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‘Branco Sai, Preto Fica’ é puro apocalipse

Foto: divulgação

Às 10h da manhã, no primeiro dia de aula do curso de cinema da Universidade de Brasília (UnB), o professor exibia em uma televisão de 14 polegadas A Greve (1925), de Sergueï Eisenstein. Então aluno, Adirley Queirós, com 28 anos de idade, mantinha os olhos cravados na tela. Até ali, vivia como jogador de futebol em times pequenos e amadores. Não manjava nada de cinema. Nada. Não assistia a filmes, muito menos documentários. Entrou de gaiato na faculdade querendo cursar comunicação. Optou pelo cinema, já que a nota de corte do curso era a mais baixa. A paixão foi fulminante. Anos depois, em 2014, o promissor e tardio pupilo diplomado faturava cinco prêmios no Festival de Brasília e abocanhava outros tantos em festivais internacionais com Branco Sai, Preto Fica, que mescla documentário e ficção.

O diretor Adirley Queirós. Foto: divulgação

O trailer de Branco Sai, Preto Fica é um tapa na mente. A trilha sonora traz a estarrecedora “Bomba Explode na Cabeça“, de MC Dodô, cujos versos declaram guerra de antemão: “Bomba explode na cabeça, estraçalha ladrão. Fritou logo o neurônio que apazigua a razão. Eu vou cobrar e, com certeza, a guerra eu vou ganhar. Os trutas e as correrias vão me ajudar”. Vencedor de edital, o filme custou módicos 221 mil reais. O diretor ilustra o orçamento: “Alugamos cenário, pagamos todo mundo”.

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Marquinho, interpretado por Marquin do Tropa. Foto: divulgação

Ainda que a bunda-molice permeie parte do discurso de cineastas nacionais, amarrados às verbas públicas ou a monopólios televisivos que só produzem esterco audiovisual, Adirley não joga o jogo e faz questão de ensejar: seu filme é político e apresenta uma vingança simbólica. “Nossa determinação era fazer um filme político, que questionasse, que fosse para o enfrentamento. Talvez tenha sido a parte mais deliberada, mais planejada. É uma vingança contra o Estado, o governo, a polícia. Equipe e atores eram motivados a fazer um filme em que iríamos pra frente do opressor.”

A vingança está no enredo: munido da ajuda de amigos, Marquinho planeja uma retaliação grandiosa. A dificuldade para se mover não o impede de tocar a vida e dar continuidade a sua paixão pela música. Em uma casa simples, apetrechos tecnológicos ajudam o protagonista a descer e subir andares e manter uma rádio amadora no porão. Ao microfone e com a ajuda de beats emitidos por vinis, ele improvisa uns raps doidos. A emoção rasga o peito quando Marquinho se lembra do dia em que a polícia esteve no Quarentão e tirou-lhe o movimento das pernas com tiros. “Bora, bora, bora, bora. Puta prum lado e viado pro outro. Bora, porra. Anda, porra. Tá surdo, negão? Encosta ali. Tô falando que branco lá fora e preto aqui dentro. Branco sai e preto fica, porra.” As doses de realidade foram aplicadas pacientemente: durante as gravações, os programas de rádio eram transmitidos de verdade. “A rádio era ao vivo”, explica o diretor. “Ele falava ao vivo mesmo. Tinha uma emoção.”

Foto: divulgação

Marquin – vencedor do prêmio de melhor ator no Festival de Brasília – e Shokito não são atores profissionais. Ambos moram praticamente na mesma rua que o diretor, em Ceilândia. “A cidade tem um histórico de opressão. Nos anos 70, o governo de Brasília pegou 80 mil pessoas e jogou 50 quilômetros cerrado adentro. Ceilândia nasceu de um apartheid, de um aborto territorial. Durante muito tempo, ela foi estigmatizada como a grande periferia do Distrito Federal. É um lugar de muita migração, principalmente nordestina. É completamente diferente de Brasília, tanto na arquitetura quanto no modo de viver”, frisa Adirley.

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A intimidade ajudou na hora de compor as cenas do longa, que nunca teve um roteiro clássico impresso no papel. “Não existia roteiro, porque o filme todo era baseado na ideia da fabulação. Eu propunha histórias e acontecimentos. A partir daí, eles [atores] buscavam na memória o que podia ser falado. Cada dia, dependendo do clima, acontecia uma coisa.”

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Discernir realidade de ficção pode ser complicado em Branco Sai, Preto Fica. Mas nada muda o que vemos todos os dias nos noticiários: a periferia exposta ao terror policial em tantos aspectos diferentes. Sorte braba o cinema nacional ter um diretor e roteirista disposto a expor as mazelas de um sistema cancerígeno muitas vezes apaziguado pela imprensa – que adora aplaudir um cineminha transgressor, mas continua cagando regras ao falar de pobre, preto e favelado nas grandes redações.

Adirley não para e quer futucar mais a fundo: seu próximo projeto cinematográfico irá trazer as mulheres como protagonistas da periferia, sempre retratada através dos homens – bandidos ou mocinhos. “Como seria o centro da periferia ocupado pela mulher? O centro da rua, das relações, da música, tomando conta do bar? Falaremos disso usando um pouco do absurdo.”

Aguardemos.

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