O Quidditch da vida real é o desporto mais progressista do Mundo

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Identidade

O Quidditch da vida real é o desporto mais progressista do Mundo

Quem é que afinal pratica o desporto inventado pela autora de Harry Potter? Estivemos num torneio de Quidditch e encontrámos um santuário para pessoas de todos os géneros e identidades sexuais.
Hannah Ewens
London, GB

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

Para ti, para mim e para o Mundo em geral, o Quidditch é um desporto ficcional, inventado pela escritora britânica de-que-toda-a-gente-aprendeu-a-gostar, JK Rowling. Os jogadores estão sentados em cima de vassouras de bruxa e só existe dentro dos livros de Harry Potter, ou no ecrã. certo? Errado. Para um pequeno grupo de pessoas, é um jogo legítimo, real e não muito diferente daquele que conhecemos da ficção e no qual se baseia.

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A diferença crucial é que estes praticantes da vida real não voam. Em vez disso, correm com um pau entre as pernas. Não te armes já em idiota. O pau é um handicap, como tantos outros em todos os desportos.

Podes ter até 21 elementos em cada equipa, sendo que são permitidos sete em campo: um guarda-redes, três perseguidores (os que marcam os cestos e, assim, conseguem os pontos), dois batedores (que controlam a táctica e os movimentos em campo, bem como a parte do género "Jogo do Mata") e um "seeker" (o que persegue a bola de jogo - chamada "snitch").

A bola não é dourada e não tem asas mecânicas; é uma bola de ténis barata, enfiada dentro de uma meia amarela e que é colocada na parte de trás dos calções do "snitch runner".

Bastante homo-erótico até agora, não? No entanto, como descobri recentemente, durante as finais do campeonato do Reino Unido, que decorreram em Rugeley, o Quidditch está longe de ser um passatempo que promove a masculinidade e os machos. É, isso sim, uma actividade que promove a inclusão. As equipas são mistas e aceitam pessoas de todos os géneros, ou mesmo quem rejeite a ideia de género por completo. É o jogo inclusivo do futuro.

Jack Leonard, de 21 anos, é um dos editores da publicação mensal Quidditch Post, que conta com mais de 40 mil leitores, e jogador da segunda equipa da Universidade de Oxford, os Oxford Quiddlings. Leonard, fanático de Harry Potter, descobriu o desporto logo no primeiro ano de faculdade. Mas não é por causa da sua obsessão que continua a praticar. "Este é o primeiro desporto que verdadeiramente apoia a inclusão de géneros", explica. E acrescenta: "Se és transsexual, jogas como transsexual.

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Se és não-binário, é igual. A paridade faz com que o Quidditch tenha, por isso, um ambiente realmente único. Este elemento LGBT sempre fez parte da modalidade, além disso, é algo que promovemos. Irá sempre haver gente que está interessada em praticar desporto, mas que não se ente confortável num ambiente potencialmente castrador em relação ao género e à sexualidade. O Quidditch é exactamente o oposto".

Jack Leonard dos Oxford Quiddlings

No Livro de Regras da Associação Internacional de Quidditch, há uma secção bastante vasta dedicada à terminologia e aos pronomes que devem preferentemente ser usados em relação à identidade de género. Veja-se a regra dos "quatro elementos por género". Cada equipa pode ter em campo um máximo de quatro jogadores (sem incluir o "seeker") que se identifiquem como sendo do mesmo género. Como modalidade nova, o Quidditch asusme-se assim como tendo fundamentos literalmente inclusivos e que promovem um espaço seguro.

Cada equipa com que falo diz-me que tem, pelo menos, um jogador transsexual, bem como não-binários e um largo espectro de sexualidades. A equipa Taxes, cujos elementos são oriundos de vários pontos do País, é uma das mais inclusivas em todo o Reino Unido. "Eu sou não-binário. Contactei um jogador transsexual e fundámos a equipa juntos, o que fez uma grande diferença", sublinha Bex McLaughlin, de 24 anos. "O nosso treinador é também não-binário e ter estas pessoas na fundação da equipa, fez com que isso atraísse mais gente. Somos muito diversificados e quanto muito temos de estar atentos à "regra dos quatro" por termos muitas mulheres", acrescenta.

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Outro membro da equipa, que preferiu permanecer anónimo, diz que descobrir o Quidditch foi essencial para descobrir a sua identidade. "Não conhecia a palavra género antes de entrar na modalidade. Sabia, no entanto, como é que me sentia, que nem me sentia feminina, nem masculina. Foi então que, num treino, ouvi alguém dizer que eu era neutral. Explicaram-me e foi como uma epifania".

A tradição desportiva tipicamente diz-te que tens de escolher um lado: feminino, ou masculino. No Quidditch não tens de escolher se não quiseres. "Quase todas as equipas desportivas da universidade são unissexo, o que, na verdade é ridículo", argumenta Zoe Ford, de 22 anos, que se considera neutra em relação ao género e joga nos Oxford Quiddlings. E acrescenta: "No Quidditch até a rapariga mais pequena pode fazer uma placagem a um gajo enorme. Isto faz com que a dinâmica de jogo seja bastante interessante".

