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Relato

Como era ser mulher, jovem e livre em Portugal no tempo das nossas avós

No Portugal de Salazar, ser mulher significava ser dependente. Dependente de uma sociedade patriarcal, fechada e opressora. Estas são histórias de mulheres que, à sua maneira, contrariaram o que a sociedade queria e esperava delas.
mulheres com cravos em Lisboa
Foto por Sérgio Felizardo.

Em 1911, a Organização das Nações Unidas implementou o Dia Internacional da Mulher em homenagem a todas as mulheres que, pelo Mundo fora, eram e são privadas de direitos pelo simples facto de… não serem homens.

Como millennial e mulher, choca-me o quão tarde o conceito de igualdade chegou ao nosso país. A ditadura, obviamente, não ajudou Portugal a evoluir neste aspecto, fechando, na generalidade, as mulheres em casa sem as deixar trabalhar, viajar, estudar… Não havia nada que uma mulher pudesse fazer sem a autorização de um homem - o marido, ou o pai - a quem devia ser sempre obediente.

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Até 1974 as mulheres estavam, segundo a lei, muito abaixo dos homens. E 1974 foi ontem. Decidi, por isso, perguntar às nossas tão queridas avós - para quem olhamos de forma tão inocente, como se fossem uns anjos que nos alimentam e mimam - como foi para elas viver num mundo que tanto as negligenciou. Ao ouvir as suas histórias é impossível ficar indiferente. Uma realidade que pouco ou nada tem a ver com a nossa de agora, uma privação quase total, uma luta diária para poderem, simplesmente, ser quem eram.

Lembremo-nos, como mulheres, que todos os direitos que tomamos hoje como adquiridos foram conquistados com muito esforço e luta. Há que lhes dar valor e não aceitar nada que não seja liberdade e igualdade. O que mudariam estas avós se tivessem tido as mesmas oportunidades que temos hoje?

Maria Sobral, 82, (Beja, 1935)

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VICE: Como era ser jovem e mulher onde nasceu e cresceu?
Maria Sobral: Nasci no concelho de Beja, no monte da minha família. Fui criada no meio rural, o que é importante ter em conta ao ler as minhas respostas. No campo alentejano, naquela altura, a luta pelos direitos das mulheres não era tema que se debatesse, principalmente comigo – filha de um dono de terra. Os trabalhadores quererem direitos já tirava o sono ao meu pai…. quanto mais as mulheres!

Como era a vida de uma mulher trabalhadora nessa altura?
No meio rural só as mulheres de classe muito baixa é que trabalhavam. As mulheres eram para ficar em casa e não sair, a não ser que acompanhadas. Lembro-me que nem às viagens organizadas pela escola podia ir, porque não podia sequer pedir ao meu pai autorização. Nunca me deixaria sair do país sem ele, por exemplo. Havia algumas (poucas) profissões que os homens achavam que as mulheres podiam ter, como médica, assistente social, professora, ou enfermeira. Mas eram muito poucas as mulheres que tiravam cursos superiores…

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Alguma vez trabalhou?
Trabalhei sim, como assistente social. Mas, só depois de todos os meus quatro filhos serem nascidos e irem à escola. A minha filha mais nova tinha oito anos quando comecei, em 1973. Até aí tinha vivido alguns anos fora, para acompanhar o meu marido que foi trabalhar para Inglaterra e estava ocupada a criar os meus filhos. Confesso que até essa altura nunca tinha sentido a vontade de ir à procura de um emprego. Curioso (ou talvez não) é que, na instituição onde depois trabalhei, não havia qualquer homem, assim como o meu marido não tinha nenhuma colega mulher.


Vê o primeiro episódio de "Woman", com Gloria Steinem


Nessa época, o salário da mulher ainda pertencia, por lei, ao marido. Cabia-lhe a ele gerir os dinheiros da família e, caso entendesse, pôr término ao contrato de trabalho da mulher. Como é que era para si?
O salário ficava para mim, aliás, o meu marido insistia que assim fosse. É e sempre foi um homem bastante mais político que eu, que acreditou desde cedo na igualdade de direitos. Tive (e tenho) muita sorte no marido, sei que, para quem não teve a mesma sorte que eu, a vida foi difícil nestes aspectos. Lembro-me principalmente que, nas famílias com menos dinheiro e mais dificuldades, os homens eram mais agressivos no controlo do salário da mulher. Contudo, a verdade é que, mesmo que se passasse exactamente o mesmo, nunca outra mulher do meu estrato social me diria que o marido não a deixava trabalhar, ou que lhe ficava com o dinheiro todo. Não se falava dessas coisas.

