Atravessámos a linha com A Boy Named Sue
Todas as fotos por Nuno Gervásio

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Música

Atravessámos a linha com A Boy Named Sue

Dono de um percurso ecléctico, A Boy Named Sue tem um objectivo claro: pôr-te a dançar.

Esguio, de casaco preto e calças da mesma cor, a contrastar os sapatos brancos. Nos dedos os anéis e entre eles os cigarros. Cigarros sacados à mesma velocidade com que lança novas histórias. É um marginal. É o Deus do tempo, daquilo que se mantém universal e sempre o será – a rebeldia, o amor insaciável pela liberdade, o amigo.

Foi escolha mais do que subjectiva para marcar o trigésimo aniversário da RUC (Rádio Universidade de Coimbra). A única escolha possível. Tiago André Sue. DJ A Boy Named Sue.

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"A minha entrada na RUC deu-se de uma forma caricata. Antes, foi através dela que comecei a ouvir Iggy Pop, Jon Spencer… músicos que depois se tornaram referências para mim. Quando era puto esperava que o locutor parasse de falar para pôr a gravar as músicas e assim era capaz de fazer uma compilação em K7. Ouvia os concertos da Queima das Fitas que a RUC transmitia na altura. Numa época em que não havia festivais, a Queima, era uma referência. Passaram por lá gajos como o Iggy Pop, The Fall, Durutti Column, uma série de bandas incríveis. Nessa altura já era DJ, por volta de 2001, e já tinha tentado entrar duas vezes. Primeiro tens de responder a um questionário, mas dessas duas vezes nunca passei. Houve um ano em que fui à entrevista e depois à fase de turmas no curso de programação.

Chumbei no curso de programação, apesar de já me desembaraçar tecnicamente. Mas, na altura, faltava-lhes uma pessoa para fazer o programa de Rock n´Roll e chamaram-me. A coisa mais caricata foi o João Alexandre, que neste momento está na TSF, estar a fazer uma crónica de meia hora no meu programa e eu, que chumbei, estar a fazer um programa de duas horas. Depois são estas histórias…a de conhecer o José Braga quando tinha 16 anos e ficar abismado ao ir a casa dele. Levas com um mundo de cultura musical na tromba.

Entretanto, criei o meu programa Cocktail Mariachi, que dura há 12 anos, e colaborei noutros programas, no RUC n´Roll, no Crossroads, que é dedicado ao blues, do Afonso Rodrigues. Cheguei a criar um programa na grelha de Inverno, de punk, que se chamava Sé Velha Über Alles ou No Meu Tempo os Punks Usavam Botas da Tropa, em que se contava a história do punk americano, inglês, a segunda vaga, o punk-hardcore, o punk brasileiro, português, espanhol, proto punk, o punk no feminino".

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A TARDE COMEÇA ENTRE VAGÕES AMARELOS, DE MERCADORIAS, COMO QUALQUER BOM VIAJANTE. A PRIMEIRA PARAGEM, COIMBRA

"A RUC sempre foi capaz de dinamizar a música em Coimbra, através dos DJs da rádio. Sempre foram grelhas muito ecléticas. Sempre houve grandes nomes, e não necessariamente só ligados ao rock n' roll… dentro da electrónica, os da Casanostra com o David Rodrigues, o Afonso Macedo, o Tiago Eiras, o Hip-Hop… Sempre programas marginais e a apoiar os artistas, a organizarem concertos, festas, ou seja, a darem visibilidade ao que se ia fazendo. É uma escola na maneira de estar, na maneira de ser. Não somos profissionais, temos o espírito, mas fugimos às regras. Poderia haver programas de faixas, mas podes passar tudo o que te apetecer, podes dizer o que te apetecer, podes fazer o que quiseres em directo. Há um grande campo para experimentar, dar azo à tua criatividade, muito à vontade, muito tu cá tu lá com o público. È mais fácil tocares as pessoas.

