Um dia com a polícia de elite boliviana
Christian Tragni

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Um dia com a polícia de elite boliviana

Caçando fabricas de cocaína.

Durante muitos anos, Evo Morales, o presidente boliviano, foi presidente do sindicato dos plantadores de coca. Na maior parte da Bolívia, as folhas de coca são tradicionalmente mastigadas pelos nativos para combater o mal-estar da altitude e usadas como energético.

A folha da coca é cultivada em duas regiões da Bolívia. O Yungas, a cerca de três horas da capital La Paz e a 1.300 metros de altura, é onde geralmente as folhas de coca são menores, mais doces e usadas principalmente para ser mastigadas.

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Foto: Christian Tragni

A segunda é a região de Chapare, a quatro horas de Cochabamba, mais a leste. Trata-se de uma região muito úmida e chuvosa, cerca de 400 metros de altura acima do nível do mar, onde as folhas são maiores e com uma quantidade de alcaloides muito mais elevada. Aqui, de acordo com os dados não oficiais, uma grande parte das folhas crescidas na cultura de coca é utilizada para produzir a cocaína.

O presidente Morales, com o seu governo, tem ajustado e regulado o sistema de plantação para reduzir a fabricação de cocaína. Atualmente, para poder cultivar a planta, é preciso fazer parte do sindicato e ter uma autorização que foi dada apenas para as famílias que tradicionalmente a cultivam.

Foto: Christian Tragni

Cada família pode possuir um máximo de 40 metros quadrados de plantio. Essas regras são condenadas pelo DEA (Drug Enforcement Administration dos EUA).

Visitei as produções dos Yungas, e a família que me permitiu fotografar sua propriedade tinha pelo menos três plantações diferentes, todas aparentemente com mais de 40 metros.

Foto: Christian Tragni

Naqueles dias, eu estava em La Paz, capital da Bolívia, onde há o escritório da FELCN, a unidade policial de elite que lida com a repressão ao tráfico de drogas.

Me informei sobre os procedimentos formais para acompanhar algumas ações repressivas, sabendo que seria difícil, se não impossível, ter uma resposta positiva.

Por cerca de uma semana, depois de produzir a documentação formal que me mandaram fazer, fui aos escritórios da FELCN todos os dias sem conseguir obter uma resposta. Ficou claro que não havia nenhuma vontade da parte deles de me deixar desenvolver o trabalho sobre esse assunto.

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Consegui falar com o comandante, que não se preocupou em remover do monitor do computador de seu escritório o jogo de pôquer que estava aberto. Ele me disse que as atividades da FELCN se concentram, principalmente, no Chapare e que, há muito tempo, não vem dando permissão para os meios de comunicação acompanhar a polícia porque tais operações eram muito perigosas e delicadas.

Foto: Christian Tragni

Eu tinha quase desistido quando uma amiga boliviana me contou que ela tinha um amigo que era o chefe de comunicações de um ministério e que talvez ele pudesse me ajudar no assunto.

No dia seguinte, encontrei essa pessoa. Portanto, algumas horas mais tarde, me ligou um militar dizendo que eu deveria ir imediatamente a Chapare, Cochabamba e Santa Cruz – a cerca de 500 km de La Paz, onde eu estava – e que me foi dada a permissão para passar um dia com as forças de elite da policia (FELCN) na área conhecida por produzir quase toda a cocaína boliviana.

Foto: Christian Tragni

Era um dia normal de patrulhas, e alguém tinha avisado a polícia de uma terra onde se suspeitava que a área plantada com a planta de coca fosse maior que o tamanho permitido, os famosos 40 metros.

Após cerca de duas horas de viagem, chegamos a essa terra, propriedade de uma senhora indígena Aymara. Encontramos culturas claramente de extensão maior do que a prevista por lei, mas ninguém se preocupou em medi-las e, possivelmente, confiscá-las conforme o exigido legalmente.

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As respostas às minhas perguntas sobre a postura desse caso não foram ainda muito evasivas: os militares me falaram que a lei não deve ser tomada ao pé da letra e que, no final, essas culturas não eram tão grandes.

Foto: Christian Tragni

Subimos de volta nos veículos (dois jeeps norte-americanos), saímos da estrada principal e entramos na floresta, onde imediatamente encontramos um carro que eles consideraram suspeito.