É, seguramente, um desporto estranho quando se está a ver um jogo. Gajos enormes a serem atirados ao chão por gente queer extremamente magra; e gente grande a atirar bolas meio vazias contra mulheres transexuais. Muitos dos praticantes dizem-me que, se não fosse o Quidditch e o facto de aceitar todos os tipos de corpo e capacidades, nunca se teriam metido em actividades desportivas.

De acordo com Leonard, esta diversidade é mesmo essencial para o jogo em si: "Há uma série de posições, tácticas e abordagens que são necessárias. Toma como exemplo as pessoas que levam o "snitch". Algumas são melhores para correr, outras são autênticos tanques e conseguem afastar o adversário facilmente, outras podem ser mais pequenas, mas sabem artes marciais e podem usar essas habilidades em seu favor e da equipa".

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E não te preocupes, até o gajo mais "normal" é bem-vindo. Andrew Price, de 21 anos e jogador pelos Nottingham Nightmares explica como: "Queria actividade física intensa, fazer placagens e levar gente à frente, mas nunca gostei muito do rugby e, quando cheguei à universidade, pensei que não seria suficientemente bom para integrar a equipa. Com o Quidditch não é tão difícil teres o nível necessário para entrares. Como é uma modalidade com poucos anos de vida, nem sequer há muita gente que o jogue desde o início".

Faz sentido que a maioria dos praticantes sejam universitários. As universidades são centros políticos e era inevitável a determinada altura que um desporto como este acabasse por aparecer. No entanto, nesta competição não deixa de ser curioso que os semi-finalistas sejam a primeira equipa de Oxford, e as equipas de Durham, Warwick e Nottingham e que seja a de oxford a conquistar o título.

Apesar da filosofia que a gere parece-nos claramente uma modalidade de pessoas brancas e da classe média. Sugiro isto a Leonard, mas ele discorda e garante que algumas das primeiras universidades a terem equipas foram as de Keele, Chester e Southampton, o que demonstra, em seu entender, que as equipas reflectem a demografia das instituições.

E se os jogadores são, na sua maioria, universitários, quem são os espectadores? Quem é que decide passar um fim-de-semana a ver um jogo de Quidditch? Na maioria são outros estudantes a puxarem pelos seus amigos, ou familiares. Mas também há um número bastante decente de gente que vem por curiosidade. A família Paduano, por exemplo, foi ver o torneio porque a sua filha de 14 anos é fã de Harry Potter e queriam perceber que raio era aquilo. "Estávamos bastante curiosos", diz o pai. "Só fiquei bocadinho desapontado por não usarem mesmo vassouras de bruxa, mas é, na realidade, um jogo fascinante - e mais físico do que estávamos à espera. Acho que tem o seu valor oara os espectadores e consigo imaginar crianças a adorarem jogar isto". Os outros filhos, de 7 e 8 anos, concordam.

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E estes miúdos podem muito bem estar com sorte. O Quidditch pode em breve ser implementado em várias escolas. Há um novo programa com um sistema de regras que impedem o contacto mais violento que Leonard e os seus amigos estão a desenvolver para que possa ser integrado nos currículos escolares. Imaginem um mundo futuro onde em vez de rapazes a jogarem Rugby e raparigas a praticarem Volleyball, encontres jovens de todos os géneros a correrem atrás de uma bola montados em paus. Quanto mais vês o jogo ao vivo, mais vês essa possibilidade como muito provável.

Ainda assim, há um caminho mais ou menos longo a percorrer. Para além dos que o praticam, poucos são os que já o vêem como um desporto real. "Estamos a tentar por todos os meios fazer com que seja reconhecido pela Federação de Desportos de Inglaterra", salienta Leonard. "Para que isso aconteça temos de seguir vários procedimentos e já o fizemos na totalidade - um torneio nacional e um comité nacional que apoie uma causa social. Esperamos que no próximo ano consigamos obter o reconhecimento e aí possamos aceder a subsídios e conseguirmos instalações mais adequadas e por aí fora".

O Quidditch pode muito bem ser um desporto menosprezado por pais mais cínicos e amantes do pontapé na bola. É normal. É algo que rompe completamente com a tradição. Depois da final, as equipas, vencedores e perdedores, abraçam-se e cumprimentam-se com fervor. "Nós gostamos mesmo uns dos outros, independentemente da equipa", garante Leonard. "Estamos nisto juntos e somos todos amigos".

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Se esta amizade e sentimento de amor vão sobreviver se o Quidditch algum dia se assumir como desporto de massas é o que se vai ver. Pode algo assim alguma vez ser mainstream e sobreviver? Leonard explica que, basicamente, todos querem que o Quidditch seja reconhecido e que cresça, mas sem comprometer os seus valores básicos.

A "regra dos quatro" em relação ao género é muito importante e está na base de tudo o que fazemos. Não imagino que isso possa ser modificado. Se as entidades oficias disserem que temos de segregar em relação ao género, significa que não vamos levar as coisas por diante. Dizemos não imediatamente. O Quidditch é inclusivo. Não é apenas um bando de fanáticos do Harry Potter a fingir que andam por aí a voar em vassouras".


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