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Revista de 2013 - A melhor fruta da época

Jeff Mills vai levar o Porto ao espaço

Techno num foguetão e discos no Japão.

A determinação de Jeff Mills acabou por recompensá-lo da melhor maneira: colocou-o à frente do seu tempo e à parte de quase tudo o resto. Bastaria ler na transversal alguns artigos sobre o grande patrão da techno norte-americana para entender que o seu estatuto raramente é levado à balança com outros semelhantes. Os seus discos, tal como os seus sets ao vivo, são auto-explicativos e dispensam comparações. Jeff Mills é o seu próprio meio e, cada vez mais, um criador focado nos seus próprios fins, entre os quais existe uma crescente obsessão pelo Espaço e pela antevisão de uma música adequada a desafios que o homem ainda desconhece.

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Toda esta antevisão do futuro exige uma especial concentração por parte de Jeff Mills, que, nos últimos vinte anos de activo, resistiu ao chamamento das várias febres electrónicas (desde o trip-hop ao dubstep) para se dedicar quase exclusivamente à techno. E não estamos a falar de uma techno qualquer, mas sim daquela que surgiu numa temporada tão fértil e exigente como foi a transição dos anos 80 para os 90, em Detroit, cidade em que a picardia entre DJs era frequente nas madrugadas das rádios. Foi a partir desse contexto competitivo que Jeff Mills começou a crescer: desde os primeiros tempos de DJ de techno apetecido pelo grande público até aos mais recentes anos de maturidade artística, durante os quais as expectativas das pessoas passaram a ser secundárias face ao que Mills pretende para a sua música.

A missão de Jeff Mills, na música, bastaria para aquecer uma conversa com o homem, mas há também que falar sobre a recente compilação

Sequence: A Retrospective of Axis Records

e sobre a performance

The Trip

, que tem data marcada para a Casa da Música, no Porto, no próximo dia 2 de Fevereiro (sábado). A 27 de Julho, Jeff Mills volta à mesma sala para um concerto com a Orquestra Sinfónica do Porto. O que sabemos sobre

The Trip

 é que é feito da colagem de mais de cem filmes de ficção científica, com especial ênfase nas expressões faciais dos protagonistas, como se, com isso, procurasse registar o horror naqueles que ousaram invadir o desconhecido.

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Neste caso, o melhor é lançar o diálogo e saber das origens de

The Trip

pelas palavras do seu mentor: “O conceito surgiu do meu interesse por filmes de ficção científica e pelo cenário que se proporciona na maioria das histórias. Existe, neste género, um momento decisivo em que os personagens percebem que, por causa das suas acções ou de certas mudanças, deixa de haver qualquer hipótese de retomar o ponto em que tudo estava antes. Os personagens são obrigados a pensar e a decidir o que fazer de seguida. Basicamente, o filme trata do desejo humano de viajar para o Espaço e de descobrir novos mundos. Julgo que esse é um aspecto que será muito mais explorado à medida que a humanidade evoluir”.

Mas, para chegar às estrelas há um preço a pagar e Jeff Mills calcula que a viagem “não será particularmente fácil ou confortável, tal como em qualquer outra grande fase de transição na História.

The Trip

procura explorar a forma como poderemos lidar com tais aspectos”. A grande experiência que esperamos do serão de 2 de Fevereiro, na Casa da Música, não será, contudo, restringida a uma sova de filosofia e existencialismo, pela mão da techno, porque, tal como garante o anfitrião, “a noite será dividida em duas partes: a mistura de

The Trip

e uma festa depois disso. Designei música diferente para cada uma”.

A firmeza no discurso de Jeff Mills reflecte-se de igual modo num conjunto de princípios de que não abdica, independentemente das tendências e métodos em seu redor. Quando assume o lugar de DJ, o mago de Detroit continua, por exemplo, a não recorrer a qualquer

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software

para sequenciar as faixas, e isso fará dele um caso cada vez mais raro. Mills prefere, em vez disso, depender essencialmente de três pratos de discos e de toda a habilidade acumulada. A mesma filosofia analógica marca a sua produção em estúdio, onde uma primeira fase de composição envolve, geralmente, instrumentos físicos (entre os quais muitos sintetizadores e

drum machines,

tal como manda a dura lei de Detroit). A partir de uma linha de montagem delineada com tamanha segurança, a techno nasce coesa, integrada numa mesma linha de pensamento e, ao que tudo indica, em quantidades generosas.

Um ritmo de produção tão intenso acabou por colocar Jeff Mills em vantagem, quando partiu para a aventura de resumir 20 anos da sua

label

Axis, numa compilação adequadamente intitulada

Sequence: A Retrospective of Axis

. Esta vistosa caixa com dois discos não só é capaz de formar um possível arco de evolução da música techno, como também de documentar a naturalidade com que Jeff Mills conduziu o género pelas mais diversas renovações. A própria dimensão de

Sequence

sofreu várias mudanças, tal como assegura o arquitecto do projecto: “Durante estes últimos anos, percorremos muitas versões, que iam desde um conjunto de cinco discos até apenas 20 temas. Cheguei mesmo a considerar a possibilidade de fornecer as diferentes pistas de algumas faixas para que as pessoas fizessem as suas próprias versões. Acabámos por decidir que o melhor seria uma selecção modesta, embora representativa”. Ao que parece, a mesma abundância de opções abrange também a formação de uma boa parte dos álbuns: ”Começo geralmente com muitas sequências e vou diminuindo até obter apenas o necessário. Quando faço um disco, é habitual dispor de três ou quatro vezes mais faixas do que aquelas que acabam no alinhamento.”

