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Opinião

Lily Allen explica porque é que a imprensa não quer que as celebridades falem sobre refugiados

Depois de arrasada pelos tablóides, na sequência de uma visita a Calais, Allen denuncia aquilo que considera ser um plano político para desacreditar os refugiados e aqueles que os tentam apoiar.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

No início de Outubro, estava a conversar com um rapaz de 13 anos no campo de refugiados de Calais, em França. Ele contou-me que saiu do Afeganistão, para escapar das ameaças do ISIS e dos Talibã e viajou sozinho durante seis meses para tentar encontrar o seu pai, que vivia em Birmingham.

Há várias semanas que Shamsher tentava saltar para a traseira de um camião para entrar no Reino Unido, um caminho incrivelmente perigoso para chegar a Inglaterra e que já ceifou muitas vidas. Ele disse-me que, quando era descoberto, levava pontapés e bofetadas da polícia francesa, que o obrigava a voltar para o acampamento. Isto, porque é uma criança. Se estivesse numa escola britânica, andaria no 8º ano.

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Graffiti na "Selva" de Calais. Foto por Malachy Browne

Esta história, claro, foi perturbadora, mas também me deixou furiosa. Shamsher tem família no Reino Unido e, de acordo com a Emenda de Dublin, tem direito a entrar no país. A única coisa que se atravessa no seu caminho é a burocracia do governo britânico, que não está a tratar do seu processo de uma forma suficientemente rápida.

Em Janeiro, prometemos receber milhares de crianças refugiadas - crianças como Shamsher, com família e sítio para ficar no Reino Unido, além de três mil menores sem qualquer tipo de companhia - sob a Emenda de Dublin. Há poucos dias, foi revelado que o Ministério do Interior inglês ignorou um plano já aprovado por conselhos locais para garantir que crianças refugiadas vulneráveis tivessem um lugar para ficar quando chegassem ao Reino Unido e, em vez disso, não fez nada para se preparar para o encerramento do acampamento de Calais. Agora, estão a entrar em pânico.

Shamsher disse-me que tinha mais hipóteses de chegar ao Reino Unido na traseira de um camião, do que esperar pela autorização do governo. "Peço-te desculpa em nome do meu país", disse-lhe. "Desculpa pelo que te estamos a fazer passar".

Acho que poderia ter dito: "Sinto-me culpada pela responsabilidade que o meu país teve na tua situação", ou "acabámos de fazer um referendo e 52 por cento dos ingleses votaram para sair da União Europeia por causa dos migrantes e, na verdade, não posso falar por eles, mas deixa-me pedir desculpa em nome dos 48 por cento que votaram 'não', que, acredito, pensam como eu". Mas eu estava a falar com ele através de um intérprete, numa sala apertada, com uma equipa de filmagem. Eu estava a tentar dar a minha opinião, através do menor número possível de palavras; não havia tempo para esclarecimentos.

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Fui a Calais, porque queria fazer o possível para ajudar. Queria tentar lembrar as pessoas da humanidade que está no coração desta crise, numa época em que os refugiados são demonizados pela imprensa.

Mas depois de o vídeo da minha viagem ter ido para o ar, vi-me enredada numa já familiar constelação de manchetes de tablóides e de agressores nas redes sociais. Tudo começou no Twitter, com comentários quase universalmente negativos, vindos de pessoas como Andre Walker, que disse: "Acho que Lily Allen deveria desculpar-se ao país por apoiar o terrorismo islâmico", ou outro, que escreveu "Imagino de quem Lily Allen teria pena se houvesse uma guerra, dos jovens soldados ingleses, ou dos muçulmanos do ISIS".

No dia seguinte, Jan Moir escreveu no Mail que eu era só "mais uma idiota indulgente". Eu estava na primeira página do Star, com a manchete a dizer algo como "choro fingido". Havia um ódio real no que as pessoas escreveram, como se o facto de ter ido a Calais fosse um ataque vingativo ao nosso país.

As coisas foram crescendo como uma bola de neve, Gary Lineker apoiou-me no Twitter e pediu que as pessoas tivessem um pouco mais de compaixão. O The Sun fez um artigo de capa a pedir que ele fosse demitido por "vender mentiras de imigrantes". Eu não achava que ir a Calais fosse um acto polémico, mas parece que dizer que precisamos de ajudar crianças vulneráveis é, agora, um assunto espinhoso.

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Parte da raiva pareceu-me familiar. As pessoas achavam que era errado que, alguém com dinheiro, assumisse uma posição moral em nome de toda a gente. No Sun, fizeram a manchete: "Talvez eles devessem ficar na tua linda casa de dois milhões de libras, Lily?" - "eles" provavelmente em referência às milhares de crianças refugiadas de Calais e às dezenas de milhares mais na Grécia.

É verdade: eu vivo numa bolha. Tenho uma bela casa, os meus filhos frequentam uma boa escola e eu tenho mais ou menos uma ideia de como será o meu futuro. Mas foi isso que me chocou em Calais - as pessoas estão num limbo. Não têm a menor ideia do que vai acontecer. Não há um plano de vida. Não há nada em que trabalhar, excepto tentar cruzar o canal. Se és um miúdo de 13 anos a tentares saltar para a traseira de um camião em movimento todas as noites - se esse é o teu objectivo -, que outra prova precisas de que pessoas como eu, com as escolhas que a vida me deu, têm a responsabilidade de ajudar como pudermos?

