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Música

O Mundo Secreto do Footwork Japonês

O estilo de street dance surgido nas ruas de Chicago foi apropriado pelos japoneses que desenvolveram uma cena inteira do footwork – dançando de verdade e até organizando batalhas.

Paisley Parks, um dos coletivos de footwork mais empolgantes do Japão.

Enquanto pesquisava a cena footwork britânica, ou a falta dela, como revelou minha busca, falei com Mike Paradinas. Artista eletrônico altamente respeitado, Paradinas também é o cabeça do Planet Mu, o pioneiro selo britânico que em 2010 lançou Bangs & Works Vol.1, a compilação que apresentou o footwork não só aos britânicos, mas para uma audiência global. Mike me disse que o gênero não só tinha decolado no Japão, mas que uma cena florescente tinha se desenvolvido ao redor da sua cultura, incluindo acirradas competições de dança. Por que será que a música tinha criado raízes no Reino Unido, mas não a cultura na sua totalidade?

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"Bom, para começar, por aqui precisamos estar muito chapados para dançar, o que, claro, é meio contraproducente para o desenvolvimento de uma cena ao redor de um estilo de dança tão atlético", diz Paradinas. "Mas acima de tudo, historicamente, a cena britânica sempre se sentiu um pouco culpada em importar ou se apropriar de outras culturas, preferindo ou inventar cenas próprias, ou se apropriar de elementos da cultura original e dar o seu próprio toque a ela. Mas no Japão eles fazem as coisas de outro jeito".

"De modo geral", ele explica, "a cultura japonesa aposta muito na apropriação de elementos da cultura pop ocidental na sua totalidade. A verossimilhança é primordial. Então, no caso do footwork, em vez de parar simplesmente na adoção da música, os japoneses desenvolveram uma cena inteira para além dela – dançando de verdade e até organizando batalhas".

Professor de inglês durante o dia e figurão do footwork à noite, Kent Alexander organiza o Battle Train Tokyo, o único evento de "batalha" da cena japonesa (sendo a batalha a versão do gênero do concurso de dança). "Cerca de 25 participantes pagam 2 mil ienes para entrar", diz Alexander. "É o equivalente a cerca de 20 dólares – para competir pelo prêmio de US$ 500 (50 mil ienes). É uma batalha de verdade, cara, do tipo "vou te arrebentar". É intenso".

Battle Train Tokyo – Último Round

A cena japonesa se estende por três cidades – Hiroshima, Osaka e principalmente Tóquio. Mas Alexander me assegura que é uma comunidade incrivelmente unida. "Todo mundo conhece todo mundo, cara. Estamos todos conectados. Todos os DJs viajam entre as cidades". Embora no geral seja de classe média, a cena atrai sujeitos de diversas profissões: de engenheiros e vendedores a escritores e programadores. Diferentemente da cena de Chicago, as drogas não entram. "É muito limpa", Alexander nos garante. A cena ainda não tem uma DJ, mas as mulheres são cada vez mais comuns nas batalhas. Quanto aos superstars da cena, há dois reis incontestáveis: Tukuya, duas vezes vencedor do BTT, e Weezy, conhecido pela velocidade incrível do seu footwork.

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Weezy x Takuya

De descendência nipo-americana, Alexander, de Yokohama, cresceu no Japão, mas frequentou o Perdue College, na Lousiana, justamente quando o footwork estava nascendo, em 2008. Ele se tornou um discípulo fiel do que ele chama de "o novo beat". Nesta época, viajou quatro horas da Louisiana até Chicago para procurar Traxman e acabou passando cerca de duas semanas com o titã do footwork. Quais foram as suas impressões da cena de Chicago? "Em uma palavra, gueto. Era um verdadeiro gueto. A maioria das batalhas e festas acontecia num conjunto de casas abandonadas decadentes, com o papel de parede descolando e tudo mais".

Passados seis anos, Kent é co-fundador de um dos maiores selos japoneses de footwork, o Бh○§†, e membro de um importante coletivo, o Pan Pacific Playa. Além disso, também integra o Paisley Parks, o trio de produtores japoneses que recentemente juntou-se com Traxman para fazer o EP Far East. O lançamento foi uma colaboração pioneira entre a galera da Teklife e o contingente japonês.