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Se tivesse os mesmos direitos e oportunidades que nós, mulheres jovens de hoje em dia, temos, mudaria alguma coisa na sua vida?
Eu concretamente acho que não. Pelo menos não em escolhas de vida como trabalho, viagens ou ocupações. A verdade é que só depois de tirar o curso é que me tornei mais política em relação aos nossos direitos, mas aí já tinha filhos e estava demasiado ocupada para pensar nisso mais a sério.

É preciso perceber que em Beja, na forma como nós éramos educadas, como meninas, não estávamos despertas para tais causas, nem éramos incentivadas a estar. As famílias donas das terras eram, aliás, muito ligadas e apoiantes do Estado Novo – os homens, claro, as mulheres eram afastadas da política. Eu até para tirar a carta tive que me emancipar, porque o meu pai achava que uma senhora não devia guiar. Por isso, embora não mudasse nada em termos de escolhas de vida, gostaria de ter estado mais ciente na altura do quão desigual a vida era e das implicações disso. Hoje em dia é, sem dúvida, tudo muito melhor. Tudo menos o presidente dos Estados Unidos.

Fátima Antunes, 75, (Fundão, 1941)

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VICE: Onde nasceu e onde estudou?
Fátima Antunes: Nasci no Fundão, na Beira Baixa. Vim para Lisboa cedo, nos anos 50, para estudar num colégio interno. Em Lisboa as escolas eram bastante melhores do que no Fundão. O meu pai queria que eu estudasse, deixar-me-ia até ir para a faculdade se eu quisesse. Mas, quando acabei o liceu matriculei-me num curso de restauros. Não gostava muito de estudar, o que gostava era de artes. Isso, o meu pai já não apoiou, não considerava que fosse curso que se prezasse e, sendo esse o caso, teria que regressar ao Fundão em vez de ficar "a brincar" em Lisboa. Nessa altura, como já namorava com o meu [futuro] marido, decidimos casar-nos e assim consegui ficar na capital. Éramos muito novos, tínhamos 21 anos. Assim sendo, acabei por nunca conseguir estudar e tirar um curso, mas acompanhei o meu marido no dele.

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E alguma vez teve um emprego?
Não, nunca. Trabalhei em casa onde se trabalha muitas vezes tanto ou mais que num emprego. Tive três filhos e andava sempre com eles atrás. Não era dona de casa, era mãe. No sentido em que não cozinhava ou lavava assim tanto, não gostava. Gostava de passear, de (mais tarde) participar nas manifestações da faculdade que o meu marido frequentava. Durante os primeiros anos do nosso casamento ele era estudante, por isso tive grande contacto com essa vida, com os seus colegas, num ambiente em que o intelecto era prezado e livre. Mas sempre com os meus filhos comigo, para todo o lado, no meu carro a apitar pelas ruas, a acompanhar os protestos.

Parece que gostava muito desse lado das faculdades e da vida mais activa e fora de casa. Como se sentia por não ter podido estudar também?
Tive uma vida agradável. Viajei muito e tentei aproveitar as oportunidades que tive da melhor maneira. Ajudava muito o meu marido no seu trabalho e estudos. Sempre fomos grandes companheiros. Talvez por ele vir de uma família em que as mulheres eram muito participativas e davam opiniões no que dizia respeito ao trabalho dos homens. Mas tenho, confesso, muita pena por nunca ter trabalhado fora de casa. Cheguei a pedir emprego ao meu pai a uma dada altura, mas ele disse-me que o meu emprego eram os três anjinhos que tinha em casa (os meus filhos).

Se tivesse tido os mesmo direitos e oportunidades que as mulheres têm hoje em dia, o que acha que teria sido diferente na sua vida?
A minha opinião quanto à luta das mulheres por igualdade sempre foi que as mulheres não devem ser iguais aos homens, porque naturalmente não o são, mas que não devem nunca ser privadas do que desejam, só pelo facto de serem mulheres. Merecíamos as mesmas oportunidades. E, depois de as termos, as pessoas valem pelo que são e por aquilo que fazem.

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Se tivesse tido os direitos de hoje poderia ter sido uma profissional. Na altura queria estudar artes e queria muito ser secretária de direcção. Se fosse possível teria, sem dúvida, trabalhado. As circunstâncias da vida não mo permitiram e sempre tive muita pena, sempre quis ter uma profissão. Aliás, é algo que insisto em dizer às minhas netas: têm que tirar um curso, ter emprego, trabalhar e terem meios próprios de sustento, para que não estejam dependentes dos homens.