Não acho que os jornalistas dos tablóides se preocupem com 14 refugiados a entrarem no país. Não acho que seja teoria da conspiração dizer que há outros motivos em jogo. Os refugiados tornaram-se uma representação de vários outros factores. Eles estão a ser usados para empurrar várias outras agendas.

Algumas são óbvias: o Sun não está realmente a pedir que Gary Lineker seja demitido por causa de uma coisa que escreveu no Twitter; ele está a ser atacado porque Murdoch odeia a BBC. Querem usar os refugiados para abrirem uma guerra por procuração com o apresentador desportivo de maior sucesso que não é da Sky.

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Outras questões são mais subtis: o frenesim em torno da questão de alguns refugiados terem ou não mentido sobre as suas idades, não é realmente sobre se esses refugiados podem entrar no país; é uma questão de criar a narrativa de que as pessoas que estão a tentar entrar em Inglaterra não estão a pedir a nossa ajuda, mas sim a quererem enganar-nos e a aproveitarem-se do sistema. A esperança é que, da próxima vez, confiemos menos neles.

E os tablóides têm sido ajudados pelo Ministério do Interior. Há crianças muito mais jovens em Calais que ainda não passaram pelo processo – então, porque é que o Reino Unido decidiu trazer um pequeno grupo de rapazes adolescentes primeiro? Isto não ajuda muito a luta dos refugiados, mas ajuda a agenda dos tablóides.

A imprensa está disposta a caluniar os refugiados e a difamar celebridades que discordam, desenterrando histórias negativas do seu passado, até que elas recuem. O Sun enviou uma mensagem esta semana: se outra figura pública está a pensar em envolver-se mais com a crise dos migrantes, é bom que veja antes o que aconteceu comigo e com o Gary e pensar se realmente vale a pena.

Desde cedo aprendemos sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre como Hitler era perverso. Uma pessoa tenta sempre imaginar como é que ele conseguiu fazer o país inteiro concordar com o que estava a fazer. Agora, estamos a ver isso em primeira mão. Mas, eu não quero ser uma boa alemã. Quero estar do lado certo da história.

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Tudo isto tem um efeito corrosivo na maneira como pensamos sobre pessoas vulneráveis. Se tens medo de te transformares num sem-abrigo, se tens de esperar três semanas para conseguires uma consulta médica, se tens que depender da ajuda de bancos alimentares e vês uma família de imigrantes à tua frente na fila, isso faz-te pensar que os teus problemas são causados pelos imigrantes.

Essa desconfiança é um equívoco. A culpa não é dos refugiados; é uma questão da falta de serviços disponíveis neste país. O governo encontrou um grupo de pessoas vulneráveis que pode culpar pelas suas falhas, mas não devemos perder de vista o facto de que os problemas de Inglaterra são culpa do Partido Conservador e de pessoas e empresas que não estão a pagar a sua parte nos impostos. São eles que estão a burlar o sistema, não uma criança que aqui tenta chegar, porque foi separada de todas as pessoas que conhecia.

Eu própria já pensei assim. Depois de falar com Shamsher, disse a Catrin Nye, realizadora do documentário: "Acreditas nele? Acreditas que o pai está em Birmingham?". Fiquei a pensar porque é que o pai não iria buscá-lo a Calais. Tive suspeitas, por causa do tipo de coisas que lia na imprensa. Dei por mim a fazer-me essas perguntas. Depois pensei: "Que raio é que importa onde o pai dele está. Porque é que estou a colocar essa questão? Seja lá qual for a idade dele, ou onde moram os seus pais, isso não deveria ter importância. Estou a ver o ambiente onde ele mora. Ele é alguém que, de repente, se viu, enquanto jovem, completamente sozinho. Eu, como ser humano, não posso ver isso e dizer que o problema é dele. Ninguém escolhe morar aqui; eles foram obrigados a vir para cá pela ameaça de que estão a fugir".

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Desde cedo aprendemos sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre como Hitler era perverso. Uma pessoa tenta sempre imaginar como é que ele conseguiu fazer o país inteiro concordar com o que estava a fazer. Agora, estamos a ver isso em primeira mão. Mas, eu não quero ser uma boa alemã. Quero estar do lado certo da história

Há pessoas que podem dizer: "És apenas uma cantora pop, devias continuar apenas a fazer música". Mas, há 40 anos atrás, há 25 anos atrás até, não eras levado a sério como músico a não ser que tivesses uma posição política. Os media mainstream viram essa ameaça a chegar - que as celebridades tinham poder - e começaram a difamar todos os que se envolviam nessas questões.

O que eu sei é isto: no início de Outubro, o governo do Reino Unido aceitou os primeiros 14 jovens do acampamento, incluindo Shamsher. Poucos dias depois, começaram a trazer crianças em número muito maior. Não estou, de modo algum, a querer assumir os louros, mas quem sabe? Se a reação contra mim e Gary Lineker não estivesse em todas as primeiras páginas, teria o governo trazido aqueles primeiros 14 miúdos e todas as crianças que chegaram depois? O governo estava a arrastar este assunto há meses e, agora, finalmente, começou a agir.

Se foi porque anunciaram que a "Selva" de Calais seria demolida, ou porque coloquei a questão de novo nos media, não sei dizer. Mas gosto de pensar que o que fiz ajudou, pelo menos um bocadinho, os refugiados. Esse foi o objectivo de lá ir. Uma lei foi aprovada. Três mil crianças têm o direito de ficar aqui. Mas estão lá. À espera.


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