Antes de RP Boo e Rashad, Traxman foi o primeiro DJ de footwork de Chicago a viajar para o Japão para tocar. "Quando o Traxman veio, cara, foi uma coisa muito grande para nós. Todo mundo se juntou", conta Kent num sotaque arrastado, parecendo um surfista da Califórnia. "Trax até passou duas noites na minha casa!". E como ele é? "Ele é ótimo, cara. Um grande, grande cara. Mas como ele gosta de falar… Sabe como ele é no Facebook? Multiplica isso por 100".

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2012: um dos primeiros círculos de footwork japoneses a ser gravado.

O Japão é conhecido por importar culturas inteiras, mas na maioria dos casos elas não sobrevivem à tradução sem pelo menos algum grau de distorção. Estava curioso para saber se o mesmo se aplicava à cena footwork japonesa. Teriam os japoneses dado o seu toque pessoal ao gênero? "Bem, uma coisa é única no footwork japonês", diz Alexander. "É a influência do rock na cena".

Como qualquer variante do footwork desde Bangs and Works Vol. 1, a cena japonesa atraiu produtores e DJs de vários gêneros. Em particular, o som atraiu desertores do house japonês e da florescente cena de bass music do país. Mas, segundo Kent, a cena tem presenciado um influxo de fãs de rock operando dentro e ao redor do distrito de arranha-céus de Tóquio. A SHINJUKO ROCKS, influente festa de rock da capital japonesa, começou a sediar festas juke, e as bandas de rock procuram cada vez mais inspiração no footwork.

O quartel-general informal da comunidade parece ser o clube Kata, em Tóquio, situado acima do Liquid Room, um dos maiores clubes de house e techno da cidade. Mas em vez de brotar de um local central – como no caso da maioria dos gêneros underground – esta cena cresceu através de um sistema de equipes que se tornam coletivos e muitas vezes funcionam como selos.

Entre esses selos, há três dominantes: o ascendente Shinkaron, de Tóquio (vulgo "os jovens desafiadores"), o selo de Alexander, Бh○§†, em Yokohama, e o selo que tem sido a força propulsora da importação japonesa do gênero, Booty Tune, de Osaka, liderado pelo DJ Fulltono, considerado o padrinho do footwork japonês.

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O DJ April, cofundador do Booty Tune, estima que as raízes do footwork no país remetem ainda aos anos 90 e ao gênero conhecido como ghetto house. "A cena juke japonesa se originou com a explosão do ghetto house", explica April. Ele se refere à variante crua e acelerada do house com uma mistura de rap e uso pesado de equipamentos da Roland que tem mais em comum com o bounce de Baltimore e com o Miami Bass do que com o house tradicional de Chicago. Ao trocar os beats four-to-the-floor pela sincopação, isso evoluiu para o que hoje conhecemos como juke. "Passada a explosão do gênero em Chicago, lá por 2000", continua April, "alguns DJs japoneses – inclusive o Fulltono – continuaram seguindo o movimento de Chicago, e foram esses artistas que depois formaram as bases da atual cena juke no Japão. Consequentemente, todos os fundadores do juke japonês têm a mesma idade dos artistas de Chicago – RP Boo, Traxman, Rashad, Spinn etc".

O documentário Ghetto House

Uma influência adjacente no footwork japonês é o ghettotech, o som maluco e trash de Detroit que se tornou proeminente no final dos anos 90 e que – em oposição ao culto à erudição do Belleville Three – era propositadamente despretensioso. Artistas japoneses como DJ Family, DJ Fulltono e DJ Go estavam e permanecem ativos até hoje na cena ghettotech de Detroit.

Contrário ao senso comum de que a compilação de Paradinas foi o ano zero do footwork em nível mundial e ansioso para esclarecer as coisas, April alega que, na verdade, a cena japonesa é anterior ao lançamento de Bangs & Works, em 2010 – teria começado dois anos antes. Fundado em 2008, o Booty Tune não só foi o primeiro selo a lançar o footwork no Japão, mas um dos primeiros a fazê-lo em âmbito internacional. Os outros únicos são o Juke Trax, de Detroit, e o Bang Da Box, de Chicago. Então, talvez estejamos reescrevendo o papel da cena japonesa na história oficial do footwork. Em vez de curadores ou cooptadores de segunda onda, os caras do Booty Tune na verdade foram pioneiros na formação do footwork como gênero reconhecido. "[Os japoneses] adotaram [o footwork] muito cedo", diz April. "Artistas como o Fulltono e o Hayato 6Go já eram ativos na cena em 2010, então, nesse aspecto, o Japão estava muito à frente da, digamos, cena britânica".

