Este artigo foi originalmente publicado no Noisey UK.
São cinco da tarde de uma sexta-feira, e Kane Robinson está sentado na casa de seus pais, em North Shields, uma cidade pesqueira na margem norte do rio Tyne, no nordeste da Inglaterra. Ele observa com paciência o lento processo de download — não ilegal, é claro — do novo Call of Duty. Sua jovem sobrinha entra correndo na sala, vestindo uniforme de escoteira, e ele a fica zoando por alguns minutos. Semana passada, Kane foi libertado da prisão Kirklevington Grange, e agora está sob monitoramento eletrônico, com um toque de recolher das sete da noite às sete da manhã. É em casa que ele está agora, por obrigação.
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A primeira vez que vi o nome de Kane foi na primeira página dos jornais. Um cara de 23 anos fora preso como o cabeça por trás de um fórum de música chamado Dancing Jesus, e em breve teria de enfrentar os tribunais. Um ano se passou antes que eu visse seu nome novamente, desta vez no Daily Mail online, e com o acréscimo de um peso criminal muito maior. Ele agora era descrito como “um pirata da internet que criou um site de compartilhamento de música que custou à indústria £240 milhões”. Ele fora sentenciado a 32 meses de prisão; a mais longa sentença relativa a um caso de pirataria online de música da história do Reino Unido.
A acusação, levantada pela British Phonographic Industry (BPI), argumentou que Kane Robinson era responsável por uma das mais danosas e implacáveis operações de infração de direitos autorais de música jamais vistas no Reino Unido. A sentença severa não só pôs Kane atrás das grades, como também o pintou como um monumental vilão da era digital; o destruidor da indústria da música, ou, como os jornais o chamaram: “um cyber vigarista”.
Conversei com Kane enquanto ele estava na prisão, através da robusta interface do EmailaPrisoner.com. Meus emails eram impressos e entregues a ele por debaixo da porta de sua cela, e ele me enviava as respostas algumas semanas depois. Mas, por engano ou por algum tipo de interferência de terceiros, muitas das minhas perguntas mais pertinentes sobre o caso não eram abordadas nas respostas, embora Kane insista haver respondido a tudo que recebeu. Por fim, concordamos em esperar que ele saísse da prisão, e finalmente conversamos frente a frente, cinco dias após sua soltura.
Para alguns milhares de pessoas, o fórum de música Dancing Jesus evoca nostalgia por uma época em que se pensava a fundo sobre comprar uma jaqueta do Libertines e se tinha orgulho de saber a letra inteira de “Banquet”, do Bloc Party. Para os que não sabem, era um fórum sem frescuras com cerca de 12.mil usuários que funcionou entre os anos de 2006 e 2011. Fãs principalmente da música indie britânica se reuniam para discutir discos, avaliar shows, compartilhar mixtapes, trocar links do MegaUpload, do Mediafire ou do Rapidshare de músicas novas e ainda não lançadas, e explicar umas às outras como diabos usar o WinRAR.
Hoje em dia, os fóruns cumprem um papel menos central na disseminação da música, sendo o KanyeToThe.com um sobrevivente digno de nota, com os fóruns dedicados a nichos musicais do Reddit reunindo todos os que ficam no entremeio. Mas, em meados dos anos 2000, os fóruns estavam em alta, e lugares como o Dancing Jesus prosperavam. Esse fórum específico tinha uma personalidade própria: uma identidade intelectualizada, apaixonada e meio pretensiosa, que rivalizava com a da Pitchfork ou do Drowned in Sound à época. Abrigava discussões tempestuosas (o nu rave era uma bobagem? O The Automatic era inimigo do bom gosto?) e foi o ponto inicial de centenas de amizades — às vezes até entrando na vida real, em tópicos para pessoas que iam a shows e queriam achar alguma companhia. Para mim e meus amigos, parecia incomensuravelmente sábio, e muito mais cool do que nós, com nossos blazers cheios de bótons e jeans da New Look. Presumimos sem muitas dúvidas que fora criado por algum tipo de libertário indie do leste de Londres, enfronhado na dark web, com dezessete gravadores de CD, quatro monitores e um caderninho preto com os contatos das figuras escusas da indústria.
Mas o chefe por trás da operação toda era um rapaz que morava com os pais no nordeste da Inglaterra, usando só o iMac em seu quarto, nas horas livres da faculdade e de um emprego de meio período na Tesco perto de sua casa. “Sempre acho graça quando as pessoas enfatizavam nas notícias sobre mim que eu comandava essa coisa toda desde um quarto na costa nordeste”, diz Kane. “De onde mais eu vou administrar a porra de um site? Um site se faz em casa!”. E, quanto mais eu conversava com Kane e investigava sua história, menos encontrava o abominável gênio do crime, destruidor da indústria e responsável pela pilhagem de £240 milhões que eu fora levado a esperar, e mais fui conhecendo um fã de música levemente ingênuo e hiperentusiasmado que cometeu erros bobos em uma época de importância crítica.