Houve sempre uma proximidade muito grande, em contraponto com a visão mais institucional da academia. Ao mesmo tempo tinha a parte louca e boémia de Coimbra, mas com um bocadinho mais de cabeça. Não sei se há uma espécie de fantasmas naquele corredor, que nos chamam sempre para aquela atmosfera caótica e de entre-ajuda, de cabos e computadores desmontados, de cheiro a tabaco, de malta que fica ali até às seis da manhã a trabalhar. E, se reparares, há gajos que continuam ligados à música e que passaram pela RUC: os Sean Riley & The Slowriders, os Keep Razor Sharp, o Paulo Furtado, que não sendo membro da rádio, viveu-a, a Rita Moreira, no Canal 180, o Alexandre na TSF, o Turgal e o Picanço, o Ricardo Mariano na Radar, a Cláudia Duarte… e só me estou a lembrar de alguns da minha geração. E estas pessoas que foram saindo, não só dão visibilidade à RUC, como à própria cidade.

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SUBIR EM ANDAMENTO, ESPREGUIÇAR NOS VAGÕES E ACENDER MAIS UM CIGARRO, FOI EXERCÍCIO QUE DEVE TER FEITO ENQUANTO ROADIE

"Comecei a ser roadie antes de fazer rádio. Com o Tigerman, os WrayGunn, ainda trabalhei com os Belle Chase Hotel, com os Bunny Ranch, d3o, Sean Riley, Poppers, Keep Razor Sharps. De técnico de luzes, para roadie e road manager. Um faz tudo. Não fiz as tours dos Tédio Boys na América, mas cheguei a pôr coisas nos correios para Nova Iorque. Ainda vivi cenas caricatas, como as célebres festas de Natal do Tigerman no Hard Club, ainda em Gaia, ou no Porto Rio, com 600 pessoas. Naquela altura não havia concertos de Natal, não se fazia nada. Íamos no célebre desportivo anos 60 que o Paulo tinha, para aí a uns 160 e rebentámos com o motor.

Dia 24 de Dezembro a dois quilómetros da área de serviço de Antuã. Fumo, um estouro e a empurrar o carro. Naquela altura fosse concerto de Tédio ou Tiger havia sempre um carro de amigos a vir de Coimbra. Um dos carros apanhou o Furtado e o material e o outro apanhou-me a mim. Outra, também numa tour, só eu e o Furtado, em 2007, 20 dias na Europa. França, Suíça e a última data em Bergen (Noruega). O Paulo, na segunda-feira tinha compromissos importantes em Lisboa. No domingo fui pô-lo ao avião. Fiz praticamente quatro mil quilómetros sozinho. Fiquei conhecido como o homem que veio da Noruega. Cheguei na segunda à noite e na terça já tinha um concerto de WrayGunn".

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ELE E A MALA. A FAMOSA MALA DE CARTÃO. A NOSSA LINDA DE SUE, OU O SOMÁLIA DE CARTÃO COMO JÁ LHE CHAMARAM

"Antes de ser DJ tive uma banda - os Mc Dolls. O Afonso (Parkinsons) era o baterista, o Pedro Calhau (A Jigsaw, Subway Riders) era o baixista e o Luís Peres. Durante um ano tocámos com os Tédio, mas a banda acabou. O Afonso foi viver para Londres e, depois disso, como nunca mais consegui arranjar malta com ligação para fazer uma banda, fui trabalhando com o Paulo Furtado e a certa altura fui fazendo festas como DJ.

Percebi que até tinha algum jeito. Sempre gostei de muita coisa. Não sendo um problema - ou antes, é-o para a carteira - tento sempre misturar aquilo que gosto. Não tenho sets pré definidos. Noutro dia o Mário Valente [Lounge, em Lisboa] até se espantou com a quantidade de material que tinha. Estas malas de cartão servem para transportar muito mais discos. Como prefiro ter discos a mais do que me arrepender de não ter passado aquela música que ficou em casa, ando com elas. Ou foram encontradas no lixo, ou oferecidas.

