Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.
Com a Páscoa, chega o tempo das pêssankas, uma tradição milenar pagã absorvida pelo cristianismo na Ucrânia. Os ovos pintados à mão, em família, são oferecidos como talismãs para atrair saúde, amor ou boa sorte. É um momento que Liliya Irza antecipa com entusiasmo e que a distingue das melhores amigas – todas portuguesas – na Escola Superior de Saúde de Leiria. Está no terceiro ano da licenciatura em Enfermagem, até agora com média de 17 valores. A mãe, actualmente sem emprego, também tem formação superior, na área comercial. O pai é motorista.
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Liliya, que tinha quatro anos de idade quando se mudaram de Ctriy para Portugal, segue as pisadas da avó, também enfermeira. Mas, ao contrário dos pais, não se vê a trabalhar noutro país, mesmo com os enfermeiros portugueses envolvidos na maior luta de sempre com o Ministério da Saúde, por melhores salários e condições laborais. “Faz parte da minha personalidade, não sou pessoa muito de viajar, de mudanças. Estou habituada ao ritmo de vida, tenho aqui todos os meus amigos”. Ucraniana ou portuguesa? “Meio meio”. Na hora de ir à missa, no entanto, a escolha é sempre a Igreja do Espírito Santo, onde acontecem os actos litúrgicos para a comunidade ucraniana em Leiria. E onde se cumpre este mês outro ritual da Páscoa: a bênção do cesto preparado por cada família, que inclui o inevitável pão doce.
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Como em quase todas as histórias de imigração com origem na Ucrânia, o pai chegou primeiro. “Um ano em que me lembro que não tinha pai”. Hoje, lá em casa, na Carreira, fala-se tanto ucraniano como português, até porque a irmã, mais nova, já nasceu em Leiria. Com 22 anos, Liliya Irza começou em 2019 o estágio no serviço de obstetrícia do hospital de Gaia. Preconceito e discriminação não sente, só confessa aborrecer-se com os comentários e piadas sobre vodka. E com a não distinção entre russos e ucranianos. “Para os portugueses, somos todos iguais”.
Saltar mais longe
Mas não são. As diferenças vêem-se, por exemplo, nas estatísticas: os ucranianos com estatuto legal de residente constituem a maior comunidade estrangeira no distrito de Leiria e concelho de Ourém, de acordo com o site Pordata. Os filhos da primeira geração – crianças quando as famílias se instalaram em Portugal, no final dos anos 90 e início da década seguinte – estão agora a chegar às universidades e politécnicos, à idade adulta e também às selecções nacionais, em vários desportos.
É o caso de Oleksandr Lyashchenko, que antes de se tornar campeão de atletismo, descobriu, na Marinha Grande, que o dia de aniversário dele é importante para muitas outras pessoas na capital do vidro, mesmo pessoas que não conhece: 18 de Janeiro, a data da insurreição armada contra a ditadura.
Actualmente em Lisboa, estuda fotografia na Universidade Lusófona, um amor recente inspirado nos documentários do National Geographic. E compete pelo Sporting, o que, de alguma maneira, deve à irmã mais velha, que logo na infância o arrastou para a modalidade, no Clube de Atletismo da Marinha Grande. Oleksandr Lyashchenko soma vários títulos nacionais nos escalões jovens e já foi vice-campeão de Portugal no salto em comprimento.
Mas, o momento mais inesperado da carreira é outro: em 2015, apurado para o Campeonato da Europa de Juniores, a Federação Portuguesa de Atletismo esqueceu-se de o inscrever. “Foi irreal”, recorda. “Para mim eram uns mínimos difíceis, estive a época toda a lutar. Na pista coberta, no Inverno, tinha ficado a dois centímetros. E depois, no Verão, tive alguma dificuldade e só na última prova, no último salto, é que consegui fazer os mínimos”. Graças à disciplina que diz dedicar ao treino, vingou-se no ano seguinte, com a presença no Mundial de Juniores. Representar Portugal nas grandes competições é algo natural para quem se sente tão português como ucraniano. Ou, “se calhar, até mais” português do que ucraniano. “Não que faça essa distinção. As duas coisas fazem parte de mim”.
