O Nobel é o pai de todos os prémios. Quem ganha um, basicamente sabe que é um vencedor naquilo a que chamamos vida (pelo menos até certo ponto, porque a Madre Teresa ganhou um em 1979 e sabemos bem que, afinal de contas, a agora Santa não era propriamente flor que se cheirasse).Hoje, para surpresa de meio mundo, o cantautor e ícone musical norte-americano, Bob Dylan, foi galardoado com o Nobel da Literatura "por ter criado novas formas de expressão poética, no âmbito da grande tradição da canção americana". E é bem merecido. Já alguma vez ouviste coisa mais bonita que "Buckets of rain / Buckets of tears / Got all them buckets coming out of my ears"? Também não nos parece.
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No anúncio público, a representante da Academia Sueca, Sara Danius, disse: "Claro que merece, por isso é que o ganhou". E depois acrescentou: "É um grande poeta. Um grande poeta na tradição anglófona. Há 54 anos que o faz, constantemente a reinventar-se, a criar novas identidades". Danius comparou ainda o músico aos maiores nomes da literatura da Grécia Antiga. "Se olharmos bem lá para trás… descobrimos Homero e Safo, que escreviam textos poéticos para serem interpretados. O mesmo acontece com Bob Dylan. Ainda lemos Homero e Safo e gostamos. Podemos também, e devemos, lê-lo. Ou seja, perfeito Bob. Que as tuas canções possam ser estudadas pelas crianças no futuro.
O músico de 75 anos é o primeiro norte-americano em 20 anos a receber um Nobel e, claro, o primeiro escritor de canções de sempre a receber o galardão literário. Facto que tem, obviamente, causado ondas de choque, indignação por essas queridas redes sociais afora.Na verdade, não conseguimos encontrar online qualquer indignação de monta, a não ser nas caixas de comentários daqueles-jornais-que-vocês-sabem-quais-são e em tascos similares (mas é sempre bom escrever "polémica", tipo cenoura para indignados profissionais). E se, até ao momento, Pedro Chagas Freitas, Gustavo Santos, José António Saraiva e Maria Leal não se pronunciaram oficialmente sobre o Nobel de Dylan, em Portugal, músicos como Luís Nunes a.k.a. Benjamin, o escritor Valter Hugo Mãe, ou o também escritor e antigo jornalista Miguel Esteves Cardoso, demonstraram já publicamente o apreço pela decisão histórica.
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No Facebook, Luís Nunes escreve: "É verdade que literatura e música ocupam espaços diferentes (se bem que geralmente coabitam naquela sala da casa onde se pode fumar), acho até completamente despropositado que músicos comecem a receber o Nobel da Literatura. A questão é que a obra de Bob Dylan é muito mais do que apenas música. A sua escrita é uma constante afronta à fronteira da poesia e, mesmo quem não lhe reconhece a voz, normalmente vê nas suas letras a razão do seu estatuto de mito. E Dylan é um monstro da cultura. Em dia de Nobel, posso dizer que os seus discos foram verdadeiramente os meus livros".Já para Hugo Mãe, a atribuição do Nobel ao músico norte-americano em vésperas das eleições norte-americanas significa que "é importante que os eleitores se lembrem que aquela cultura é a de gente como Bob Dylan. A de artistas improváveis que abriram caminho por serem genuínos e diferentes. O Nobel a Dylan é uma referência à literatura menos arrumada, mas também um elogio à liberdade e ao sonho americano. Que nunca se transforme num mais grotesco projecto. Já é difícil ver como degenera, que não apodreça de vez".Na edição online do Público, Esteves Cardoso resume assim os méritos de Dylan e da decisão da Academia: "Escrever é escrever. Um mau poeta será sempre pior do que um bom jornalista. Dylan é inegavelmente um grande escritor. A Academia sueca está a usar o Prémio Nobel para restaurar a literatura. Tomara que regresse à literatura oral. As histórias que não são escritas também podem ser grandes e imortais".Nascido Robert Zimmerman em Duluth, Minnesota, Bob Dylan juntou-se à cena folk de Nova Iorque no começo dos anos 60 e tornou-se, rapidamente, no seu cantor/compositor mais importante.Por vezes acusado de se "colar" demasiado ao seu herói, Woody Guthrie, em hinos como "Blowin' in the Wind", "The Times They Are a-Changin", ou "Mr. Tambourine Man", a meio da década Dylan envolve-se com o novo som "eléctrico" e grava o clássico Highway 61 Revisited , dando início a uma longa carreira de transformações. Rock em Blonde on Blonde, country em Nashville Skyline, gospel em Slow Train Coming, até voltar às raízes em Time Out of Mind, de 1997.A própria personalidade de Dylan também se foi metamorfoseando, à medida que passava pelos mais diversos estilos musicais, modas e crenças religiosas. Declarou-se cristão renascido nos anos 80, gravitou na direcção do judaísmo nos 2000 e, ao mesmo tempo, tenta passar a ideia de que sempre foi agnóstico. Mesmo que as décadas tenham transformada a sua voz poderosa em cinzas, Dylan continua a compor e a lançar álbuns, muitas deles aclamados pela crítica. O último, Fallen Angels, saiu em Maio.