Com quem Comemos no Bom Prato da Cracolândia

​Fomos comer alguns dias no Bom Prato da Cracolândia. Como é bancado pelo governo do Estado, pagamos R$ 0,50 por cada café de manhã e R$ 1 por almoços e jantares — R$ 75 por mês, comendo todo dia. Esperamos na fila, aprendemos as regras e conversamos com nossos companheiros de mesa, que vinham do trabalho, da casa, da rua ou de outros países.

A hora de colar pra não mofar na fila é 7h30 de manhã. Vamos diretamente a uma cabine pra pegar a ficha amarela que dá direito à refeição. A cabine tem uma janelinha e não dá pra ver quem está lá dentro. Andamos num corredor delimitado por uma corrente de plástico até o balcão onde estão as bandejas. Parece que entramos numa sala de cirurgia: todo mundo tem máscaras na boca, bonés e luvas de plástico, tudo branco. “Café puro ou leite com cacau?” pergunta uma das atendentes. É o que vai acompanhar um pão com presunto e uma mexerica.

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Pessoas começam a aparecer na fila, uma atrás da outra. “Quer um rádio portátil?”, um cara tenta vender pra outro. Recebe uma mexerica e agradece. Uma moça loira vestida com uma saia rosa de cigana procura um lugar para se sentar, equilibrando o copo de café. “Cigana” chama o segurança, em tom amistoso. Ela ri e vai às mesas brancas.

Acabamos de comer e vamos devolver as bandejas. Só que o pequeno pedaço de pão que sobrou da Anna, a fotógrafa, e o gole do meu leite com cacau não chegam ao lixo. Uma mulher loira nos pede os restos e, sem me dizer nada a respeito, me dá a lição: “Pra mim, a comida nunca é suficiente”.

Vanessa tem 34 anos e mora na rua, nas imediações. Come todos os dias no Bom Prato há quatro anos. “Graças a Deus que existe”. Em poucas vezes, aconteceu de ela não ter R$ 0,50 centavos ou R$ 1; se isso acontece, ela pede na fila. Caso não consiga, entra e pega o que sobrou nas mesas dos outros.

Não gosta de esperar. “Furo a fila, meto o louco que tô grávida. Não gosto de ficar na fila.” Vanessa é do Rio de Janeiro, mas saiu de lá por causa de briga em casa. “Meu padrasto era sociopata, tentou me matar.” Ela tem três filhos, que moram com o pai e outros parentes. “Sou viciada em crack, não reparou já? Mentira. Tô louca para um trago. [Em] 30 minutos, se fico sem droga, fico louca. A droga mesmo é (sic) R$ 10. Quem diz que o crack tá barato, é mentiroso. Fazia 10 anos que tinha deixado a droga, mas voltei por causa do que aconteceu com meu padrasto. Já fui dona de restaurante, trabalhei com vendas também.” Às 8h em ponto, o segurança grita: “É a hora!”. Um casal de bolivianos chega às 8h05. “Já encerrou. Só no almoço.” Vanessa pega o copo com o gole de leite que sobrou. “Espera aí, vou levar esse leite para uma amiga.”

Para o almoço, desde as 10h30 tem fila quase na calçada inteira. Dependendo da sorte, esperamos entre 10 e 30 minutos, tempo para observar o universo da fome e da satisfação. Um cara conta moedas de alguns centavos enquanto outro passa ao lado dele pedindo R$ 1. “Tenho só pra mim.”

Dentro do restaurante, ainda na fila, quem tem sorte acha alguns restos de comida sobrando nas mesas. Os outros esperam em pé, sentindo o cheiro de feijoada. A maioria come rápido.

Na fila, conhecemos a Ana Paula, de 30 anos, que veio comer aqui hoje pela primeira vez. “Trabalho na limpeza, na Secretaria da Cultura, e aí costumava gastar R$ 11 no almoço. Já vi na televisão sobre o Bom Prato, mas o povo me falava que vêm só moradores de rua. Mas não é não, é tudo misturado. Nossa, tem pão, suco e laranja, além de comida. E é só um real. Espero que não tenha “salito [salitre].” Depois de comer, Ana Paula falou: “Vou vir mais, sim. É bom mesmo”.

Na minha frente, senta-se à mesa o Gilberto Carlos, um pernambucano de 36 anos que trabalha em confecções e come aqui para economizar dinheiro. Ele gosta da comida. “Varia bastante. Um dia tem feijoada, outro dia tem frango, por exemplo. Tem que escolher onde se senta à mesa. Já vi briga, às vezes, por causa de pão. Eu vi também preconceito com bolivianos, não sentam ao lado deles. Ó, tem um boliviano aqui.”

O Bom Prato é bastante frequentado por imigrantes: é comum ouvir espanhol, inglês ou francês.

Antes de começar a comer, um moço vestido com uma camisa de flores faz um sinal da cruz e fala algo pra si, em voz baixa. Chama-se David Augustin, tem 39 anos e chegou da Nigéria dois meses atrás.

Vem poucas vezes no Bom Prato e, quando não vem, compra pão e suco no supermercado. As coisas que mais gosta no Brasil são, nesta ordem, “food and women” (comida e mulheres).

Encontramos outra vez a Vanessa, a moça que conhecemos de manhã. Ela reclama. “Nem bicho é tratado assim pelo pessoal que nos atende aqui. Só por sermos moradores de rua e viciados em crack. Gritam com a gente, não têm paciência.”

Pedro, 34, anos, pintor civil, começa a dizer também o que o incomoda. “Aqui não tem banheiro. Você viu um lugar que não tenha banheiro? Também, no Bom Prato de outras zonas tem comida melhor. Não é justo, tem que ser tudo igual; não [é] porque aqui é Cracolândia [que] tem que ser ruim. Aqui tratam a pessoa como se fosse um qualquer, não um ser humano. Eu acho que é o direito para todos.”

Marylin Monroe está com a boca aberta na camiseta de uma moça. Quando nos vê, a moça diz seriamente: “Cuidado com a câmera, aqui estamos na Cracolândia”.

É a Malu. Tem 24 anos e gosta de cantar as músicas da Ana Carolina e do Caetano Veloso. “Me falaram que pareço com Amy Winehouse.” É viciada em crack e tem vezes que nem janta – só almoça. “Acabei de fumar.” Ao perguntá-la sobre seus brincos yin e yang, disse: “Tem o bem e o mal. O equilíbrio. É isso mesmo.” Com tudo que encontramos ali, ficamos com essa na cabeça. 

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