O pai é funcionário de uma fábrica de moldes, a mãe está desempregada, depois de trabalhar em restauração e pastelaria. São originários de Mukachevo, no sudoeste da Ucrânia, uma região de rios e lagos a uma hora das fronteiras com Hungria e Eslováquia. Quando lá vão, Oleksandr gosta de piqueniques nas montanhas. Para ele, aos 22 anos, é isso que a Ucrânia ainda representa: “Família, claro, e também um pouco de casa”.
Com a instabilidade política e económica e o conflito com a Rússia, continuar em Portugal, com sol e mar, parece a melhor opção. Mas, a geração de Oleksandr não se prende a um mapa com fronteiras. “Ter tido e ainda ter estas duas experiências, de dois países diferentes, duas culturas diferentes, só me abre a mente, em todos os aspectos, e acho que deixa sempre em aberto a possibilidade de ir para outros países, experimentar outras coisas. O facto de ter esta experiência dos meus pais, que saíram da zona do conforto, é também um exemplo”.
Conhecer o Mundo
A viver a tradição académica nos ensaios da tuna, entre a percussão e as aulas de guitarra, Diana Derhun, 18 anos, é uma das novas caloiras da Universidade de Lisboa, onde frequenta a licenciatura em Relações Internacionais, graças a uma média de acesso de 15,8 valores. Falhada a primeira opção, cinema, através do curso de ciências da comunicação, agora imagina-se a “conhecer o Mundo todo” e a trabalhar “numa organização não governamental ligada ao Ambiente”. O que ajuda a explicar a observação sobre a cidade de Leiria, que continua a visitar aos fins-de-semana: “Eu achava que fazia falta um parque, mas eles já estão a tratar disso”.
Faz parte de uma geração que considera mais virada para o exterior, o que, acredita, tem provavelmente “muito a ver com o facto de já ter nascido na União Europeia”, com “as fronteiras abertas”. A visão global do Mundo é algo que também “a Internet” ajuda a construir, salienta, tal como crescer numa família imigrante. Daí o futuro que imagina sem muros nem cancelas. “Quero conhecer a realidade de várias pessoas, não só a comunidade em que estou inserida. Quero conhecer mais”.
Natural de Ternopil, na região Oeste da Ucrânia, Diana Derhun chegou a Portugal com cinco anos de idade. A irmã mais nova já nasceu cá. A mãe está desempregada e o pai voltou a emigrar, agora para França, onde trabalha como soldador, ao serviço de uma empresa portuguesa, depois da insolvência do antigo empregador. Em Leiria, Diana Derhun praticou dança e natação, tem mais amigos portugueses do que ucranianos, mas não esquece as origens. “É importante sabermos a nossa cultura, eu preocupo-me com o que se passa lá, informo-me e vejo televisão ucraniana”. Com os avós maternos, em Ternopil, fala por Skype. E se pudesse trazia o Inverno. “Adoro neve”.
Chegar ao topo
A história de Diana Derhun cruza-se com a de Mykhaylo Hryhoryev em vários pontos, que reflectem momentos bons, mas também menos bons, como a necessidade de procurar trabalho e melhores salários fora de Portugal, depois da crise – o pai dela em França, o dele na Alemanha. Diana e Mykhaylo têm a mesma idade, ele não dispensa a gastronomia da antiga república soviética, sobretudo quando é a mãe a cozinhar e também praticou dança: oito anos na academia Annarella, antes do basquetebol e do futsal.
Filho de um engenheiro informático, segue-lhe o trajecto na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria. A mãe, licenciada em Economia, faz limpezas domésticas, representa em Leiria a Associação de Ucranianos em Portugal e já deu aulas de ucraniano a crianças e jovens de ascendência ucraniana, para que os laços com a terra de origem não se quebrem. Portugal, diz Mykhaylo, “é um bom país” no acolhimento de imigrantes, mesmo se algumas pessoas ainda “vivem na ignorância”, com preconceitos em relação aos nascidos no estrangeiro.
