Shujaiya Virou Poeira

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Shujaiya Virou Poeira

Toda a Gaza sofreu durante a guerra, mas Shujaiya enfrentou uma dizimação única.

Trabalhadores recuperam vergalhões de prédios bombardeados no bairro de Shujaiya, Gaza, destruído durante a Operação Margem Protetora de Israel em 2014. Arte por Molly Crabapple.

"Aceitamos a tristeza, mas a tristeza não nos aceitou."

Rindo, Ibtisam* se sentou na poeira, seu rosto largo e espirituoso emoldurado por seu hijab florido. Em seus 45 anos vivendo em Gaza, ela já viu tanta tristeza que rir é a única resposta.

Seu marido morreu durante a segunda intifada de um ataque de asma provocado por estresse, desencadeado, segundo ela, por um disparo de tanque. Ela ficou sozinha com quatro filhos para criar, o que ela fez numa casa cercada por oliveiras, galinheiros e um jardim onde ela plantava tomilho.

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Essa casa foi – assim como quase todo o bairro Shujaiya – destruída por bombas e tratores de Israel durante a Operação Margem Protetora, em Gaza, no verão de 2014.

A Operação Margem Protetora foi a terceira incursão militar em larga escala de Israel na Faixa de Gaza desde que o Hamas tomou o controle em 2007. Durante a campanha, as forças israelenses mataram mais de 2.100 palestinos, de acordo com a ONU; desse contingente, 70% eram civis, incluindo aproximadamente 500 crianças. Mais 11 mil pessoas ficaram feridas. Um relatório de junho de 2015 da ONU encontrou evidências de crimes de guerra.

Retrato de Ibtisam.

Toda a Gaza sofreu durante a guerra, mas Shujaiya enfrentou uma dizimação única. Um tradutor palestino, um homem magro e sarcástico de 30 e poucos anos, lutou com as palavras para descrever o que viu ali. "Inferno. Vou morrer aqui?", ele se lembra de imaginar durante a operação. "Vão me deixar a céu aberto, inchado como um balão, sem que ninguém consiga buscar meu cadáver?"

A devastação se estendeu pela indústria e infraestrutura. Israel destruiu redes de distribuição de água, universidade, estações de tratamento de esgoto e mais de 100 mil negócios, segundo um relatório iniciado pela Associação de Agências de Desenvolvimento Internacionais. O principal tanque de combustível da usina de energia de Gaza está em ruínas, e a falta de peças para reparo deixou 25% da população sem luz. Hospitais mergulharam na escuridão. Os moradores de Gaza não conseguiam encontrar seus parentes. Além disso, comida e água foram escasseando.

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A guerra destruiu 18 mil casas, deixando 108 mil palestinos sem um teto sobre suas cabeças.

Continua abaixo.

Ibtisam conta que a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) não ofereceu ajuda, mas que a organização humanitária Islamic Relief veio em seu socorro. Agora, ela vive com os filhos num trailer fornecido pelo Ministério dos Trabalhadores de Gaza depois de ter vendido os escombros de sua antiga casa por 700 shekels (cerca de R$ 600). Contando apenas com sua pensão de viúva e com um filho trabalhando, ela foi obrigada a se endividar para vestir e alimentar os filhos. Em alguns dias, a família se alimenta apenas de pão.

"Queremos dizer ao mundo que somos iguais", afirmou Ibtisam. "Não queremos guerras. Não queremos bloqueios. Não queremos paz por um mês, mas para sempre."

Retrato do tradutor de Gaza.

Perto do final da Margem Protetora, pouco mudou em Shujaiya. Algumas casas foram remendadas, porém muitas continuam em escombros. Pilhas de receitas médicas se espalham na frente do Ministério da Saúde destruído. Por toda parte, casas continuam desmoronadas, mostrando restos do cotidiano: cobertores, panelas, Corões, carros. Em uma pilha de poeira, achei o caderno de uma criança, abandonado. "Meu tio coleta mel", a criança anônima escreveu na primeira página.

