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Com a Palavra, Dois De Nossos Diretores de Fotografia Favoritos – Parte 1

Anthony Dod Mantle, BSC, DFF, é um diretor de fotografia nascido na Inglaterra que mora na Dinamarca há mais de 20 anos. Recentemente ganhou um Oscar da Academia por seu trabalho em Quem Quer Ser um Milionário?, um filme rodado em Mumbai, Índia. O fato de ter sido reconhecido com o principal prêmio mainstream do cinema era inesperado por algumas razões. Primeiro porque Quem Quer Ser um Milionário? foi o único filme a ganhar um Oscar de fotografia, em quase uma década, não ambientado no passado e repleto de detalhes esplêndidos de época, figurino nostálgico, cenários monumentais e penteados meticulosamente reconstruídos. E segundo porque também não é muito um filme de verdade—quase dois terços foram filmados em vídeo de alta definição. Aliás, Dod Mantle é um pioneiro da estética fluida de vídeo portátil da escola dinamarquesa dos filmes do Dogma, nos quais suas colaborações com os diretores Lars von Trier e Thomas Vinterberg foram feitas utilizando apenas a luz ambiente. Ele também usou o vídeo com excelente resultado em Julien Donkey-Boy, de Harmony Korine, e evocou visuais realmente impressionantes em Extermínio, de Danny Boyle. É fácil achar isso normal hoje, mas há apenas dez anos fazer um “filme” artístico cabeça em vídeo era, para a instituição do cinema, algo como entrar com um pit bull de três patas na tradicional apresentação de cães de Westminster. 

Devemos mencionar que o Sr. Dod Mantle tem conhecimento de causa com uma ou duas câmeras de filme (é por isso que ele leva aquelas letras depois do seu nome, como um cavaleiro ou algo do gênero*) e que sua colaboração mais recente com Lars von Trier, Anticristo, foi destaque e revirou muitos estômagos na sua estreia no Festival de Filmes de Cannes. Encontramos Anthony em sua casa em Copenhague enquanto estava entre projetos, refazendo os assoalhos e esperando chegar uma comida tailandesa que tinha acabado de pedir.

Vice: Antes de mais nada, parabéns. Você teve um ano e tanto, com Quem Quer Ser um Milionário? e todos os prêmios e honrarias que ganhou com ele.
Anthony Dod Mantle:
 Está sendo um ano e tanto. Rodei o mundo disparando detectores de metal em aeroportos por receber prêmios de todo tipo de honraria bizarra. Realmente já estava querendo voltar ao trabalho há algum tempo, e agora estou prestes a embarcar em meu segundo filme com Kevin Macdonald, com quem fiz O Último Rei da Escócia.

Legal. E você testou os detectores de metal mundo afora, prestando um serviço para todos nós.
[risos] É verdade, isso mantém todos nós em segurança.

Já faz uns dois anos desde que de fato rodou Quem Quer Ser um Milionário? O que você fez depois disso?
Fiz Anticristo. A filmagem dele foi bem rápida e agora ele está aí dando a cara a tapa. 

Ele tem recebido algumas reações fortes. Você trabalhou com uma série de produtores que criaram trabalhos muito provocativos, inclusive Lars von Trier, é claro. É engraçado ver esse tipo de reação quando você desafia o público?
Sim, com certeza. Acho que existem maneiras diferentes de desafiar as pessoas, e acho que Anticristo pegou todos nós, talvez até o próprio Lars, de calças curtas. Quando li o roteiro achei um pouco estranho e sabia que ia exigir bastante. E quanto ao público, sim, ele não o pega pela mão. Dito isso, von Trier é do tipo de pessoa que, na verdade, ficou cada vez mais complicado ao longo dos anos. Mas quer seja ele ou Harmony Korine nos Estados Unidos ou Thomas Vinterberg ou Gus Van Sant, acho que é bom ocasionalmente desafiar o público do cinema com algo diferente de finais felizes e perseguições de carro. Você deve algo a eles—você deve ao público algo exigente porque eles já recebem o suficiente dessas outras coisas. 


Quem Quer Ser Um Milionário? (2008)