Eu estava começando a entender como funcionava. As pessoas que estavam no carro não foram presas porque, naquele momento, elas não estavam em posse das folhas, embora fossem produtoras de coca e tivessem acabado de entregar uma quantidade muito grande de sacos de folhas para os traficantes de drogas que se escondem na floresta onde tem a produção de cocaína.

Continuamos o nosso percurso por alguns quilômetros; depois, saímos dos dois carros; de lá, seguimos a pé para dentro da floresta por, pelo menos, duas horas em direção ao Rio Chapare.

Foto: Christian Tragni

Durante essa caminhada, tive a oportunidade de conversar melhor com eles. E devo dizer que o desconforto foi grande: em parte, por causa da morte de dois colegas deles algumas semanas antes em um tiroteio com traficantes, não muito longe de onde estávamos. O governo, para eles, não facilita o trabalho do combate à produção de cocaína. A FELCN historicamente reprimiu os fabricantes de coca, porém o atual presidente Morales era seu representante sindical. Reclamaram também da falta de uniformes e do baixo salário.

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Os momentos de desânimo se alternam com os momentos de adrenalina porque, imediatamente depois, nos aproximando do rio, ouvimos o som de um motor de um barco. Eles me explicam que se tratava de traficantes à procura de um local adequado para montar uma "fábrica". Ficamos uma hora em silêncio e deitados na floresta até que uma parte da polícia saiu para tentar surpreendê-los, cruzando um afluente do Rio Chimoré. Os traficantes se deram conta e fugiram para dentro da floresta, no lado oposto do rio, deixando a canoa de madeira de motor com a ferramenta que é utilizada para "espremer" as folhas de coca de onde se extrai o alcaloide líquido, além da comida que foi o nosso almoço. A canoa também tornou-se o nosso meio de transporte para prosseguir.

Foto: Christian Tragni

Navegando pelo rio, os policiais me mostraram muitas estruturas semiescondidas nas laterais, me explicando que todas elas são "fábricas" de cocaína abandonadas. Eu contei pelo menos seis.

Eles também me mostram uma família escondida entre as árvores, ao lado do rio. Me falaram que não são pescadores como parece, e sim pessoas que trabalham com os traficantes: ficam sentados lá para alertar sobre a possível chegada da polícia.

Descemos a canoa para continuar a pé: desta vez, na margem oposta do rio.

Foto: Christian Tragni

Uns homens da FELCN andavam uns 50 metros à frente do resto do grupo a fim de evitar que eu pudesse ser atingido em caso de tiroteio com os traficantes.

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De repente, um policial do grupo de vanguarda volta e diz-nos que eles encontraram uma fábrica de cocaína e que, aparentemente, os contrabandistas foram advertidos, fugindo em seguida; no entanto, ele frisou que tínhamos de parar imediatamente de avançar para que eles pudessem recuperar a área a fim de se certificar de que não havia mais perigo.

Foto: Christian Tragni

Poucos minutos depois, entramos na fábrica onde ainda havia todos os componentes para o processamento de folhas de coca em cocaína. O chão estava completamente cheio de folhas esmagadas, utilizadas para extrair líquidos alcaloides, além de uma banheira, criada com árvores derrubadas e com os plásticos da coca, contendo água do rio (usada para produzir a droga). Havia ali gasolina, bicarbonato de sódio, ácido sulfúrico, ácido clorídrico, além de outros elementos menores.

Foto: Christian Tragni

Os traficantes fugiram com pressa, pois eles deixaram coisas preciosas, como um monte de pasta-base em pó e um grande recipiente de pasta-base líquida.

Além disso, encontramos também garrafas de água potável e comida. Quando os traficantes, geralmente um grupo de não mais que 10 pessoas, acham um local adequado para convertê-lo em uma fábrica, eles permanecem lá para trabalhar, sem parar, por alguns dias.

Eles juntaram todo o material, inclusive a pasta-base, o colocam no centro da "fábrica", alastram a gasolina – e o fogo consumiu tudo. Estamos em uma área de floresta; em seguida, o fogo se espalha também entre as plantas ao redor, criando um discreto incêndio. Depois de cerca de vinte minutos, o fogo se apaga sozinho.

Neste ponto, os policiais da FELCN estão satisfeitos. Não é todo dia que você encontra uma fábrica ativa; assim, nós pudemos voltar para a base.

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