Nos anos 90 era muito o punk, punk hardcore, mas, muito graças ao Paulo, a amigos, à RUC, comecei a escavar para trás. Donde é que vinha o punk e o New Wave? Ah, vêm dos anos 70, da América, do CBGB, e de Detroit. E antes disso? Ah, dos 60, do garage, da psicadelia. E assim sucessivamente, à procura um pouco das raízes. Aí fui chegando ao gospel, à música negra de raízes africanas e, por outro lado, à América do Sul, ao tango, ao fado, à música havaiana e que estão na base do que ouvimos hoje em dia. Agora como DJ - e por isso me auto-intitulo 'a máquina do tempo do rock n' roll' - pretendo encontrar as ligações entre o que se faz hoje, com os anos 70 ou 50. Saltitar entre décadas sem as pessoas darem por isso. Olhar com uma certa distância permite-nos olhar sem palas. Uma coisa que se fez nos anos 60 faz todo o sentido com outra que se fez noutra cidade, ou continente, e noutra época completamente diferente. Isso nota-se com o que vou fazendo agora.

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Em Coimbra com o Rock n´Roll Freak Out passo desde Chuck Berry, a Motörhead, a Franz Ferdinand, a Chemical Brothers, ou uma versão latina do These Boots are Made for Walkin'. É como meter tudo numa máquina de lavar e sair tudo misturado, mas que faça sentido. Com o Kaleidoscope, que acontece regularmente no Sabotage, em Lisboa, mas que já levei ao Porto e a Coimbra, é dar espaço ao psicadelismo. Há cada vez mais pessoas a gostar deste estilo e achei que fazia todo o sentido recriar o espírito dos 60, mas com um pé no século XXI. Há pouco tempo fiz outro clube, Chills & Fever dedicado ao soul e às raízes negras do rock n' roll. Há ainda colaborações com o Flama no baile Tropicante, mais Latin, Soul, Cumbia, e voltando ao programa de rádio (Cocktail Mariachi), também gosto muito do lado mais havaiano, exótico.

Por fim, a Ultrapassagem de Ano, que surgiu por volta de 2002, que faço sempre com o meu amigo António Manuel e que tem uma biografia incrível. Sabe de tudo, desde world, garage, soul, pop, techno, drum and bass, house… o mundo devia conhecê-lo um pouco melhor. Já ultrapassámos anos na Páscoa e temos uma programada para Maio próximo, em Lisboa. Para além disso, ainda faço umas compilações. A próxima será para a loja Ás de Espadas e terá a ver com roupa e música".

MAIS UNS QUANTOS CIGARROS, UNS QUILÓMETROS MAIS À FRENTE, UNS QUANTOS BARCOS ABANDONADOS E O TEJO AO LADO. À MALA DE CARTÃO JUNTA-SE OUTRO OBJECTO ICÓNICO: A TELEVISÃO

"Não faço ideia de quantos álbuns tenho. Há uns 10 anos, quando tive obras em casa, contei-os. Tinha mais de mil LPs e mais de mil CDs. Agora deve passar dos três mil de cada. Mantenho a mesma organização na mala que tenho em casa. O que vem primeiro: o country, o blues, o jazz, o gospel, uma espécie de árvore da música e os seus ramos. Ouço e compro cada vez mais, mas não sou aquele gajo que pensa que os discos são para estar na prateleira. Tenho um grande amor por eles. Posso ter edições caríssimas, mas que podem estar todas estragadas por andar com elas na estrada a passar música. Um disco tem de ser usado e tirado da capa para aí umas mil vezes. O Live in the Folsom Prison, por exemplo, o meu primeiro disco da mala sempre, está a levar porrada constantemente, está todo desfeito, mas eu também sei que com ele já fiz dançar muita gente.

A televisão surge da ideia de mostrar às pessoas o que se está a passar, que é uma ideia completamente contrária ao conceito de todos os DJs de hip-hop dos anos 80 em que punham uma label branca nos discos, para ninguém saber o que era e para ninguém lhes roubar as músicas. Eu até percebo a ideia dos DJs quererem ter o single que mais ninguém tem, mas eu sou um bocado o contrário. Gosto que as pessoas saibam o que estão a ouvir. O que faz um bom DJ não são os discos que tem, mas a forma como os passa. Podes ter a melhor colecção de discos do mundo e não pôr ninguém a dançar. No final dos anos 90 descobri as gravações do Ike & Tina Turner da década de 60, de rock n' roll e blues que são muito boas. Mas, nessa altura, o imaginário era o Simply the Best, a coxa grossa e o Mad Max, aí pensei: se estas pessoas soubessem que estão a dançar Tina Turner até se passavam.

