Matéria originalmente publicada na VICE US.
Numa cena no meio de Blade Runner 2049, o detetive do LAPD criado artificialmente Agente K (Ryan Goslin) está fazendo seu trabalho de investigação retrofuturista e precisa ler manualmente uma sequência de DNA humano impressa num microfilme. Ele está procurando o filho do primeiro replicante a dar à luz, um segredo que pode começar uma guerra entre humanos “naturais” e seus quase indistinguíveis colegas criados em laboratório.
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As apostas não poderiam ser mais altas, mas K ao passar por milhares de linhas de As, Gs, Cs e Ts é um dos muitos momentos absurdos que demonstram quão diferente esse mundo é do nosso. Los Angeles tem carros voadores (spinners) e a dominação da genética humana há quase 30 anos. Agora também tem drones ativados por voz e namoradas holográficas de inteligência artificial — mas nada de iPhones, Google ou Facebook.
Esse é um paradoxo tecnológico proposital, explicou recentemente o diretor Denis Villeneuve numa entrevista à CNET. O progresso não foi interrompido, mas os dois filmes Blade Runner miram nas subclasses empobrecidas e replicantes escravizados, que não se beneficiam da nova economia alimentada pelas colônias fora do nosso mundo. Niander Wallace (Jared Leto) representa os ricos de fora da Terra que têm o capital para fugir das cidades decadentes do nosso planeta.
Nada disso é mostrado explicitamente em nenhum Blade Runner, mas era integral para os designers da empresa de efeitos especiais de Londres, a Territory Studio, entenderem economias distópicas. A Territory foi alistada para criar o visual dos gráficos por trás de muita da tecnologia de Blade Runner 2049, incluindo o microfilme de DNA, as propagandas holográficas de LA e todas as interfaces de computador do LAPD e da Wallace Corp. A tecnologia por trás de cada personagem é tão importante quanto o figurino para definir os personagens. Quem seria Wallace sem seus bizarros drones, ou K sem seu spinner velho?
Villeneuve encomendou o pano de fundo de 2049 para o fundador da Territory David Sheldon Hicks, o diretor-criativo Andrew Popplestone, e o chefe criativo Peter Eszenyi. Popplestone e Eszenyi tiveram duas horas com o roteiro numa sala de segurança; mais tarde eles foram apresentados ao grande blackout de 2022, que o público viu na sequência em anime de Shinchiro Watanabe acompanhando os rebeldes replicantes que destruíram as capacidades digitais da Terra e prenderam os humanos num mundo analógico. “Isso basicamente ‘resetou’ a economia e a tecnologia”, diz Hicks, permitindo que vários replicantes se disfarçassem de humanos “reais”. Esses são os alvos do dia a dia do Agente K.
“Precisávamos fazer o design de classes contrastantes” — Popplestone
Villeneuve acrescenta que, desde 2019, as colônias fora da Terra mostradas na propaganda do famoso dirigível floresceram. “Qualquer um que podia pagar foi para as colônias de outros planetas”, diz Popplestone. “Os que ficaram não tinham escolha, ou porque eram pobres ou porque tinham um emprego os prendendo na Terra.”
O trabalho da Territory era capturar a história alternativa de uma civilização sem smartfones e o vasto penhasco entre ricos e pobres através dos aparelhos que as pessoas usam no cotidiano. “Precisávamos fazer o design de classes contrastantes”, diz Popplestone.
“A Wallace Corp é o 1% dos super-ricos que possuem e têm acesso quase exclusivo, na Terra, à tecnologia mais sofisticada”, continua Popplestone — e por isso o escritório de Wallace parece um covil de vilões do James Bond decorado pela Kinfolk, sua limousine parece uma versão futurista de um blog de minimalismo, e sua serva replicante Luv (Sylvia Hoeks) lança mísseis com seus óculos que são uma mistura de Calvin Klein e os visores dos sayajin de Dragon Ball Z.
O Agente K, por outro lado, mora num apartamento feio e apertado com sua namorada-holograma Joi — um produto da Wallace Corp., assim como ele. Ele dirige um spinner velho do LAPD para fazer seu trabalho. “Desenhamos o veículo para parecer gasto, mas ele parece muito humano em suas imperfeições”, diz Popplestone. As armadilhas da riqueza e pobreza deixam clara a diferença de poder e classe entre os dois personagens; o contraste entre eles, diz Popplestone, “precisava refletir essa divisão e ligar o status de K como escravo e cidadão de segunda classe”.
Fora os carros voadores e hologramas, a diferença entre ricos e pobres em Blade Runner é uma ilustração clara da gigantesca desigualdade de renda hoje. O 1% mais ricos entre norte-americanos controla 40 vezes mais riqueza que os 90% da base, segundo um estudo da UC Berkley, e isso nem passa da superfície da pobreza internacional. O futuro de Villeneuve é ainda mais sombrio. O planeta todo é dependente das patentes de Wallace, ao ponto de que ele sozinho reescreve a legislação numa sequência dirigida por Luke Scott.
E Villeneuve queria capturar essa disparidade com uma estética “abstrata, orgânica, ótica e física”, encorajando o pessoal da Territory, em suas próprias palavras, a “serem completamente originais em sua abordagem e evitar até pensar em eletricidade como uma fonte de energia amplamente disponível”. Por semanas, eles desligaram seus computadores e estudaram lentes óticas, projetores de filme antigos, olhos de ovelhas e carne crua como inspiração para como a tecnologia poderia funcionar sem silício. Eles acharam iluminação alternativa para telas com bioluminescência, e uma versão analógica para ressonância magnética mostrando os caminhos neurais em fotografias macro de grapefruit seca.
Enquanto os gadgets são alguns dos aspectos mais visualmente deslumbrantes de Blade Runner 2049, fora a direção de fotografia do 13 vezes indicado ao Oscar Roger Deakins, eles também contam uma história: Leia nas entrelinhas e a história do mundo é escrita em telas de computador e propagandas.
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