Ana Spínola, 67 anos (Lourenço Marques, Moçambique, 1950)

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VICE: Onde nasceu?
Ana Spínola: Nasci em Lourenço Marques (actual Maputo, capital de Moçambique) onde vivi até aos 18 anos e onde tive uma infância muito feliz, com uma família que sempre me apoiou muito. Quando terminei o liceu propus aos meus pais sair de Moçambique para ir estudar para fora, para a Europa. Foi-lhes difícil compreender o porquê de querer sair, mas não deram luta. Eu queria mais mundo, sentia que ali tudo era muito pequeno. Queria maior integração na sociedade, conhecer outras culturas. Assim, fui para Inglaterra em 1968.

Como foi vir de uma então colónia portuguesa para a Europa?

A vida em Londres era bastante ordenada e já muito politizada. Foi lá que entrei em contacto com os movimentos pela libertação das colónias e pela igualdade de direitos. Foi quase um ano depois de estar em Inglaterra a estudar, quando vim a Portugal passar umas férias, que sofri o grande choque cultural. A vida em Moçambique era muito mais relaxada e aberta que em Portugal, onde uma mulher era olhada de lado, ou mesmo verbalmente atacada por ir de calças para o cinema, por fumar, ou por tomar café com um amigo. Sim, em Lourenço Marques a elite era pouca e era elite por causa da cor da pele, o que sempre me machucou bastante, mas a forma de viver a vida, principalmente na liberdade da mulher, era muito mais avançada que em Portugal. Sentia-se a ditadura, sentia-se uma sociedade acinzentada, limitada, em que uma mulher ser expressiva era muito mal interpretado.

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Faz parte da primeira geração de mulheres a poder trabalhar em Portugal sem restrições legais. Com que idade começou a trabalhar e o que significava para si esta liberdade?
Já tinha trabalhado em Inglaterra enquanto estudava, mas foi quando vim viver para Portugal, em 1974, que dei inicio à minha vida de trabalhadora. Foi difícil conseguir emprego no pós 25 de Abril, mas eu sempre tinha sido muito motivada quanto a querer trabalhar. Acabei por conseguir um emprego como secretária de administração numa firma de dispositivos médicos, onde trabalhei até à reforma e onde fiz carreira. Como secretária estava salvaguardada da luta de géneros, porque era "emprego de mulher". Não havia homens secretários. Trabalhava num mundo de dois géneros, mas num cargo feito para mulheres. Apareci no mercado de trabalho quando os princípios da igualdade estavam já mais impostos, se bem que, na prática, nunca o são, nem hoje em dia.

Alguma vez se sentiu discriminada, ou sentiu que, de alguma forma, lhe foi dificultado o processo de fazer carreira?
Sempre tive muito boas avaliações como profissional e a dada altura decidi confrontar a hierarquia e perguntar se haveria espaço, naquele cargo de secretária, para subir na carreira. Disseram-me que não, mas consegui passar para o cargo de supervisora e, a partir daí, fui evoluindo e subindo até acabar a reformar-me na qualidade de Country Manager. Nunca senti na pele inveja ou incómodo por parte dos meus colegas homens, não sei se por ingenuidade minha, ou por falta de atenção a esse detalhe. Acho que neste aspecto fez muita diferença que a empresa fosse uma multinacional, não estar presa aos costumes de um só país. Valorizava-se o desempenho e competência e eu sempre dei o melhor de mim e mereci as oportunidades que me foram dadas.

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Contudo, em jantares ou almoços de trabalho com colegas homens não me sentia muito confortável, porque sabia que na sociedade da época, com muita tendência para o mexerico e para a suspeita, poderia facilmente ser visto com maus olhos eu estar na companhia de homens em vez de estar em casa com o meu marido e filho.

Sentiu diferenças na forma como um homem fazia carreira em relação a uma mulher?
Admito que não foi fácil. Tive muita sorte em ter um marido que me apoiou tanto, que tomava conta do nosso filho nas minhas várias viagens e trabalho e que tinha orgulho em ter uma mulher com uma vida profissional activa. Como mãe atormentava-me que o meu filho sentisse as minhas ausências, ainda que sempre curtas, por isso sempre fiz questão de estar presente em todas as reuniões de pais e fazer com ele os trabalhos de casa. Como directora, o que me atormentava era o olhar mais maternal se tinha de despedir alguém, ou tomar uma decisão mais complexa nesse sentido… custava-me. As mulheres são mais sensíveis nestes aspectos do que os homens, sentia a vida daquelas pessoas nas minhas mãos, via as implicações que uma má decisão minha poderia ter na felicidade delas.

