​Deus e o diabo na terra do Demolicar
As histórias de fé e maldição na mais antiga tradição automobilística do interior de São Paulo. Foto: Guilherme Santana

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​Deus e o diabo na terra do Demolicar

As histórias de fé e maldição na mais antiga tradição automobilística do interior de São Paulo.

Quem seguia pela Rodovia dos Bandeirantes na altura da cidade de Sumaré poderia achar que era só mais um domingo qualquer. Vaquinhas pastando e plantações a perder de vista não são só um bom descritivo daquela paisagem de beira de estrada, como também figuram na bandeira dessa bucólica cidade do interior de São Paulo. Para um forasteiro qualquer, entre uma parada no Supermercado Good Bom ou um rango no clássico Gordão Lanches, a vida ali até podia parecer bem tranquila. Mas quem virou na Estrada Norma Marson e seguiu por mais dois quilômetros percebeu que aquele não era um domingo qualquer: o Demolicar estava comendo solto.

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Tradição interiorana, data mais aguardada do calendário de Sumaré e vizinhos, o Demolicar orgulha-se há 28 anos de seguir na contramão dos eventos automobilísticos. Trata-se do único lugar onde o marmanjo pode virar umas latas de cerveja, bater o carro e comemorar. Na edição de 2016, um público de quatro mil pessoas encheu as arquibancadas para assistir o embate entre 108 pilotos e suas latas velhas transformadas em máquinas de combate. O campeão sairia com R$ 5 mil no bolso e com o título inconteste de cabra mais respeitado do pedaço.

Foto: Guilherme Santana

Ali, tudo gira em torno das equipes e o piloto não é nada sem um bom time de mecânica, funilaria, elétrica e, é claro, um grafiteiro que dá aquele talento no possante. Na alegoria dos carros vale tudo: número pra contato, juras de amor e anúncios que vão da papelaria até a churrascaria local. Alguns preferem personalizar mais ainda, como a equipe que adotou um desenho do Bin Laden e outra inspirada no filme Caçadores de Fantasmas. Mas todo esse cuidado com a máquina pode ir pro brejo em questão de segundos. Isso porque a ação toda acontece numa arena encharcada de lama, na qual diversos competidores colidem violentamente uns aos outros nas baterias preliminares de 15 minutos de duração. Tudo termina com muita terra voando, fumaça subindo e latarias, pneus e suspensões despedaçados por tudo quanto é lado.

Há desde a equipe familiar, passando pela turma da oficina e até motociclistas na disputa, como o Marcelo Mococó, presidente e fundador do Dementes Motoclube. "Esse é o meu primeiro ano e minha equipe veio com dois carros", ele disse ao lado do seu veículo já todo estropiado. "Pois é, eu tô eliminado porque fui muito pra cima dos outros, mas valeu a pena. A brisa do Demolicar é que a vida inteira eu bati o carro e só tive dor de cabeça com isso, mas aqui você pode até tirar uma grana e ano que vem os Dementes tão de volta e a gente vence", ele prometeu, emendando na frase escrita no seu carro defunto: "Nem que morra nessa porra!"

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Foto: Guilherme Santana

Marcelo Mococó. Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

O investimento para construir uma boa caranga segue a média de R$ 3 mil. Primeiro, o sujeito pode ir num daqueles leilões de velharias, onde é possível arrematar um modelo mais que ultrapassado por R$ 500, sendo o Opala e o Chevette os mais cobiçados para a modalidade. Feito isso, o resto da grana vai toda na reforma e nas modificações exigidas no regulamento, a exemplo da gaiola de proteção do piloto e reforços no tanque de combustível para evitar uma catástrofe.

Resistir aos embates do Demolicar requer diversas habilidades não só na direção. Entre elas estão a destreza de bater no outro sem prejudicar a si mesmo, além de fôlego e musculatura em dia pra aguentar os impactos e o cansaço da luta. Mas como todos estão sujeitos a um carro que pode engasgar e morrer sem mais nem menos, também vale contar com a ajuda divina. "O segredo do Demolicar é se apegar com Deus e pedir pro carro não parar. Deus é o maior segredo… Tem que ter Deus", explicou o Ricardo Alexandre, vulgo Saúva, que, apesar de ser um dos recordistas do Demolicar com seis vitórias no currículo, também estava fora do páreo.

Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

Como as preces nem sempre são atendidas, o motor acabou falhando e deixou o Saúva e sua equipe Febre Amarela na mão. Até aí, tranquilo, porque na sua longa jornada as coisas já foram mais dramáticas. "Uma vez, recebi uma batida que me jogou de cabeça na barra de metal da gaiola", ele diz, enquanto mostra uma parte da sua testa afundada. "É que quando começa a bateria eu tiro o cinto de segurança; eu não gosto dele". E não para por aí: "Também já cortei o nariz e ganhei uns hematomas. Sem contar na vez que estava mexendo no carro antes da final e um ferro atravessou meu braço e me levou pro hospital."

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São alguns causos de um competidor com motivo nobre para estar ali. "O meu pai também corria, e ele deixou essa herança pra mim. Ele nunca tinha sido campeão e, quando ganhei pela primeira vez, ele já tinha falecido. Então todos os anos estou aqui pra tentar dedicar mais uma vitória pra ele. Pai é pai, né?", concluiu o Saúva com seu forte sotaque do interior.