Pichações adornam muitas das casas. "Amo Gaza" está rabiscado do lado de um coração atravessado por um míssil. "Ainda estou aqui", uma AK-47 desenhada por um combatente, adorna um mural com um homem ensanguentado puxando a barreira entre a Cisjordânia e Israel para ver a Mesquita Al-Aqsa, o terceiro local mais sagrado para o islã. Apesar de toda atenção que Banksy ganhou pintando os escombros de Gaza, essa arte é muito mais afiada. Banksy vem e vai, mas esses artistas estão presos aqui, o que alguns consideram uma prisão a céu aberto. Desafio sangra de cada linha escrita por eles.

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Fiquei olhando enquanto trabalhadores de construção desentortavam vergalhões do hospital explodido El-Wafa, antes um centro de reabilitação para adultos paralíticos. Durante a Margem Protetora, o exército israelense bombardeou a instalação médica, desligando a energia e forçando os enfermeiros a carregarem pacientes deficientes pelas escadas na total escuridão.

As ruínas do Hospital El-Wafa, no bairro Shujaiya, Gaza.

Rafiq, 30 anos, é um engenheiro que trabalha para uma das empresas contratadas pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP) para limpar os escombros. Limpar locais de bombardeios é sempre um desafio técnico, mas o bloqueio de Israel, que limita a importação de equipamentos e materiais de construção, torna isso ainda mais difícil. Burros transportam cargas de entulho. Trabalhadores endireitam vergalhões com ferramentas de mão e pedras. Às vezes, a equipe de Rafiq encontra bombas não detonadas e precisa chamar a polícia para desarmá-las. O pior são os corpos. Uma vez, Rafiq achou uma criança morta ainda agarrada à sua mochila de escola. Em outra vez, sua equipe encontrou uma mãe que teve a cabeça esmagada enquanto tentava proteger seu bebê, os cabelos emaranhados na poeira.

Shujaiya não devia ser assim. Depois que Israel e grupos armados palestinos fizeram um cessar-fogo em 2014, países doadores se reuniram no Cairo e se comprometeram a doar US$ 3,5 bilhões para reconstruir Gaza. No entanto, o impulso de boa publicidade passou rapidamente: até abril de 2015, os doadores só tinham dado um quarto do que prometeram.

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Para lidar com a falta de financiamento, a UNDP dividiu as edificações destruídas em três níveis, dependendo dos danos. De acordo com fontes trabalhando na limpeza dos escombros, apenas proprietários de casas menos danificadas viram algum dinheiro e material. Segundo os palestinos com quem falei, a ajuda oferecida raramente é suficiente para se consertar o que foi destruído.

Ibrahim Abu Omar, 57 anos, é um dos muitos palestinos de Gaza que está reconstruindo as coisas com as próprias mãos. Ele serviu chá para mim e meu tradutor na estrutura de concreto que será sua nova casa. A caixa cinza levou dez meses para ser construída e custou R$ 47 mil, dinheiro que ele economizou quando trabalhava como caminhoneiro. Recentemente ele teve de requisitar um empréstimo de R$ 38 mil. Apesar disso, a casa não está nem perto de ser completada. A bomba está perto de uma pilha de vergalhões tortos deixados pela empresa privada que ele pagou para limpar seu terreno.

Ibrahim se lembra de todo conflito desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Ele se lembra dos limoeiros que seu pai plantou quando ele era criança. Ele se lembra de 2006, o ano da eleição do Hamas e do bloqueio subsequente de Israel. "Tudo foi destruído depois disso", ele diz com um suspiro.

Durante a Margem Protetora, ele teve de fugir de sua casa apenas com a roupa do corpo, correndo com sua família pelas ruas até a escola da UNRWA onde eles ficaram por semanas. Quando voltou, ele encontrou sua casa e a casa do filho, que ficava ao lado, completamente destruídas. Para que os soldados israelenses não tivessem de se movimentar pelas ruas, onde ficariam expostos, tanques abriram caminho disparando contra casas. O que as bombas começaram, tratores terminaram. Os restos da casa de Ibrahim ficaram embaixo dos escombros da casa do filho.

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Depois do cessar-fogo, o movimento de caridade do Hamas deu à família de Ibrahim R$ 6.250. O dinheiro logo desapareceu em comida e outras necessidades. Quando ele começou a reconstruir, o governo municipal de Gaza exigiu R$ 7.800 para registrar a nova casa e conectá-la à rede elétrica. Essa foi só uma das muitas histórias que ouvi sobre o governo municipal usando a destruição para cobrar impostos ou taxas.