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Insistimos em

Sequence (A Retrospective of Axis Records)

, como tema de conversa, para tentar então descortinar que desafios surgiram na mistura de temas tão distantes entre si. Mills esclarece que a sua “intenção passava por reproduzir, tanto quanto possível, o som original de cada faixa, mas a organização do meu estúdio sofreu tantas mudanças nestes 20 anos, que tornou-se difícil chegar a essas mesmas acústicas. Algumas coisas foram gravadas em fita, outras em DAT e até em CD-R. Neste processo, evitei ao máximo a utilização da tecnologia actual para melhorar a qualidade do material”.

Com uma lenda mais que firmada no Japão, o patrão da Axis coloca-se a jeito de algumas questões acerca do país do Godzilla. A primeira passa por tirar a limpo a veracidade daquele retrato feito por quem esteve em Tóquio e que parece, em vez disso, ter regressado da lua. A perspectiva de Jeff Mills difere pela moderação: “O Japão é definitivamente único. Se pode ser comparável à superfície da lua, não sei ao certo, mas deixa-nos com a sensação de estarmos num lugar situado noutro tempo e espaço. Em determinadas alturas, a paisagem urbana nocturna do

Blade Runner

, do Ridley Scott, é realmente comparável à de Tóquio e Osaka.”

Fosse necessário encontrar uma explicação para esta proximidade entre o deus da techno e o seu terreno sagrado a oriente, e essa teria de incidir em dois aspectos: as edições especialmente concebidas para o país (já lá iremos) e um conjunto de actuações verdadeiramente míticas (alguns relatos falam mesmo em abdução). Contudo, o namoro nem sempre conheceu este tipo de intensidade, tal como refere Mills ao revisitar os seus primeiros contactos com o Japão: “No início do anos 90, uma boa parte da minha interacção era como DJ. Tocava em muitas festas e festivais, e não tinhas muitas oportunidades para explorar a música conceptualmente.”

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A situação inverte-se quando o visitante de Detroit começa “a ver mais vezes a luz do dia”, naquele território, e tudo entra nos carris quando passa à condição de emigrante temporário, no Japão: “Era habitual, entre 2002 e 2006, dedicar todo o mês de Outubro a residências de DJ em clubes com o Lunars e o Womb, na zona de Shibuya (Tóquio). Comecei a partir daí a entender um pouco mais acerca de como funcionam as mentes e os hábitos dos japoneses. Eles possuem uma enorme capacidade de racionalizar sobre um objecto que lhes mereça a total atenção. Depois disso, a avaliação do detalhe e toda a dedicação em geral chega a níveis que nunca vi antes. É realmente incrível. Achei que seria o melhor lugar para cultivar com música designada a temas particulares.”

Entre os tais discos “particulares”, lançados com todos os luxos típicos do mercado japonês (design de topo, faixas exclusivas,

obi-strip

), poderíamos, por exemplo, voltar a destacar as mais recentes edições de

Sequence: A Retrospective of Axis

(seja em

box

, com CD duplo, ou em livro, com as faixas armazenadas num cartão de memória). Em alternativa, seria viável recuar até 2010 para avaliar de perto esse objecto único que é

The Occurrence

, um híbrido com superfície de CD numa face e autêntico vinil (pronto a tocar) na outra. Se, pelas suas características distintas,

The Occurrence

representa uma presa para qualquer colecionador, o seu conteúdo não deixa de ser menos interessante para os experientes e os iniciados na arte de apreciar Jeff Mills. Os títulos das suas faixas (“Inception”, “Opening the Passageways”), tal como o som mais amplo e atmosférico, fazem de

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The Occurrence

uma espécie de campo aberto para as ideias de Mills sofrerem uma nova mutação. Não nos admiraríamos, portanto, se estivesse aqui mais um importante capítulo de transição, num percurso feito de álbuns tantas vezes ligados por conceitos semelhantes e pela mesma narrativa de descoberta (do Espaço).

Inevitavelmente, o formato híbrido toma menos espaço do que as suas partes separadas. Isso leva-nos a perguntar a este aficionado do Espaço se não tenciona por acaso compactar o formato da sua música para que mais facilmente seja transportada numa viagem à Lua. Sem se esquivar por completo à questão, Jeff Mills prefere antever a evolução da experiência e nem tanto o seu suporte: “Acredito que os formatos musicais evoluirão em constante paralelo com os nossos próprios hábitos. Quanto maior for a nossa necessidade de escapismo, mais avançada será a tecnologia envolvida na escuta. Consigo, claramente, ver capacetes no lugar dos auscultadores ou projectores de múltiplas dimensões em vez dos televisores. A tecnologia reage às nossas necessidades, porque o negócio destas companhias é responder ao que queremos.”

Com o final da conversa no horizonte, uma pergunta sobre as últimas descobertas

sci-fi

de Jeff Mills abre a porta a uma resposta típica de um hiperactivo: “Nada. Tenho andado demasiado ocupado em estúdio a trabalhar nos próximos álbuns —

J

ungle Planet

e

Where Light Ends

, este último dedicado ao primeiro astronauta japonês, Dr. Mamoru Mohri. É uma banda sonora para a sua primeira viagem ao espaço, em 1992, a bordo da nave espacial Endeavour.” A justificação parece-nos natural: aquele que faz os seus filmes pode não dispor de muito tempo para ver os dos outros. Fica a sobrar apenas uma vontade irresistível de saber se o fascínio espacial do entrevistado diminuiria caso ele próprio viajasse até onde poucos foram. E aqui Jeff Mills remata — tal como esperávamos — sem hesitações: “Bem, eu ficaria muito feliz por isso.”