Fogo-de-artifício, danças selvagens e alguma chuva

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Milhões de Festa

Fogo-de-artifício, danças selvagens e alguma chuva

Viver ao máximo e até ao fim.

Fogo-de-artifício invadiu o céu barcelense na noite de ontem, como que comemorando o dissipar momentâneo das nuvens de chuva e a proliferação do dia do meio do Milhões de Festa. Tocavam na altura os Egyptian Hip Hop, cujas piadas fáceis sobre afinal serem ingleses e afinal trazerem um ritmo africano tingido assertivamente com laivos melódicos que conhecemos no pós-punk, já foram todas usadas e recicladas. Terão pensado que sim senhores, rolem a cortina de fumo e as luzes strobe e temos videoclipe pronto. Muito o público se deixou levar pelo clima puro de festa e dança, ainda mais quando a margem oposta do Cávado decide iluminar a noite. Ou foi o tamanho espectáculo que levou a dita margem a precipitar-se precocemente, já que o concerto ia a meio. Apostamos já que futuramente se mostrem em palcos cada vez maiores.

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O dia do meio do festival serviu também para os Eyehategod mostrarem o dedo do meio ao mundo, através de um bruto e arrastado sludge que replicou o efeito Ufomammut da noite anterior, trazendo para palco uma irrepreensível máquina de peso que, pelos sorrisos espalhados pelo recinto no final, só podemos adivinhar ter deixado toda a gente satisfeita, e que se fez acompanhar de uma massa humana coesa que fez a banda terminar com amor.

Antes deles, já os Process of Guilt estiveram ao seu melhor nível, enchendo o palco VICE e galgando as margens do Cávado de um eco intenso e corporal, inspirando uma coreografia humana de cabeças extenuante, física e psicologicamente. Com

Faemin

à cabeça, os eborenses mostraram o porquê do seu doom quasi-industrial ter sido chamado a marcar presença no Roadburn. Ainda assim, foi a dança o ingrediente principal da noite. Foi pena que Dam Mantle não tenha tocado bem mais tarde do que as onze da noite. O produtor britânico é um mestre na arte do corte e costura que encontramos na música de dança, e ontem talhou a sua actuação com pormenores sacados ao jazz e ao hip-hop, sem nunca esquecer a batida de hip-hop quebrada e as texturas harmónicas do dubstep britânico.

Seguiram-se os regressados e reformulados Loosers, agora com Jerry the Cat entregue ao sampling e Rui Dâmaso de guitarra em punho, que sem como nem porquê se entregaram a diatribes sonoras dignas de uma viagem xamânica. Na enorme onda rítmica, intrínseca ao quarteto, pontifica cada vez mais Jerry the Cat, um pregador da era moderna, exímio no expurgar das decadências sociais. Não deixou de causar estranheza que perante um grupo de pessoas que assomou a palco sem mais pretensões do que as de tocar e experimentar livremente, o público se mantivesse afastado e maioritariamente sentado. Estar-se-iam a guardar para os irresistíveis ZA!, os maiores manos de sempre, que vivem em Barcelona e que tocam de caralho. De humor pungente — alguém topou a música sobre soundchecks? — e uma capacidade técnica que tem de ser sobre-humana, fizeram o Milhões unir-se e fazer jus à Festa no nome do festival.

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Já passava das duas quando o vocalista dos portugueses Octapush subiu ao palco para pedir desculpa, que tinha que ir mijar e que já voltava. E nós perdoamos, até porque quando voltaram todos fizeram questão de deixar toda a gente a mexer e a tirar a roupa. E deram o exemplo, tirando eles mesmos as deles e expondo os seus triquinis verdes à la Borat. Não houve pé que não levantasse pó, da primeira precisamente até à última música, altura em que aparece a chuva, essa velha amiga da onça que invade os fins de noite e as manhãs da cidade.

De forma intermitente, a chuva foi regando campistas felizes e festivaleiros cansados, que se reuniam em tendas alheias ou debaixo de telheiros de bares abertos a noite toda. Fim de noite perfeito para se fazer o amor dentro de uma tenda com boa isolação, ou virar a dita em caso contrário e fazer dela barquinho, já que desde aí e até de manhãzinha, houve chuva suficiente para alagar tudo e todos os que apanhou, e a fazer poças gigantes onde conseguiu. Junte-se à misturadora um vento forte e frio, e gritos de raparigas que se apercebem que deixaram as toalhas lá fora, ou de rapazes efeminados com infiltrações. Saudades, roupa seca.

Por culpa da intempérie também a organização se ressentiu. O Milhões não é festival permeável e chegou a recear-se o fecho da piscina e da taina. Mas também não é festival que se assuste com as manias da meteorologia, e com um tempinho de preparação extra a atrasar os actos, dando também tempo aos campistas de arrumarem as coisas molhadas e se desenterrarem das terras molhadas, já os Malcriada estavam a encher o ar barcelense de música.

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Com os Vai-te Foder chegou uma rajada furiosa não de chuva, mas de chapadas crust-punk como manda as regras — rápido, feio, sujo e muito mau. Foi bom, mas o Milhões tem primado pelo excesso de peso, pelo que a electrónica quase ao lusco-fusco dos BiarooZ tenha sido o aquecedor perfeito para corpos que se começavam a enregelar. Corpos apenas, porque o coração vinha quente e amolecido pela beleza e sensibilidade que os Evols encarnam cada vez mais na sua música simples, mas apegada à razão de ser e viver. Foi o momento etéreo mais bem conseguido no palco Taina que, a partir de agora, já só existe nas mil e uma recordações que levamos daqui para a frente.

Mais se ressentiu a piscina, habituada ao calor intenso imposto pelo forte sol barcelense e aos mergulhos frescos encorajados pela música tropical. Desta vez o astro-rei intimidou-se e escondeu-se por detrás das nuvens, deixando as águas para os mais corajosos e para quem mais vontade tinha de uma despedida à séria. O tempo roubou, assim, impacto aos artistas que se prepararam para o calor.

Caso de Sequin, menina-prodígio da família de homens que é a Coronado, e por esta altura rainha de uma voz soberba, que canta sobre um pop electrónico inspirado nos ares africanos e também indianos que provavelmente Ana Miró adquiriu do tempo que passa com Jibóia, a tocar também hoje, mais logo. Ainda assim, o acto que mais puxou o movimento, a dança e até o calor.

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Seguiu-se Torto, banda que embalou o público que se aventurou nas relvas húmidas nas suas baladas de rock pesado, sólido e absolutamente sóbrio, quase flutuante. Esperava-se também muito dos Long Way To Alaska, que contam com dois EPs e um LP de indie folk que encantaram pelas variações melódicas de post-rock. Os problemas técnicos que os obrigaram a um atraso significativo, aliado ao problema óbvio do tempo, cansou o público, que se reteve na resposta que deu a um concerto menos conseguido e que em condições normais até pediria dança na piscina.

Os DJs da casa fecharam o palco da edição, menos sentido este ano graças aos caprichos de São Pedro, mas que ainda assim vai deixar saudades, mais pelas vivências, pelas personagens (sdds Homem de Branco) e, queríamos nós, pelas mamas, mas afinal, pela resistência e persistência. Enquanto vos damos conta disto tocam os Partisan Seed, primeiros do alinhamento daquela que se espera grandiosa noite de fecho do Milhões de Festa. Sobreviveremos com dança selvática e sorrisos largos de felicidade aos avisos de tempestade, para o viver ao máximo e até ao fim.

Fotografia por André Vitor Tavares