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Isto estende-se a tudo, desde as pessoas que só conhecem uma música dos Pink Floyd e dizem que não gostam, por exemplo, aos Doors, Stones, ou mesmo aos Arcade Fire, simplesmente porque não gostam das músicas que passam na rádio. Isto é uma forma de quebrar esse tipo de preconceitos. A primeira coisa que fiz foi com umas publicidades de hotéis e punha lá o disco encostadito, depois um suporte de pratos dos antigos que serviam para pôr nas paredes, depois a televisão. Devo tê-la encontrado no lixo, desfiz o interior, pus um acrílico giro, mandei construir uma prateleira para os cd's e singles e uma mangueira de luz. Entretanto pus o meu nome, em baixo, como se fosse uma legenda de um filme. Além disso há artworks do vinil, antigos e mesmo feitos hoje em dia, que são lindos. Antes havia uma liberdade artística muito grande, quer musical, quer visualmente falando. Dá gozo ver uma capa assim. Mesmo nos singles com capas brancas escrevo a marcador só para as pessoas saberem o que estão a ouvir".

UM HOMEM LIVRE NUNCA CAMINHA SOZINHO. VAI ENCONTRANDO OS SEUS

"Eu já conhecia o John Spencer há alguns anos, desde os concertos de Heavy Trash, já tinha passado música com ele. Houve uma vez que veio tocar a Lisboa e ao Porto e não tinha primeira parte. O Furtado não estava disponível e eu durante uma hora e meia passava os meus discos, com a televisão, a aquecer as pessoas. Ele gostou tanto que me convidou para o acompanhar na tournée em Itália.

As coisas desenvolveram-se de uma forma tal que eu sugeria uma música, o Judah Bauer começava a tocá-la à guitarra e a partir deste momento tinha início o concerto. Não havia pausa nenhuma entre a primeira parte e a segunda, tudo era muito fácil, sem a mudança de material que normalmente costuma acontecer e faz perder tempo. E

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m Itália, clubes de 1.500 pessoas já tinham preparado uma primeira banda, no entanto, o John dizia: 'Se têm primeira banda então devem acabar uma hora antes de nós tocarmos, porque primeiro queremos o A Boy Named Sue'. Vindo de um gajo com a dimensão dele é para ficares com um sorriso largo e dizê-lo com orgulho".

MARINHEIRO DE ALGUMAS COORDENADAS E MUITOS SONHOS

"Não passa por ter uma rua com o meu nome, isso nunca, apesar de gostar muito de toponímia. Se a tivesse seria em Coimbra, qualquer coisa do estilo 'A Boy Named Sue – respirador de música'. Mas, uma das minhas lutas actuais, se é que lhe posso chamar assim, é oferecer mais às pessoas do que o simples passar discos.

Começou em Coimbra e faço isso agora, por exemplo, com o Kaleidoscope. Transformo o Sabotage. Tento oferecer uma ideia mais alargada, que se relaciona com a música, sem dúvida, mas que vai mais além. Desde o cartaz e respectivo design, às projecções, às pessoas que também começam a conhecer-se.

É outro objecto para lá do gajo a passar música. Mas a minha grande luta, actualmente, e talvez por isso gostasse tanto de tocar no Festival de Paredes de Coura, por exemplo, é a necessidade de verem os DJs de rock de outra forma. Se reparares, para além dos da electrónica, quem passa outros estilos nestes Festivais são figuras públicas, ou estão associadas à música por outra via que não por serem DJs.

Não se leva muito a sério quem passa rock. De há uns anos a esta parte, sobretudo através dos White Stripes, houve um ressurgir do rock e, se há um Paredes de Coura que esgota, é porque há público para isso. Em geral não se aposta neste tipo de DJs. Não se aposta. Seja em que tipo de evento for, é sempre o mundo da eletrónica a dominar. Esses limites estão cada vez mais esbatidos, logo, penso que se deveriam considerar mais a sério as pessoas que melhor conhecem as culturas rock, pop, indie, com as quais o público se identifica bastante.

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Mais um cigarro fumado e um maço guardado, que a vida do Sue é de noite. Mais umas centenas de músicas para ouvir, uns  flyers para cortar e distribuir. Um aceno de chapéu e estrada, tanta quanto ainda alguém precisar de música como de ar.