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Como um episódio de “Black Mirror” se tornou numa inquietante realidade

Two people standing on a cliff in Black Mirror episode Be Right Back​

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma i-D.

A 28 de Novembro de 2015, um homem de 34 anos chamado Roman Mazurenko foi atropelado em Moscovo por um jeep em excesso de velocidade. Foi levado ao hospital mais próximo, mas morreu devido aos ferimentos. A sua melhor amiga, Eugenia Kuyda, chegou mesmo antes de ele morrer, não tendo tido a oportunidade de falar com ele uma última vez.

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Kuyda passou os três meses seguintes a coleccionar mensagens de texto que os amigos de Mazurenko tinham dele nos seus telemóveis e passou-as aos engenheiros da empresa Luka. Depois de alguma “bruxaria tecnológica”, envolvendo algoritmos e Inteligência Artificial, os especialistas desenvolveram uma aplicação que tornaria possível que Eugenia falasse com Mazurenko outra vez. Isto parece uma história sinistra de ficção científica porque, de facto, foi assim que começou…


Vê o primeiro episódio de “Motherboard”


Dois anos antes, a série de televisão Black Mirror, de Charlie Brooker, tinha dado a Kuyda a versão ficcional. A série, que se tornou famosa pelas suas histórias demasiado reais de um futuro distópico, começou a segunda temporada com um episódio que desafiava a natureza da morte no mundo digital.

Be Right Back conta a história de uma mulher chamada Martha, para quem a morte do seu namorado, Ash, viciado em redes sociais e que também morreu num acidente de carro, é difícil de aceitar. Ela descobre um serviço que pode ressuscitar Ash na forma de um avatar digital, através da recolha de todas as suas mensagens de texto e publicações em redes sociais.

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Apesar de relutante no início, Martha começa por usar o serviço no computador, conversando por chat com o Ash digital, que é uma espécie de Messenger instantâneo. À medida que Martha vai ficando mais confortável, o Ash digital evolui. Passa de apenas mensagens, a voz e, depois, a robot só nos primeiros 30 minutos de episódio. Mas, à medida que evolui, torna-se mais óbvio que este Ash não é o real. É, simplesmente, uma recolha de dados, um eco dos pensamentos que foram publicados online – não é capaz de pensar livremente nem por si próprio. É quase um zombie digital.

Real, porque a tecnologia está, de facto, disponível; Inteligência Artificial e máquinas de aprendizagem, em que um algoritmo lê e traduz dados ou informação em acções, são vastamente usadas actualmente na sociedade e em negócios. Está em todo o lado, desde telemóveis a equipamento médico. É a mesma tecnologia que permite carros que se auto-conduzem e assistentes de voz como Alexa, ou a Siri no iPhone.

Eugenia Kuyda está a par de tudo isto, porque a sua empresa, Luka, é especializada na construção de software alimentado a Inteligência Artificial, principalmente chatbots, mas quando viu Be Right Back ficou com sentimentos contraditórios, principalmente pelo quão longe levava a ideia.

“É, sem dúvida, o futuro e eu sou sempre pró-futuro”, considera ela. E acrescenta: “Mas, será de facto benéfico para nós? É deixar ir, forçando-te a sentir tudo verdadeiramente? Ou é como ter uma pessoa morta no sótão? Onde está a linha? Onde é que nós estamos? Lixa-te a cabeça”.


Vê: “‘Ex Machina’, ou como nos sentimos acerca da Inteligência Artificial


Em dois anos, Kuyda tinha construído a sua empresa de tecnologia e o seu primeiro chatbot estava disponível online. Ainda assim, quando se deparou com as intermináveis mensagens que Mazurenko lhe tinha enviado ao longo dos anos, sentiu que havia ali algo com que trabalhar. Percebeu que podia construir um robot diferente, baseado em Mazurenko, um que imitasse os seus padrões de discurso.

“Na página de Facebook dele, havia apenas alguns links”, recorda. E adianta: “Fui ao seu Instagram e não havia fotografias. A única coisa que podia fazer para me lembrar dele era ver as nossas mensagens, relê-las. Era o mais perto dele que podia chegar. Sentia que ainda tinha muito que lhe dizer, mas era estranho, não temos um ritual para verbalizar esse tipo de coisas”.