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Você começou a trabalhar com filme relativamente tarde na sua vida. O que o levou a trabalhar com cinema e como começou a fazer direção de fotografia?
Cresci em uma família inglesa de classe média bastante tranquila, com meu irmão um ano mais velho e minha irmã um ano mais nova. Meu pai era cientista e minha mãe pintora, e assim cresci com telas espa-lhadas pela casa. Era um verdadeiro caos com injeções racionais do meu pai de vez em quando. Passei pela escola sem maiores problemas, mas não conseguia decidir o que eu queria fazer. Vi muitos amigos meus já se arrependendo do que tinham começado, então esperei um pouco para resolver o que fazer. Foi só com uns 24 anos, quando estava na Índia, viajando por um ano, que entrei na fotografia. Isso porque vi muitas coisas extraordinárias. Simplesmente fotografei, fotografei e fotografei por lá, em cores e preto e branco, tirava fotos em tudo que é lugar. Fiquei muito empolgado, não só com a Índia mas com o mundo e com a ideia de capturar imagens e observá-las surgir de forma lenta e gradual por meio dos químicos no laboratório. Meio ano depois de voltar dessa viagem me inscrevi em cinco cursos de fotografia e comecei a praticar como fotógrafo de cena. Comecei a fazer exposições e viajei mais. Mas logo senti que cinema seria ainda mais interessante, assim me inscrevi em um curso de direção de fotografia de quatro anos, na Escola Nacional de Filme da Dinamarca, em Copenhague. É uma escola muito boa e, a partir de algumas relações questionáveis com mulheres, já tinha aprimorado o meu dinamarquês e achei que deveria tentar usá-lo para algo além de, você sabe, tentar conversar com pessoas loiras—o que é uma razão boa o bastante por si só, é claro. Assim eu tinha uns 35 anos quando finalmente me formei e comecei a trabalhar como assistente. Fui com calma.

Uau, você foi um estudante de cinema velho.
Mas a minha escola não foi totalmente acadêmica. Foi também olhar as pessoas, olhar rostos, olhar vidas, ser parte das vidas das pessoas e ver como o mundo funciona de maneiras muito diferentes ao redor do mundo. Esse foi o meu aprendizado, acho, e uso todos os dias, quer esteja rodando um comercial, um documentário, Quem Quer Ser um Milionário? ou Anticristo.

Você trabalhou em vários lugares do mundo, mas também passou muitos anos morando e trabalhando na Dinamarca. Minha irmã está fazendo uns trabalhos por lá e diz que dinamarquês é uma língua impossível de aprender, e ainda mais difícil de pronunciar.
É, é difícil mesmo. Desejo sorte a ela! [risos] Moro na Dinamarca há mais de 20 anos agora, mas cara, foi difícil. Foi a língua mais difícil, e sempre gostei de línguas. Dominei a parte escandinava do mundo e falei espanhol em uma série de países na América do Sul e na Espanha, então tive um pouco disso. Estudei latim por um bom tempo porque meus pais queriam e isso me ajudou a aprender línguas. Encorajei meus filhos a fazerem o mesmo.

Quais são algumas preocupações iniciais que você tem quando começa um filme?
Para mim é sempre uma mistura de como vou movimentar e como vou posicionar as coisas e, é claro, tudo depende da verba disponível para a produção. Vindo de vários filmes europeus produzidos com orçamentos muito baixos, aprendi a fazer o melhor possível com muito pouco dinheiro. Danny e eu concordamos que, quando você tem um orçamento um pouco maior, precisa ter cuidado para não ficar mimado ou complacente. Danny se preocupa muito com isso desde que fez A Praia, e fala muito abertamente, como diretor, sobre o medo de ficar mimado por ter demais.

É incrível o fato de a Índia ter sido a inspiração para você ir atrás da fotografia há tantos anos e você acabar fazendo uma grande produção lá. Como foi voltar à Índia para fazer Quem Quer Ser um Milionário?
Foi muito legal voltar à Índia. Para mim foi como fechar um círculo, porque tinha estado lá um tempo e tenho um carinho muito especial pela Índia e pelos indianos. É um lugar extraordinário e exigente, uma cultura totalmente divertida e inspiradora—um soco no queixo. Na primeira vez que fui para lá passei um ano viajando com muito pouco dinheiro e conhecendo pessoas muito de perto com vários viajantes que, como eu, não tinham muita grana. Passamos muito tempo conversando, lendo e ouvindo as pessoas. Mas dessa vez, rodando o filme, foi com força total. Fazer um filme é como estar em uma zona de guerra. É como uma missão, e você está no meio dela e os dias são longos e intensos, seis dias por semana, 16 horas por dia.


Quem Quer Ser Um Milionário? (2008)

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E imagino que tenha sido especialmente difícil filmar em algumas das locações do mundo real usadas nesse filme.
É um circo quando você está fazendo um filme e tentando fazer o que precisa ser feito para terminá-lo e ao mesmo tempo ter que lidar com pessoas que moram em favelas e você lá no meio da casa delas. Você tem que respeitá-las. Você tem que equilibrar o motivo principal de estar lá com um senso ético. Você tem que se comportar de maneira apropriada. Então, tudo isso estava acontecendo na Índia, e o fato de eu ter passado algum tempo lá antes me ajudou, mesmo. Algumas pessoas da minha equipe ficaram bem impressionadas com o modo como as coisas funcionam na Índia. É difícil.