Saúva. Foto: Guilherme Santana

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Mas apesar da longevidade e o sucesso de público, o Demolicar não escapa das críticas. Na história do evento consta ao menos uma morte, ocorrida em 2010. Na ocasião, entre um dos intervalos, um homem entrou na arena com um carro que não fazia parte da competição e estava fora das normas de segurança. Durante uma derrapada, faíscas atingiram a gasolina de dentro do tanque do veículo e o condutor faleceu dias depois devido às fortes queimaduras. Um grupo no Facebook intitulado "Por que o Demolicar existe?" questiona a segurança da modalidade que, segundo o administrador anônimo da página, seria um "absurdo da irresponsabilidade e da banalização da violência", além de estereotipar os cidadãos de Sumaré como "boçais caipiras que se divertem colidindo seus carros uns aos outros na lama."

Quando questionado sobre o assunto, Cláudio Meskan, fundador do Demolicar e principal juiz da competição, lamentou o incidente do passado, mas defendeu a continuidade da prova. "Aquilo foi uma fatalidade muito infeliz, mas o Demolicar deu um sentido na vida de muitos jovens e já tirou alguns das drogas. Eles trabalham o ano todo nos seus carros para competir e têm até os que abriram oficinas e seus próprios negócios por conta das coisas que ensinamos no Demolicar. Além do mais, eu sou caipira sim, tenho o maior orgulho de ser caipira e quero morrer caipira e sempre praticando o bem."

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Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

Cláudio conta ainda que, no início, o Demolicar era mais uma reunião de amigos. "A gente começou tudo isso inspirado no que já acontecia nos Estados Unidos. Como não havia internet, fomos reunindo as pequenas informações que chegavam, falávamos com os amigos que voltavam de viagem e assistiram o evento americano, conseguimos cópias do regimento e depois tentamos aqui em Sumaré. Na primeira vez, em 1988, éramos só nove caras batendo e o pessoal gostou demais. Depois, como dá pra notar, o negócio só cresceu."

De fato, quase três décadas depois da primeira colisão, a versão brazuca da guerra dos carros atingiu ares esportivos, e a sede pelo troféu estava grande. Após um dia todo de bate de frente, bate de trás, derrapa pra cima do outro e corre pra longe, estavam selecionados os 48 classificados para a grande final. Com a platéia e as torcidas gritando por suas equipes, cada piloto levantou da garupa dos carros já posicionados e seguiu até o centro da arena, onde o Cláudio proferiu as últimas palavras antes do aguardado duelo. "Pessoal, hoje quero sair orgulhoso daqui. Não quero ver ninguém ganhar fugindo da luta. É pra bater com segurança e bater com consciência. Vai pra cima, não fica se escondendo porque vencer assim é feio! Que Deus dê forças à todos e que tenhamos uma grande final!", benzeu o juiz.

Foto: Guilherme Santana

Carros a postos, motores rosnando e é dada a largada. Todos aceleram em direção ao centro, onde rola uma pancadaria generalizada. Alguns batem como dá e outros se defendem como podem. Em apenas quinze minutos cerca de sete competidores estão fora de combate e abandonam pelo teto solar as máquinas agora convertidas em obstáculos na arena. No fervor da disputa, alguns ficam endiabrados, como um piloto que, após ter o carro destroçado, troca socos com um integrante da sua equipe técnica. O tempo passa e alguns resistem bravamente, como o pequeno automóvel cor de rosa que, mesmo mancando com a falta de um pneu, luta por mais de trinta minutos até não poder mais. Pedaços enormes de lama são arremessados na plateia que prefere assistir na beira da arena e grita a cada impacto. Uma longa sequência de derrotas sucede até restarem apenas dez rivais no páreo.

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Com os carros restantes já bastante danificados, a estratégia começa a prevalecer. Enquanto algumas duplas de pilotos ficam na trocação, outros aguardam para ver quem leva a melhor e depois partem para pegar o oponente enfraquecido. Cláudio, com o microfone em mãos, avisa que aquele que se abster demais será desclassificado. O público bota pilha, os pilotos entram na onda e vão pro tudo ou nada. O motor de um pifa, a roda de outro solta, outros batem tão forte que levantam uma nuvem de poeira no ar. Quando a nuvem se dissipa, restam apenas dois combatentes frente à frente após mais de uma hora de prova. Eles lutam como dois pugilistas grogues. Uma batida curta e rápida decide a vitória de um deles. A galera invade o ringue e se emociona.

Foto: Guilherme Santana

Meskan. Foto: Guilherme Santana

Marcelinho Carneiro, da equipe Tormento, é o grande campeão do Demolicar 2016. Depois de um dia inteiro de porrada ele já não tem muita força pra falar, apenas abraça os amigos e familiare e diz, com os olhos aguados e cercado de fãs em êxtase: "Foi Deus! Ele me deu a vitória e o resto é a minha equipe. A emoção é grande. Tô arrebentado, tô cansado, é a primeira vez que eu venço, mas dedico minha vitória pra Jesus! E ano que vem eu volto pra arregaçar de novo!".

Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

Beijos, palmas, urras. O povo festeja e sai pra celebrar, virar muita cerveja, saborear o troféu. Com a arena vazia, alguns caras pegam os carros remanescentes e partem pra lama pra curtir o final da tarde. Um desses carros, com o piloto e um amigo com metade do corpo pra fora do teto solar, engancha com a roda da frente num buraco e capota com força. Algumas pessoas que estavam perto gritam desesperadamente. "Nossa senhora, será que ele morreu?!", grita uma mulher, aflita. A galera corre pra virar o automóvel. Ninguém entende, mas um milagre acontece e o cara que estava pra fora não só sobrevive como está bem e sorrindo. É que na terra do Demolicar a fé e a maldição correm lado a lado.

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Confira mais fotos do Demolicar:

Foto: Guilherme Santana

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Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

Foto: Guilherme Santana

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