"Se está com o Hamas, você tem uma boa vida. Se não está…" – Ibrahim Abu Omar

Pelo menos, eles deram algum dinheiro a ele no começo. Ibrahim revela que nenhuma das ONGs que chegaram a Gaza deu a ele um shekel sequer, mas a UNRWA parou para tirar fotos.

Perguntei o que ele achava do Hamas. Ele riu; depois, olhou nervosamente para os lados. "Se está com o Hamas, você tem uma boa vida. Se não está…" Ibrahim trabalhava para a Autoridade Palestina, cujo partido dominante, o Fatah, passou a última década em lutas violentas ocasionais contra o Hamas. Mesmo agora, empregados da AP vivendo em Gaza me disseram que, apesar de receberem salários, não vão trabalhar – se recusando nervosamente a me dizer o porquê.

Enquanto isso, Israel mantém seu bloqueio sobre materiais de construção que entram em Gaza, alegando querer evitar que isso seja usado pelo Hamas para criar túneis até Israel e Egito. Segundo o grupo de direitos humanos israelense Gisha, a nação só permitiu a entrada de cerca de 1,3 milhão de toneladas de material de construção em Gaza desde setembro, o que é apenas um quinto dos 5 milhões que seriam necessários para se reparar os danos da guerra. Nesse ritmo, a Oxfam estima que a reconstrução levará 100 anos – desde que Israel não invada Gaza no próximo século.

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Ibrahim apontou para os baldes de cimento e explicou que, por causa do bloqueio, ele só pode comprar cimento de um peso próprio para paredes, não os para tetos. Ele mistura o cimento com água para tornar isso mais leve, porém tem medo de que o teto caia depois de alguns anos.

"Não há engenheiros. Ninguém está supervisionando. A casa cai, e ninguém se importa." Ele deu de ombros. "O que posso fazer?" Essa é uma expressão que ouvi várias vezes em Gaza.

Um garoto escava os escombros de sua antiga casa.

Alguns metros adiante, dois garotos escavam os escombros de um prédio que abrigava 80 pessoas. Seu avô, Ouz Abu Mohammed al-Ejla, tinha uma pequena empresa de construção onde o pai deles trabalhava. Mas as ferramentas e veículos da empresa estão enterrados sob o concreto destruído. Os garotos cutucavam a poeira com pás, mais por hábito do que acreditando que podem salvar alguma coisa.

"Não chore por alguém que perdeu o seu dinheiro. Chore por alguém que perdeu seu trabalho", me disse al-Ejla. Ele é um homem alto, bonito até nessa idade. A guerra teve um preço brutal para a família. Seu filho foi baleado no tornozelo. A esposa perdeu o bebê. Quando a família finalmente fugiu das bombas, ela estava tão mal que as filhas a tiveram de carregar. A família viveu apertada por semanas numa sala de uma escola, vivendo apenas de peixe e feijão enlatados. Por causa da superlotação, brigas começaram entre eles e os colegas de abrigo. A mulher tinha pesadelos com vidro, poeira e paredes que tremiam.

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Depois da guerra, o Hamas deu a al-Ejla R$ 6.250 para o aluguel, isso para uma família estendida de 80 pessoas. O dinheiro acabou em dois meses.

"Somos empreiteiros. Sabemos construir casas… não precisamos de ajuda. Só nos dê o dinheiro." – Ouz Abu Mohammed al-Ejla

Ele começou a trabalhar reformando um prédio onde sua família pudesse morar, construído com material de segunda mão e banheiros e portas consertados. Enquanto ele trabalhava, um funcionário da ONU o abordou e sugeriu que ele se registrasse para receber auxílio. Funcionários da ONU avaliaram que a construção tinha R$ 53.300 em danos.