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DJ Fulltono - "Start It Up [Juke Mix]"

Primeira a adotar o footwork, a cena japonesa também foi pioneira em quebrar as regras, ousando experimentar com o som de maneiras que Chicago não imaginava. "A cena japonesa não só se apropriou do som 'legítimo' de Chicago", conta o DJ April, "…relativamente desde o começo, mas também o misturou com outros gêneros para criar um som original". De acordo com April, o techno e o breakcore tiveram o maior impacto na mudança do gênero. "Artistas dessas correntes trouxeram sons de suas próprias cenas que não existiam no som de Chicago. Mas também, a cultura dance no Japão sempre foi extremamente rica e diversificada".

Outra inovação exclusiva do footwork japonês foi a ascensão do que é conhecido como "party juke": hip-hop misturado com footwork de pista. Pelas estimativas do DJ April, "um lançamento marcante" foi a compilação 160or80 (ouça no Bandcamp), de 2013, que reunia a nata do hip-hop fazendo rap misturado ao footwork. Foi uma perversão gloriosa do footwork de Chicago, os vocais são feitos exclusivamente com samples.

"Bad Habit", uma parceria com o rapper japonês Punpee, foi um grande hit em 2013.

Quando o segundo volume de Bangs & Works foi lançado em 2011, a cena japonesa já estava a pleno vapor, e os artistas da segunda e terceira onda invadiram a comunidade, liderados por artistas como Uncle Texx, Gnyonpix e Picnic Women e o (atualmente) bombante DJ Aflow. E hoje o crescimento da cena não dá nenhum sinal de que vai desacelerar. "Um grande indicador de quão grande a cena se tornou é a compilação Jap Mutaton Bootyism, de 2012, diz April. "Se incluirmos o segundo volume, lançado em 2012, quase 100 artistas colaboraram nesses lançamentos. Simplificando, a cena footwork no Japão existe numa escala que não se vê em nenhum outro lugar do mundo. E isso inclui Chicago".

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No fim, como toda subcultura jovem, o footwork japonês surgiu em reação à forças sociais alienantes. No caso do Japão, a cena footwork é uma reação indireta à notória cultura corporativa opressiva do país. "Na cena, não existe hierarquia. Todo mundo é igual", diz Kent. "Fora das batalhas, ninguém está tentando bancar o chefe. Ninguém acha que tem mais valor que os outros e ninguém tenta dominar".

A cultura corporativa do país também é relevante quando se trata da musicologia do footwoork. O gênero é ilógico por natureza, desordenado, e o seu estilo de dança, embora metódico, é bastante anárquico. É fácil, portanto, perceber qual é o apelo do footwork para aqueles presos em estruturas empresariais repressivas, em que o individualismo e a autodeterminação são subordinados às necessidades da máquina. "Para as pessoas na cena, o footwork alivia o estresse", diz Kent. "É uma fuga do seu dia-a-dia. É onde elas conseguem se expressar livremente".

Paisley Parks - "G.H.O.S.T MV"

Nos últimos quatro anos, o governo japonês tem estado em guerra com a cultura dance. A Lei de Controle e Melhoria do Setor de Entretenimento, a chamada "Lei Anti-Dance", tornou ilegais pistas de dança com menos de seis metros quadrados, tornando difícil para os donos de clubes criarem espaços a preços razoáveis. A polícia, enquanto isso, usando o seu mandado estatutário (uma legislação arcaica de 1984 que proíbe dançar depois da meia-noite) vem fechando clubes impunemente. Mas Kent permanece desafiador: "Não somos tão extremos a ponto de tentar fazê-los mudar a lei anti-dance, mas ações falam mais alto do que palavras. Estamos na boate, dançando, sem intenção de parar".

Você pode seguir o John e conferir as reflexões dele sobre o footwork no Twitter. E muito obrigado a Francis Waring pelas traduções – você pode achá-lo aqui.

Tradução: Fernanda Botta