
Ronaldo Mazotto é agente penitenciário e, enquanto funcionário, presta serviços ao Governo do Estado de São Paulo. Durante mais de 10 anos de sua carreira trabalhou na Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida pelo nome de seu bairro, o Carandiru. Mazotto integrou a primeira leva de funcionários que chegou ao presídio depois do que ficou conhecido como o massacre do Carandiru. No dia 02 de outubro de 1992, o que começou como uma briga entre detentos, após intervenção policial, resultou em 111 mortes. A partir desta data, governantes prometeram a desativação do presídio e, em dezembro de 2002, o complexo de prédios foi implodido para dar lugar a um parque.
Nenhuma cela foi conservada, nenhum resquício do presídio foi deixado no parque para lembrar a história do que já foi a maior penitenciária da América Latina. É como se todas as sinapses dos governantes de São Paulo quisessem esquecer o que aconteceu atrás dos muros do Carandiru.
Após a desativação do presídio, Mazotto foi transferido para uma prisão de segurança mínima no município de Serra Azul, interior do estado. Com uma população estimada em 8.000 habitantes, Serra Azul se iguala ao número de detentos que já abrigou o Carandiru em seus dias de maior lotação. Para a cidade, Ronaldo Mazotto levou mais do que sua experiência como agente penitenciário. Junto a ele, foram cerca de trezentos objetos e duas mil fotos, além de 10 horas de gravação em vídeo, tudo coletado dentro do presídio. Mazotto, diferentemente dos governantes, não tem motivos para se esquecer, e assim fala sobre seus dias dentro da Casa de Detenção.
“Um momento que me marcou muito foi o de uma rebelião que durou 3 dias. Foram 3 dias como refém. Começou com os presos dominando o pavilhão 8 e 9, pegando os funcionários que encontravam pelo caminho. No início a gente pensou que era rebelião pequena e tentou fugir, brigar com os detentos… mas aí foi todo mundo pego. Teve gente que chegou até a correr atrás de preso com cano de ferro na mão, mas os presos sempre estavam em número maior e vários tinham facas. Foi assim que todos os funcionários passaram esses 3 dias trancados dentro do almoxerifado, na lateral do pavilhão 6.”
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“Durante 5 anos eu cuidei sozinho do quinto andar do pavilhão 9. Todo dia eu abria as celas, soltava os presos e fazia a contagem. O contato com eles era direto. Se alguém quisesse te matar, matava… Mas os presos não tinham problemas com funcionários que sabiam seus limites. Já o funcionário que apreendia droga de uma cela e vendia pra outra, era visto como bandido e caia na mesma lei deles… dai quando tinha acerto de contas, morria funcionário também.”

“Eu comecei a juntar tudo isso aqui porque eu queria ter a minha versão dessa história, queria contar o que acontecia dentro dos muros… até hoje, tudo que se sabe do carandirú foi contado pelos dententos. Ninguém nunca ouviu um agente penitenciário contando suas memórias. Por isso eu fotografei, filmei e guardei tantos objetos. Eu quero expôr isso tudo, dar palestras sobre como era o dia-a-dia na casa de detenção e dizer pros jovens que não compensa entrar pro tráfico porque depois você acaba preso, brigando dentro da cela e amanhece todo furado, enchendo o chão de sangue…”

“Tenho facas que eles faziam com qualquer pedaço de ferro, cachimbo pra fumar pedra, máquina de tatuagem, bíblia que tinha arma dentro, granada de isopor que um detento fez pra tentar fugir em uma rebelião, bico de luz que eles faziam porque não podia ter luz depois que a gente apagava tudo e ia dormir, vários celulares apreendidos dentro das celas, baralho que eles faziam com papel porque o jogo também era proibido, tem até as perecas que eram duas pilhas abertas de cada lado com uma maderinha no meio e com um fio elétrico em cada lado pra ligar na tomada e colocar dentro de um balde com casa de batata pra fazer pinga… Tem também um acervo grande de fotos que a gente fazia. Eram fotos dos funcionários, dos prédios e depois começavam as fotos das igrejas, dos templos, até chegar nas fotos dos corpos… Quase todo dia aparecia um morto e eu comecei a fotografar isso também. Eles matavam por qualquer coisa. Teve gente que morreu porque roncava a noite e os outros não conseguiam dormir.”

“Conheci o Coronel Ubiratan (Ubiratan Guimarães, resposável pela ação da PM no dia 02 de outubro) dentro do Carandirú e ficamos amigos. Um dia mandei uma carta pedindo pra que ele desse sua versão do dia do massacre e ele me respondeu dizendo: que o episódio que ficou conhecido como massacre do Carandirú não foi massacre algum, o que houve foi uma ação retomada de um presídio rebelado e em chamas. Os presos destruiram a carceragem, roubaram cadeados e correntes e se trancaram no pavilhão 9. Por volta das duas horas da tarde, funcionários e carcereiros foram obrigados a se retirar e o pavilhão ficou sob total controle dos detentos. A partir dai começou o caos, os presos atearam fogos nos colchões, fizeram barricadas para tentar impedir a entrada da polícia. O chão estava com um palmo de água, os encanamentos foram arrebentados e o prédio estava completamente às escuras. Às 16:30 recebi a ordem para adentrar ao pavilhão 9 e conter a rebelião sem saber que isso mudaria para sempre minha vida. Eram mais de 2 mil homens perigosos, armados e que nada tinham a perder contra 90 policiais. Quando a PM conseguiu finalmente entrar no pavilhão encontrou uma emboscada preparada pelos presos: óleo de cozinha, pregos com sangue contaminado por HIV espalhados pela escada, tudo isso misturado a fumaça de incêndio e água dos canos estourados, era o inferno.”
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“Tinha muita rebelião que não era feita pra ninguém fugir. Os presos começavam uma bagunça, prendiam os funcionários no almoxerifado ou em alguma cela e antes de chegar a polícia faziam o acerto de contas deles. Uma vez a gente deu um preso como fugido durante mais de 3 dias, daí foram começando a achar uma perna debaixo de uma cama, um braço dentro de uma panela… juntando tudo apareceu o preso que não tinha fugido, mas foi morto e esquartejado pra esconderem o corpo.”

“Em Serra Azul é um sossego só! Eu junto os detentos e a gente vai pro campo cuidar das ovelhas, da horta… Nunca mais passei por nenhuma rebelião. Nesses 6 anos que estou lá só fugiu um preso. A gente brinca e diz até que falta adrelina no serviço… onde eu cuido dos presos a cerca é de arame farpado, como em fazenda e ninguém foge. São presos de baixa periculosidade, ninguém é de gangue ou facção, eles estão lá pra cumprir a pena e querem reduzir esse tempo com bom comportamento… ninguém quer ser pego brigando ou tentando fugir.”