Natural de Khyriv, na zona mais ocidental da Ucrânia, a 20 minutos da fronteira com a Polónia, está em Portugal desde os 18 meses e é o segundo de quatro irmãos, os dois mais novos já nascidos em Leiria. Uma cidade que sente como sua e onde diz faltar estacionamento. Talvez uma das aplicações e sites que está a desenvolver nos tempos livres possa ajudar a mitigar o problema. Não se cansa de estudar e pesquisar fora da escola, computadores e telemóveis estão sempre presentes. E explica porquê: “É normalmente assim que os grandes informáticos chegam ao topo”.
Crise forçou saída de Portugal
Maria Lucinda Fonseca, professora catedrática da Universidade de Lisboa e especialista em migrações, confirma que há “um aumento dos ucranianos” no ensino superior e realça que os estudantes em causa “são os que têm cá família e estão a chegar agora à universidade”. Ou seja, “é o acesso à universidade da comunidade ucraniana radicada em Portugal”. Um primeiro degrau na escada da mobilidade social, em comparação com os pais.
“Sem dúvida, a partir do momento em que eles falam português, estão na universidade, têm uma formação e acesso à nacionalidade, têm igualdade de direitos, conseguem competir no mercado de trabalho. Sem dúvida nenhuma é essa a via”, conclui a coordenadora do programa de doutoramento em migrações do IGOT – Instituto de Geografia e Ordenamento do Território. Maria Lucinda Fonseca lembra que a comunidade ucraniana “valoriza muito a formação escolar e profissional”. Daí, os filhos “têm por vezes um percurso escolar melhor do que os nativos com o mesmo estatuto socio-económico”. É uma “aposta de futuro, de mobilidade”.
Nos últimos anos, no entanto, o número de ucranianos em Portugal diminuiu. Continuam a ser a maior comunidade estrangeira no distrito de Leiria e concelho de Ourém, mas as saídas superam as chegadas. Uma tendência que se verifica desde 2003 e 2004, provocada pelo fim das grandes obras públicas em Portugal. E reforçada nos anos recentes, no contexto da crise económica e da intervenção da troika. “Uns foram para a Ucrânia, outros re-emigraram para outros países da Europa”, explica Maria Lucinda Fonseca.
No distrito de Leiria e concelho de Ourém, o universo de ucranianos com estatuto legal de residente encolheu 33 por cento em 10 anos, de 6.182 em 2008 para 4.135 em 2017, de acordo com o site Pordata. Mas, a leitura dos dados tem de ter em conta que “o número dos que adquiriram nacionalidade portuguesa aumentou substancialmente” e esses tornam-se invisíveis nas estatísticas, frisa a investigadora da Universidade de Lisboa e autora do capítulo sobre Portugal no estudo “Migração ucraniana para a União Europeia”. Contas feitas, “há uma diminuição efectiva”, mas “não tão grande como se pensa”.
Não são todos licenciados, muitos têm cursos intermédios. Mas, apresentam de facto uma qualificação escolar e profissional superior à média da população portuguesa. Há ainda muitos “a trabalhar em actividades que não são compatíveis com a formação que têm”, reconhece Maria Lucinda Fonseca.
Começaram a chegar a Portugal no final dos anos 90, muitas vezes através de redes ilegais internacionais de captação de mão de obra. Foram bem acolhidos pelos portugueses, que os viam com simpatia e solidariedade, como vítimas do comunismo disponíveis para sacrifícios em nome da família. Hoje, os imigrantes ucranianos constituem uma “comunidade bastante enraizada, que fala a língua portuguesa, conhece o funcionamento das instituições” e aproveita uma “política que reconhece igualdade de direitos sociais e económicos aos estrangeiros documentados”, conclui Maria Lucinda Fonseca. Os filhos são os primeiros a beneficiar deste novo estatuto.
Cláudio Garcia é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.
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