Assistir ao filme já é impressionante para os sentidos. Isso fica evidente. Qual é a diferença entre filmar em um lugar como o que você descreveu, em comparação com alguns dos outros filmes nos quais trabalhou, que parecem muito mais contidos, feitos em locais menores?
A mecânica é a mesma. Sabe, quando eu era garoto achava que ia ser corretor imobiliário. Isso significa entrar em uma sala e imaginar não só como você pode vendê-la e ganhar dinheiro [risos] e fazer alguém feliz e dar uma casa e uma vida às pessoas, mas também imaginar como pode encorajá-las a pensar como ocupariam e usariam o espaço. Não estou dizendo que é assim que todos os corretores de imóveis trabalham—eles provavelmente só querem fazer uma grana, partir para outra e comprar um carro esportivo. Mas eu passei a maior parte da minha infância entrando e saindo de casas—meus pais se mudavam o tempo todo—e eu sempre imaginava onde meu quarto ia ser e onde meus pais iam estar. Mudei seis vezes durante a minha infância. E, para dizer a verdade, o que faço agora como diretor de fotografia não é muito diferente. Em Quem Quer Ser um Milionário? entrávamos em espaços que já estavam lá, então o adaptávamos e tentávamos fazer com que funcionassem, mas sendo mais flexíveis. Quando você está fazendo um filme como esse não tem tanto controle quanto teria normalmente como cineasta.

Foi muito mais caótico do que uma filmagem em estúdio.
Muitos dos filmes que fiz antes foram feitos em um estúdio. Os filmes de Lars são realmente planejados quadro a quadro, e em alguns deles se faz o storyboard até dos menores detalhes. Os filmes que fiz com Thomas Vinterberg—fora os filmes do Dogma—tiveram muito story-board. Com Kevin Macdonald, em O Último Rei da Escócia, foi tudo muito organizado, mesmo tendo sido rodado em locações em Uganda. De qualquer forma, sim, quando você está filmando em um estúdio tem muito mais controle e então precisa criar a magia, a chama, a empolgação e a energia. Na Índia é praticamente o contrário. Quando chega lá tem que ficar calmo e, em primeiro lugar, não ser esmagado pelos indianos. Antes de fazer qualquer coisa, você tem que fazer uma limpeza, mudar algumas coisas e acalmar os ânimos. Eu saía para caminhar com o Danny com uma xícara de chá, só sondando o local, checando a primeira tomada ou as quatro ou cinco primeiras cenas. Para mim não importa se o cenário foi construído por designers bri-lhantes ou se é uma rua de uma favela, sempre é preciso sondar o local e descobrir como fazer para ele funcionar para você e para o público.

Você aborda cada locação em seus próprios termos. Você mencionou os filmes do Dogma agora há pouco. Em se tratando de locação, foi muito ousado restringir-se a filmar sem luzes.
Não foi tão difícil depois de passar tanto tempo com documentários, nos quais você tem muito pouco e faz o melhor com o que tem. Também acho que “trabalhar sem luzes” não é a maneira apropriada de se colocar. Na realidade você está trabalhando sem luzes móveis para montar. Você está olhando a luz que tem e isso, às vezes, é um treinamento melhor do que se tivesse tudo nas mãos. Devíamos olhar e ver o que está aí, o que Deus te deu e trabalhar com intensidade, focando em como usar o que está disponível, da melhor maneira possível. É isso que faço em documentários e foi o que fiz no Dogma. Tem bons e maus exemplos de como isso funcionou, inclusive alguns dos meus próprios filmes [risos]. Em alguns lugares funciona melhor do que em outros.


Julien Donkey-Boy (1999)

A escolha do formato de vídeo foi necessária para persuadir a ideia de usar apenas a luz disponível?
A escolha do vídeo teve mais a ver com mobilidade. Também que- ríamos explorar novas tecnologias e brincar com isso e aceitar o vídeo pelo que era—tentando não considerá-lo um aparelho inconveniente para consumidor de tecnologia de estante de duty free de aeroporto, mas como algo que pudesse ter algum potencial artístico. E os formatos de vídeo na verdade não são mais sensíveis à luz. Hoje em dia você tem várias películas que são mais sensíveis e apresentam melhor qualidade em situações de pouca luz.

Toda essa ideia de filme e vídeo é meio confusa. Apesar de as pessoas estarem cada vez mais cientes de filmes sendo feitos em vídeo, normalmente quando você entra em uma sala de cinema ainda os assiste projetados em filme. É um tipo de transição estranha, e ainda estamos no meio da negociação.
Há alguns anos teve uma guerra por causa disso. As pessoas tinham medo umas das outras e medo do que tudo isso significava. Os produtores estavam empolgados porque achavam que tudo ia ser mais barato, o que era uma bobagem. Alguns diretores estavam empolgados por boas razões, e outros estavam empolgados por razões completamente erradas, e alguns até voltavam para hábitos antigos. Para mim, agora, está muito além de ser apenas uma palheta mais complicada e sofisticada.

