O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu no fim de semana que o presidenciável do PT, Fernando Haddad, fizesse em sua campanha eleitoral associações ao fato de seu adversário do PSL, Jair Bolsonaro, ser favorável à tortura — mesmo diante de vídeos como este, em que o deputado federal e capitão reformado do Exército fala claramente de seus métodos preferidos, ou do notório voto a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, citando o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Ustra que, aliás, também foi personagens de manchetes na semana passada, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu extinguir a ação que obrigava Ustra, morto em 2015, a indenizar a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e assassinado nos porões do DOI-CODI em 1971 sob o comando do coronel. O desembargador Salles Rossi alegou que “não havia provas” para a participação de Ustra na tortura a Merlino.
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A inocência tardia ao coronel, que admitiu na Comissão da Verdade ter torturado dissidentes do regime, e a defesa que dele faz o favorito a assumir a Presidência da República a partir de 1º de janeiro, são sintomas claros que um país que nunca se colocou diante de sua própria história; consequências do processo de anistia realizado no fim da década de 1970 e que nunca foi devidamente revisto no período democrático.
“O problema não foi a Anistia, realizada da forma que era possível e consequência de como se estabeleceu o regime militar, mas a falta de vontade política depois, com a Constituição de 1988 e a consolidação da democracia, de revisitar o tema”, explica o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, professor da PUC-RS na Pós-Graduação em Ciências Criminais e que já foi membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Ele explica que, ao contrário de países vizinhos, como a Argentina e o Chile, em que o uso da força foi predominante, no Brasil a ditadura militar tentou se consolidar como uma instituição, mantendo certas estruturas democráticas, como a abertura do parlamento e as eleições municipais na maioria das cidades — à exceção das capitais e das cidades “estratégicas para a segurança nacional”.
Os Atos Institucionais, como o número 5, de 1968, que fechou o Congresso e suspendeu o princípio do habeas corpus, eram exceções adotadas quando havia a necessidade de manter o controle. “Era uma ditadura civil-militar com apoio do Judiciário e um domínio institucional que, com a censura funcionando e toda uma cadeia capilarizada de monitoramento, mantinha um ar de democracia. Havia um grande nível de judicialização da repressão, para criar uma aparência de que havia julgamentos, leis, que era tudo regrado por entendimentos judiciais democráticos”, explica o professor. É o que outro especialista, o inglês Anthony Pereira, batizou como “legalidade autoritária”.
Para Moreira, tal situação ajuda a explicar o fato de o número de mortos e desaparecidos por causa do regime — oficialmente, são pouco mais de 400 casos — ser bem menor do que nas ditaduras chilena e argentina, que somam cerca de 40 mil e 30 mil mortos, respectivamente. “A pessoa era presa, torturada e, depois que as informações eram extraídas, tinha a pena reduzida ou era até mesmo inocentada. Mas essa ‘normalidade’, entre aspas, fez com que a ditadura fosse naturalizada. O Brasil é o único país da América Latina que não fez nenhum processo de reparação. Para ninguém. Seja político, empresário ou militar, agente de segurança pública, não houve responsabilização.”
Anistia para todos ou nenhuma anistia
A Lei da Anistia entrou em vigor em 1979, permitindo que políticos de oposição que viviam exilados, como os governadores Leonel Brizola (RS) e Miguel Arraes (PE), cassados pelo golpe de 1964, pudessem voltar ao país e participar do processo de redemocratização. Mas o regime só aceitou isso tendo a garantia de que seus agentes também fossem inocentados pelo terrorismo de Estado que foi praticado nos porões da ditadura.
“A transição no Brasil foi conciliadora. Os militares foram engenhosos ao fazer uma abertura gradual que, antes de proteger o país, serviu para que protegessem a si mesmos: o governo Tancredo, que acabou sendo Sarney, funcionou como uma câmara de descompressão, entregando o poder de volta aos civis nos termos dos próprios generais, sem dar a escolha ao povo, e aproveitando esse período de transição para apaziguar os ânimos e tornar os horrores mais distantes no tempo”, explica o jornalista Maurício Brum, doutorando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda em suas pesquisas o processo da transição democrática no Chile — onde a ditadura durou de 1973, quando Augusto Pinochet tomou o poder, até 1990, dois anos depois de um plebiscito que selou o fim do regime.
Brum também considera errado culpar a oposição de então por ter aceito as condições dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo para que a anistia existisse. “É preciso levar em conta o sofrimento de quem se opunha aos militares, a longa dor dentro e fora do país, no caso dos exilados. Isso levou a aceitar um acordo que, sem ser o ideal, pelo menos permitia que tentassem reconstruir suas vidas”, completa. Moreira lembra que um texto alternativo, que previa a responsabilização da tortura e foi escrito pelo MDB, a oposição consentida da época, chegou a ser votado na Câmara. “E seria rejeitado no Senado, que tinha um terço dos seus membros escolhidos de forma biônica. Ou então o Figueiredo ia tirar um novo Ato Institucional do bolso. Era uma barreira clara que não era possível vencer naquele momento.”
Mas aí passaram os anos, veio a Constituinte, vieram as eleições diretas, governos de centro-esquerda e… pouca coisa aconteceu. A Comissão da Verdade ouviu dezenas de vítimas e até alguns algozes, inclusive Ustra, que não se furtou a descrever, em 2013, os métodos de “convencimento” que usava contra “os terroristas que queriam instalar uma ditadura comunista” (qualquer semelhança com as ameaças feitas por Bolsonaro neste domingo aos “criminosos vermelhos” não é mera coincidência). Mas a Comissão não teve caráter condenatório; serviu, no entanto, como suporte para ações como a da família Merlino, encerrado na semana passada. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal já havia decidido que a Lei da Anistia não poderia ser modificada.