Mas al-Ejla me explicou que, quando foi ao escritório da ONU pegar seu cheque, eles disseram que tinham prometido apenas R$ 33.500 e que pagariam em duas parcelas. Com medo de não ver mais dinheiro algum, ele concordou e continuou trabalhando, cimentando e construindo com os filhos, pagando R$ 6.200 de seu bolso, com os oficiais da ONU garantindo que ele seria reembolsado. O primeiro cheque, de R$ 12.500, veio com uma placa com os logos da UNDP, do Fundo Monetário Árabe e do Banco Árabe para o Desenvolvimento da África, proclamando orgulhosamente que esses grupos tinham contribuído para reconstruir 600 residências afetadas pela guerra.

Foi a última vez que ele teve notícias da ONU.

Quando perguntei a al-Ejla sobre a placa, ele ergueu as mãos com desprezo.

"Somos empreiteiros. Sabemos construir casas", al-Ejla proclamou, erguendo a voz. "Não precisamos de ajuda. Só nos dê o dinheiro. Só o cimento para todas as paredes custa R$ 19 mil."

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Outros programas de ONGs se mostraram igualmente frustrantes. Al-Ejla e sua família esperaram numa fila durante horas por ajuda, constituída apenas por cupons para garrafas d'água, arroz de 30 anos e queijo que "nem uma vaca comeria".

"Não ligo para política, só para minha família. Por que sou tratado assim?", perguntou al-Ejla.

Um homem sentado nas ruínas de sua casa no bairro Shujaiya, Gaza.

De acordo com políticos israelenses de todos os espectros, o Hamas é a causa de todos esses problemas. Como os palestinos elegeram o Hamas em 2006 e o grupo tomou o controle da faixa em 2007, a invasão era justa.

O Hamas em si não é uma grande ameaça. Seus foguetes são ineficazes – desde 2007, ataques com foguetes e morteiros mataram 44 pessoas dentro de Israel. O governo municipal do Hamas está tão falido que os servidores públicos passam meses sem receber. Antes que a maioria dos túneis de contrabando fosse destruída, eles eram mais uma saída econômica para os residentes sitiados.

No entanto, os políticos de Israel se preocupam mais com o Hamas como uma construção de Relações Públicas – uma construção que permita que eles reformulem agressão como autodefesa.

Israel invoca o Hamas para justificar as centenas de violações do cessar-fogo, as restrições aos movimentos dos moradores de Gaza e os bloqueios que devastam a economia da região, moendo o futuro dos residentes até a poeira de Shujaiya.

Se a culpa é do Hamas ou não, Gaza sofre. Apesar de não ter provas de que a liderança do Hamas estava envolvida, o sequestro e o assassinato de três adolescentes israelenses na Cisjordânia deram a Netanyahu uma justificativa para a Operação Margem Protetora. Nos dias seguintes ao sequestro, Israel lançou ataques aéreos e prendeu centenas de palestinos, incluindo boa parte da liderança do Hamas na Cisjordânia. Quando o Hamas retaliou com foguetes, Israel teve uma desculpa para declarar guerra abertamente.

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No horizonte, no mar, eu conseguia ver brilhos dourados: as luzes dos navios de guerra israelenses. Depois, ouvi o zumbido crescente dos jatos de combate.

Na minha última noite em Gaza, vi esse tipo de vingança equivocada acontecer numa escala menor.

Um grupo salafista adversário do Hamas disparou três foguetes contra Israel. Eles caíram num campo e queimaram um pequeno círculo na grama. O país considerou o Hamas responsável apesar de os foguetes terem sido disparados pelos inimigos do grupo. Os drones zumbiram mais alto que o normal sobre nossas cabeças naquela noite.

Sentei-me na varanda do meu apartamento, com vista para a praia de Gaza, onde, durante o dia, crianças fazem corridas de barco e casais fumam narguilé. Um ano atrás, uma bomba de Israel matou quatro crianças nessa praia. Uma semana depois da minha visita, uma investigação interna israelense absolveria o Exército de qualquer culpa no ataque.

Os drones zumbiram mais alto. No horizonte, no mar, eu conseguia ver brilhos dourados: as luzes dos navios de guerra israelenses. Depois, ouvi o zumbido crescente dos jatos de combate.

Esses são sons comuns – uma noite comum nessa cidade incomum, sitiada e desafiadora.

À meia-noite, as bombas começaram a cair.

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*Algumas fontes se recusaram a dar seus sobrenomes.

Tradução: Marina Schnoor