comum. Muito do que torna a ficção científica poderosa é a maneira como ela nos faz confrontar quem somos. Black Mirror rende algumas horas de entretenimento, mas seu interesse é nos dizer quem poderíamos ser. É um alerta no olho do furacão, muito pateta em sua estética para ser registrada como arte, e muito óbvio em sua narrativa para ser classificado como metáfora. Black Mirror quer que o público veja seu próprio reflexo, mas não se importa muito com quem realmente está olhando do outro lado.

Black Mirror está disponível no Netflix desde 21 de outubro.

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Tradução: Marina Schnoor

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