É uma boa forma de encarar isso.
Acredito que quanto mais brinquedos—acho que você pode chamá-los de brinquedos, ou ferramentas—melhor. Na produção profissional de imagens, você tem que estar ligado e alerta e saber por que faz as coisas. Você tem que definir suas armas de acordo com cada missão.

Tem muitas opções por aí—uma câmera nova a cada dia.
Bom, o fundamental para mim não é a alta definição, a definição su-blime, mais, mais e mais alta. Minha fascinação pelo cinema vem da pintura e do cinema como forma de arte. Não acho que exista nenhuma lógica no fato de há 20 anos as pessoas, na verdade, super-revelarem os filmes para obter um visual mais granulado e estranho, e agora, por alguma razão, nos sentimos obrigados pela indústria a realmente nos excedermos para produzirmos imagens de alta definição, de resolução total, cada vez mais nítidas. Não quero ofender meus colegas da Kodak e da Fuji, e quero viver em um mundo onde possamos produzir instrumentos fantásticos que possam registrar imagens com níveis altíssimos de qualidade. Mas não vou ficar confuso o bastante a ponto de acreditar que tudo tenha de ter alta resolução o tempo todo.


Quem Quer Ser Um Milionário? (2008)

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A ideia original do cinema era um bando de pessoas em uma sala, em um ambiente controlado, mas agora existem várias formas de as pessoas assistirem à mídia, seja em seus laptops ou telefones ou…—
Se fiz um filme, foi planejado para o cinema, então espero que pelo menos um certo número de pessoas possa vê-lo dessa forma. Mas estou aberto a todas as possibilidades ou oportunidades. Tenho que manter a cabeça aberta. Faria um filme amanhã com um celular se achasse apropriado e se as pessoas que estivessem comigo pensassem como eu. Como disse, venho da pintura e de um mundo de pintores, e então acho que a minha motivação talvez não seja uma obsessão pela nitidez das lentes e pela curva de contraste sublime. Acho que vem de algum outro lugar.

Um dos seus filmes mais conhecidos é Extermínio. Com certeza foi um desafio para a produção praticamente evacuar as ruas de Londres.
[Risos] É verdade, foi uma loucura!

O que passou pela sua cabeça enquanto estava criando esse momento épico e capturando-o em vídeo caseiro? Você pensou, “Por que estou usando essa câmera?”
É, eu quis levar algumas câmeras 35 mm. Lembro de ter pensado, “Estamos fazendo a coisa certa aqui?” Sabe? [risos] Mas não me senti desconfortável, porque senti que estávamos fazendo algo interessante, algo extraordinário, mesmo. Mas teve uma vez, em Donkey-Boy, que eu estava filmando em infravermelho e por isso não podia ver muito bem a imagem ou as luzes. A escuridão era total, com as luzes desligadas em um ringue de patinação, e uma garota cega patinando no escuro. As únicas coisas que podiam ler a imagem eram os sensores infravermelhos da câmera. Era uma ideia conceitual extraordinária. O que quero dizer é que acontecem muitas coisas estranhas durante um filme, especialmente quando se está trabalhando com diretores criativos, malucos, como o Harmony, que eu adoro—sério, adoro mesmo. Acontecem coisas muito legais com pessoas criativas que estão interessadas em se divertir. Merdas também, mas coisas legais acontecem.

Assisti ao trailer de Julien Donkey-Boy no YouTube. Você fez alguns experimentos interessantes tanto em película quanto em vídeo para esse filme. Normalmente, ao assistir a um vídeo no YouTube, você sabe que vai perder muito da qualidade original. Isso pode arruinar as coisas. Mas percebi que em Julien Donkey-Boy isso só acrescenta outra camada interessante às imagens que você criou para o filme.
A melhor projeção que vi de Julien Donkey-Boy foi a que Harmony e eu presenciamos na Itália, no Festival de Filmes de Veneza. Foi a maior projeção, em termos de escala, que já vi e estava bem no alto em uma imponente tela quadrada, e era realmente linda, como uma pintura borbulhante debaixo d’água. Ficamos realmente felizes com isso. E quanto ao YouTube, você está certo, é ótimo ver as coisas assim também.

Você deve ser um dos poucos diretores de fotografia ganhadores do Oscar que não se importam em ver seu trabalho no YouTube.
Não, acho o YouTube bom [risos]. De qualquer jeito está fora de controle, então você tem que relaxar um pouco com isso.

N.T. BSC, DFF, Siglas para Sociedade Britânica de Cineastas e Associação Dinamarquesa de Cineastas, respectivamente.


Julien Donkey-Boy (1999)