“Houve uma inércia para rever as coisas. Tentamos mudar, mas faltou vontade política, inclusive no governo Lula, embora os então ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannucchi (Direitos Humanos) tivessem interesse. Tentamos e estamos tentando mudar isso, mas o Judiciário está irredutível nessa posição reacionária, que reproduz durante uma democracia a posição da ditadura”, explica José Carlos Moreira.
No DNA das Forças Armadas
No livro 1889, o escritor Laurentino Gomes encerra sua trilogia sobre o Brasil do século 19 (iniciada com 1808 e 1822) com uma descrição do cenário que consolidou a formação do Exército nacional, desde os tempos da Monarquia até a Proclamação da República — que, a bem da verdade, foi um golpe de Estado construído em parceria entre civis e militares. Ao longo do século passado, as Forças Armadas estiveram envolvidas em outras tantas tentativas de influenciar a política. Algumas bem-sucedidas, como a Revolução de 1930, que derrubou a Velha República e levou Getúlio Vargas ao poder, e o golpe de 1964; outras nem tanto, como as revoltas tenentistas da década de 20 e a conspiração para impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955.
Esse desejo de influenciar nos destinos da nação vem do outro lado do Atlântico: dos escritos do francês Auguste Comte, que criou uma doutrina chamada positivismo. Um de seus seguidores mais fiéis no Brasil foi Benjamin Constant, líder do movimento republicano e criador dos principais manuais de formação de militares. Para ele, o Exército representava a “retidão moral e de caráter de uma nação”, e por isso precisa estar a postos para garantir que tudo corresse bem. Os manuais foram modificados, mas o espírito segue o mesmo: até hoje os jovens oficiais ouvem desde o início da formação que têm a missão de zelar pela retidão da pátria. Jair Messias Bolsonaro juntou-se a esse grupo, vale lembrar, em 1971, no auge da repressão movida pelo regime militar sob as ordens de Emílio Garrastazu Médici.
Em tempo, registre-se que a nossa bandeira traz a versão encurtada de um lema positivista criado por Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”.
Restabelecendo a verdade
A batalha narrativa segue em vigor. Para Maurício Brum, é preciso contestar os pontos da narrativa a favor dos militares com fatos concretos, e não apenas na questão dos Direitos Humanos. “Um bom caminho é começar a desmontar os supostos legados da ditadura militar. O tão exaltado milagre econômico durou um período muito pequeno frente aos 21 anos de generais no poder, e ao fim da ditadura o Brasil estava quebrado e a caminho de uma hiperinflação que só seria encerrada em 1994. Os índices educacionais do Brasil eram terríveis, a desigualdade econômica era tremenda, a pobreza e a fome chegavam a níveis hoje inimagináveis, as obras faraônicas de infraestrutura não foram feitas apenas pelos militares (vinham de antes e seguiam depois) e foram feitas à base de corrupção, contratos escusos, massacre de povos indígenas e todas as maracutaias que ainda hoje existem e fincaram suas raízes naquela época”, explica o jornalista. “Além disso tudo, e aí chegamos no ponto fundamental, tratava-se de um massacre criminoso autorizado pelo Estado.”
Para o jurista José Luis Moreira, essa batalha pela narrativa em um eventual governo Bolsonaro será complexa, mas pode ser vencida. “Cabe aos pesquisadores e aos movimentos sociais que estão mais próximos dessas narrativas, e que sabem a importância da resistência, dar continuidade às lutas do presente, até porque enquanto estas questões não foram devidamente confrontadas o problema vai continuar se reproduzindo, ciclicamente”, prevê. “Nós não quisemos nos encarar no espelho depois da ditadura, para reconhecer nossa característica escravista, brutal e autoritária, e agora ela está voltando para nós.”
Moreira acredita, inclusive, que Bolsonaro, chegando à Presidência, agirá de forma parecida com seus inspiradores, por meio da “legalidade autoritária”. Ele cita casos como o do ex-presidente Lula, proibido de concorrer e mesmo de dar entrevistas, e o decreto assinado na semana passada pelo presidente Micher Temer que prevê “ações contra o crime organizado” sem definir com clareza o que é, afinal, uma organização criminosa, como uma amostra que a legalidade constitucional já está indo pelos ares no Brasil. “Será de uma forma mais sutil que na ditadura de 64, porque os espaços de resistência hoje são maiores e não há ambiente e tolerância para uma ditadura ‘tradicional’, mas a ditadura ‘mal disfarçada’, com o cerceamento de certas liberdades, vai aumentar”, prevê.
Os especialistas admitem, ainda, o risco de um “efeito Bolsonaro” se estender pelos vizinhos latino-americanos, ainda que em outros países haja mais restrições a manifestações favoráveis a regimes autoritários — no Chile do presidente Eduardo Piñera, que é de direita, o ministro da Cultura, Mauricio Rojas, teve de se demitir depois que críticas feitas em 2015 a um museu que relembra os crimes da ditadura Pinochet se tornaram públicas.
“Isso não quer dizer que estejam imunes a isso. O Chile pune os militares e políticos que saúdam o regime ditatorial, mas, ainda assim, há quem considere aceitável fazer essa exaltação. E há os tímidos, que desejam fazê-la mas se aquietam porque o momento não é propício. Como o Brasil aprendeu nos últimos anos, essa gente pode estar na casa ao lado, aguardando”, defende Brum. “Sempre existe o risco, mas ele afeta mais os países com estrutura social menos consolidada, como o nosso. Eu me arrisco a dizer que dificilmente outra pessoa com atitudes tão extremas na sua violência, na sua ignorância, vai surgir em outros países. Pode acontecer, mas não de forma tão explicitamente autoritária como o Bolsonaro”, completa Moreira.
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