Quanto à família, para mim sempre foi uma questão de orgulho ser financeiramente independente. Não seria capaz de aguentar que alguém pensasse que vivia do dinheiro de outros. Sinceramente, acredito que, ao ser independente, tive mais liberdade para ser eu mesma e me apresentar tal e qual como sou, sem ser mal interpretada.

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Teve então, no geral, uma boa experiência como mulher e profissional, numa sociedade então ainda um pouco atrasada…
Talvez porque sempre procurei rodear-me de pessoas que tivessem pontos em comum comigo, consegui viver e aproveitar a vida e a liberdade da melhor maneira. Foi a minha carreira profissional que me fez crescer, mais do que qualquer outra coisa. Foi no mundo do trabalho que ganhei uma nova percepção social, que cresci como mulher e que me tornei numa melhor cidadã.

O 25 de Abril foi um acto de paixões, que trouxe consigo também vários excessos com os quais eu não me identificava, mas as paixões são assim mesmo: às vezes cegam. Contudo, o saldo foi extremamente positivo. Eu não saberia viver no Portugal do antes 25 de Abril, seria impensável não poder ter opções políticas, ou não ter a liberdade de dizer o que pensava. Viver num mundo que não é plural, para mim, não é viver.

Judite Almeida, 77, (Sobral de Monte Agraço, 1939)

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VICE: Alguma vez trabalhou?
Judite Almeida: Trabalhei muitos anos, mas só até ter filhos. Sempre li muito, o que despertou em mim uma incessante vontade de conhecer o Mundo. Por isso, aos 19 anos pedi à minha família que me deixasse ir para França, estudar francês e trabalhar. Foi uma luta: não concordavam com a minha escolha nem a aprovavam.

A verdade é que, onde cresci, não conhecíamos nenhuma mulher que tivesse ido para o estrangeiro assim tão nova, muito menos trabalhar. Tive a sorte de o meu pai me ter dado autorização para ir, porque ele sim sempre me apoiou muito. Chegada a França arranjei um trabalho com uma família, com a qual fui viver, como explicadora de português e babysitter dos filhos. Foi lá que conheci a democracia. Lembro-me que me fascinava o facto de se poder falar abertamente de política e de se valorizar opiniões de pessoas de partidos políticos diferentes. Depois de viver em França vivi ainda em Inglaterra e só me mudei para Lisboa em 1962. O regresso foi um desafio… A vida era cinzenta e cheia de proibições.

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Em que aspectos sentiu mais o desafio que era, nessa época, ser mulher?
Ao contrário da maioria das mulheres da minha idade eu tinha vivido em países democráticos. Desde aí que decidi que iria trabalhar e cultivar-me, esforçar-me por exercer os direitos que sabia que me eram devidos. Quando trabalhei como hospedeira na TAP - trabalho que adorava - era regra da companhia que as mulheres não podiam casar. Os homens podiam, claro. Só nós é que não. Quando me apaixonei e casei tive que me despedir.

Também quando tirei a carta era insultada pelos outros condutores (homens). Caía-lhes mal ver uma mulher a guiar. Ou a usar calças, já agora, porque calças era roupa de homem. Sofri muitos insultos pela maneira de vestir, gritavam-me "Vá para casa coser meias!". Qualquer atitude que fosse diferente era muito mal recebida, como se estivesse a perturbar a ordem.

Faria alguma coisa de diferente na sua vida se tivesse as possibilidades que as mulheres têm hoje em dia?
O melhor que o 25 de Abril trouxe foram as ideias igualitárias. Mas, por muito que nos dias de hoje a situação seja infinitamente melhor, a igualdade entre géneros existe mais na teoria do que na prática. Os costumes demoram muito mais a mudar que as leis… Quanto à minha vida, orgulho-me de ter agido sempre de acordo com os meus princípios. Estava restrita às circunstâncias, claro, mas casei com um homem que sempre me respeitou muito e aos meus desejos de trabalhar e nunca renunciei às minhas crenças igualitárias.

Depois de ser mãe tornou-se difícil conciliar os horários de trabalho, tanto para mim como para o meu marido. Percebi então que tinha que deixar de trabalhar, mas, por satisfação pessoal, não podia ficar só em casa. Decidi fazer uma coisa com a qual sempre tinha sonhado: aos 37 anos matriculei-me na faculdade e licenciei-me em Filosofia. Sempre impus a mim própria fazer aquilo que aspirava e é o que acho mais espetacular na situação actual: embora o Mundo não esteja fácil, é possível - como nunca antes foi - ter um sonho e torná-lo realidade.


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