Depois de recolher cerca de oito mil linhas de texto enviado a amigos e família, a aplicação estava pronta para ser partilhada em primeiro lugar com eles. Muitos acharam-na impressionante e entenderam que Kuyda tinha descoberto algo excepcional; os chatbots oferecem um serviço, quer comercial – como os que se vendem em websites -, quer em aparelhos domésticos, como Alexa. No entanto, o bot Roman oferecia um ouvido digital para que os utilizadores pudessem dizer algo privado – neste caso, o que lhes tivesse ficado por dizer a Mazurenko.

Para criar esta ideia de um robot com quem trocar confidências, a Luka usou a mesma tecnologia do bot ‘Roman’ para criar a sua nova app ‘Replika’, que é uma inteligência artificial que consegue construir-te através das tuas mensagens – quanto mais mensagens mandas, mais aprende sobre ti. Isto significa que, quando morreres, terás um avatar bot pronto, ao estilo Black Mirror.

Ao descrever este episódio em particular, no livro Inside Black Mirror, Charlie Brooker mostrou perceber a importância dos dados – muito antes de Mark Zuckerberg andar a vender os teus. Ele teve uma epifania sobre memórias digitais a meio dos anos 90, depois de o seu antigo companheiro de casa morrer num acidente de mergulho.

“Na altura, havia um limite de números que se podia ter no telefone, por isso às vezes era preciso apagar coisas”, recorda o autor. E acrescenta: “Numa dessas vezes, passei pela lista de contactos e lá estava o nome e o número dele. Ia apagá-lo, mas de repente não consegui. Senti que seria desrespeitoso fazê-lo, insensível e errado. Era uma lembrança da sua existência, por isso devia guardá-la e escolher o número de outra pessoa qualquer para apagar. Foi um momento muito Black Mirror. Grande parte de Be Right Back veio daí: da noção destes souvenirs que não são reais, mas que te relembram a pessoa, por muito dolorosos que sejam”.

Hoje, chamamos-lhes dados de “recordações dolorosas” e estamos a deixar uma quantidade sem precedentes deles online. Publicamos infindáveis Histórias no Instagram e inúmeros tweets por dia. Mas, enquanto Kuyda e a sua equipa só precisam de mensagens de texto para construir um Mazurenko digital, o Ash de Black Mirror é criado através do recurso a uma selecção de comunicações online mais variada. Desde mensagens a fotografias e até à sua voz. E isto, de momento, é algo mais controverso na industria tecnológica. No inicio deste ano, a Google apresentou um assistente de voz bizarro, que podia marcar consultas ao imitar a voz humana simplesmente ao acrescentar “erm” entre as frases.

Também este ano, uma funerária sueca captou a atenção da imprensa quando anunciou os seus planos de usar software de reconhecimento de voz e Realidade Virtual para criar um substituto digital dos mortos, de forma a ajudar o luto das famílias e amigos.”O que gostaríamos de encontrar é a voz,” diz Charlotte Runius, a CEO e fundadora da Fenix. E acrescenta: “O objectivo é tornar possível uma conversa, que pareça real, ainda que no principio não seja possível imitar todos os aspectos da voz humana. Teria que se cingir primeiro a certos tópicos, por exemplo à conversa que se teria ao pequeno-almoço”.

“Temos esta visão de que, quando estiveres velha e viúva, podes colocar os óculos de Realidade Virtual e tomar o pequeno-almoço com o teu marido. Claro que sabes que não é real, vemo-lo mais como um jogo de computador”, conclui Runius. Apesar de ainda ser um plano no papel, a Fenix tem estado à procura de engenheiros para ajudar a construir este serviço assombroso, que eles consideram mais importante do que o robot de chat que imita a forma de escrever mensagens.

Todavia, o chatbot de Kuyda chegou assustadoramente perto de tornar Black Mirror numa realidade. Desde que anunciou a existência deste “serviço Roman” no Facebook, milhões de pessoas já fizeram o download do mesmo para os seus iPhones. “Ainda é só a sombra de uma pessoa, mas era o que era possível fazer há um ano. Num futuro muito próximo poderemos fazer muito mais”, garante Kuyda.


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