​Carandiru: O País das Calças Beges Virou Exposição de Arte

De biquíni, Sabrina Parlatore estampa um pôster na parede pintada de salmão. Entre duas camas, uma mesinha de madeira reaproveitada traz um tabuleiro de xadrez desenhado a lápis. Era assim que o tempo passava numa das celas da Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru – o maior complexo carcerário que a América Latina já abrigou. Hoje, a rotina dos presos é reproduzida em Sobrevivências/ uma exposição sobre vivências: Carandiru, com visitação aberta até 15 de março no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo.

Tudo ali é rudimentar: desde as máquinas de tatuagem improvisadas pelos presos até as fronhas cheias de bolinhas, revelando seu extenso tempo de uso. A fotógrafa Maureen Bisilliat, que por muito tempo se manteve dentro da prisão para produzir um livro, assina a curadoria da mostra. Os objetos foram coletados por Sophia Bisilliat e André Caramante, que passaram o último um ano e meio antes da demolição, em 2002, circulando pelos pavilhões.

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Pôster de mulher pelada era um item indispensável na decoração das celas do Carandiru. Foto: João Wainer

Textos do médico Drauzio Varella e fotos de João Wainer, Andreas Heiniger e Renato Soares estampam as paredes do museu.

Nascida na Inglaterra e naturalizada brasileira, Maureen, hoje aos 83 anos, me conta, por telefone, que a ideia era criar um ambiente parecido com os corredores do Carandiru. “É uma exposição que destaca soluções. É uma lição. Hoje, todo mundo compra tudo feito. Ninguém sabe fazer nada. Aquilo é uma amostra de que quando a vida aperta, encontram-se soluções”, explica, arfante e com o sotaque carregado.

Foto: Vinicius Stasolla/Divulgação

Não à toa, o visitante observa facas, placas com os dizeres “com visita” (anunciando quando um detento recebia visitas íntimas na cela), cinzeiros, terezas (cordas feitas de lençol e trapos) e uma infinidade de objetos improvisados. O jornalista André Caramante relata que, quando os presos eram abordados, achavam estranho alguém se preocupar com suas histórias. Mesmo assim, cediam seus mais diversos utensílios: canecas, camisas de time de futebol, bíblias, mamadeiras, imagens de Nossa Senhora Aparecida, sapatos de bebê. “Muitas peças foram abandonadas nas celas e pedíamos pros funcionários para levá-las”, explica.

Cela do Carandiru. Foto: Sophia Bisilliat

Uma das placas da mostra fala sobre o Vira-Lata, um super-herói que defendia presos, pobres, putas e fodidos em geral. O gibi surgiu depois que dois cartunistas quebraram a cabeça pra arrumar um jeito de conscientizar os detentos sobre seringas compartilhadas e camisinha. Apesar de ser um grandiosíssimo putanheiro, o Vira-Lata condenava o uso de cocaína injetável e só chupava bala com papel. Foi um sucesso total dentro do xadrez. A tática funcionou: a cocaína injetável praticamente sumiu por ali. Mas, logo em seguida, o crack eclodiu e as coisas desandaram novamente.

Texto de Drauzio Varella falando sobre o cheiro do Carandiru. Ao lado, as “terezas”, cordas feitas de lençol e trapos utilizadas para transportar objetos entre uma cela e outra ou até mesmo para fuga. Foto: Débora Lopes

Maureen fala na possibilidade de, ao fim da exposição, um museu ser construído para resgatar os anos em que o Carandiru esteve de pé. E completa que a grande surpresa da mostra é “envolver as pessoas no ambiente, mesmo sabendo das trevas que existiram lá dentro”.

Entre Nossa Senhora e Angélica. Parede de uma cela do Carandiru. Foto: João Wainer

É curioso o fato de itens e marcas de sobrevivência dos tempos de Carandiru terem virado exposição de arte em um museu que retrata o modo de vida da família brasileira. Sempre tão repelidos pela sociedade, esses sujeitos desestimulados pelo mundo criaram métodos de sobrevivência que agora servem de objeto de estudo e entretenimento para pessoas dos mais diversos universos (quiçá até mesmo os mais conservadores, a favor da pena de morte ou da redução da maioridade penal).

Cela reproduzida na mostra. Foto: Débora Lopes

Na exposição, o momento mais duro é entrar na cela reproduzida e ver as camas, a privada, a panela, os fios expostos, a TV Gradiente de tubo. O som esquisito vindo de um vídeo que retrata os primeiros anos do complexo prisional serve de trilha sonora para uma imersão estranha, dura, às vezes assustadora. E certamente menos pior que adentrar o verdadeiro Carandiru.