Quando Kane era criança, o irmão mais velho de um amigo, que morava na casa em frente, abriu seus olhos para as fronteiras mais escuras da internet — no caso, a esquisitice surreal de coisas como o SteakandCheese.com. Kane ficou viciado. Aos 12 anos, fazia sites no Geocities: sobre Jackass, sobre futebol, e sobre luta — “muitos sites sobre luta” — antes de se apaixonar completamente por fazer fansites sobre seu amor pelos Simpsons.
No colégio, um Kane de 14 anos fez seu próprio site personalizado, contornando os firewalls da rede da escola, no qual hospedou todos os jogos em flash que seus professores de TI haviam bloqueado. “Passei o link para toda a escola e pus um livro de visitas ridículo lá também”, diz ele. “O colégio inteiro entrava lá, jogava, ficava nos chats, deixava mensagens — rolavam altas paradas, basicamente.”
Ele largou o colégio aos 16, num dos auges do seu entusiasmo pela computação, e matriculou-se num curso técnico de TI no Tyne Metropolitan College. O ano de 2005 chegava ao fim, e uma nova onda de indie rock vibrava sob as botas de fivela dos garotos indie britânicos. A caixa especial NME’s Essential Bands trazia Razorlight, Bloc Party, Maximo Park e The Futureheads, e foi algo que realmente entusiasmou as pessoas; o Oasis emplacava primeiros lugares em sequência, com “Lyla” e “The Importance of Being Idle”; e Beneath the Boardwalk, uma coletânea compilada por fãs de 18 demos (incluindo “Scummy” e “Cigarette Smoker Fiona”) do badalado grupo de Sheffield, Arctic Monkeys, estava redefinindo os valores positivos do compartilhamento de arquivos P2P em um mundo pós-Napster — seu efeito bola de neve digital seria um fator decisivo para mandar o primeiro single oficial da banda, “I Bet You Look Good on the Dancefloor” direto para o primeiro lugar. “Quando eles apareceram, eu não tinha ouvido nada como aquilo antes”, diz Kane. “Parecia que eles estavam pintando um retrato da nossa vida. A gente baixava tudo o que conseguia achar no Limewire”.
Ele começou a construir um fansite sobre o Arctic Monkeys junto com um amigo (“ele é um pouco mais técnico do que eu, eu sou mais o cara das ideias”) chamado Mardy-Bum.com. Ele o encheu de notícias, boatos, demos e rips. Um público apaixonado logo se formou, e Kane pegou gosto por fazer coisas que as pessoas realmente desejavam.
O Arctic Monkeys era uma mistura singular, no sentido de demonstrar uma inconfundível indiferença por ver suas primeiras músicas sendo distribuídas pelos fãs — “Nunca fizemos aquelas demos para ganhar dinheiro, afinal”, o baterista Matt Helders contou à Prefix Magazine em 2005. Mardy-Bum.com ganhou tal popularidade que sites como o NME.com começaram a usá-lo como fonte de notícias, e a revista masculina Zoo fez uma reportagem de duas páginas sobre o site. Kane leu a reportagem da Zoo direto da prateleira da Tesco em que trabalhava.
Por fim, Geoff Barradale, que até hoje é empresário da banda, telefonou para Kane. “Ele adorava o romantismo do nosso site”, ele explica. “Disse que o atual responsável pela página não estava fazendo o melhor dos serviços, e perguntou se não gostaríamos de assumir o posto. Se você tivesse me perguntado à época: ‘Qual seria o emprego dos seus sonhos?’, seria administrar o site do Arctic Monkeys. Bom, lá estava alguém ligando para mim na faculdade e me oferecendo esse trabalho. Eu tinha só 20 anos.” Ele foi chamado a Sheffield para uma reunião, e se viu no escritório da banda. Quando Barrada saiu da sala para pegar alguma coisa, Kane agiu rápido e fez com que o amigo tirasse uma foto com o celular dele segurando o Q Award que o Arctic Monkeys recebera de ‘Melhor Banda do Mundo Hoje”.
Dividindo o tempo entre o Arctic Monkeys e o emprego na Tesco, Kane também cuidava de projetos paralelos na internet. Ele percebera um monte de fóruns de bandas cujos números de membros estavam disparando em meio a uma maré ilimitada de música indie britânica. O The Cribs tinha um fórum particularmente movimentado, assim como várias outras bandas, e as seções “Off Topic” muitas vezes se tornavam paraísos de compartilhamento desenfreado de música via P2P. “Estava rolando em todos os cantos, em diferentes fóruns”, explica Kane, “mas nenhum deles era dedicado exclusivamente a isso. Eu queria juntar tudo num lugar só”.
Ele adquiriu um servidor pago decente — o único com que podia arcar custava £50/mês, e calhava de estar situado em Dallas. Ele então alugou um pouco de espaço na web e criou um fórum: um design mínimo de visual básico e fácil de usar. Ele logo prometeu aos usuários que o fórum jamais abrigaria propagandas, que ele nunca ganharia dinheiro com aquilo, e que a conta sempre seria paga apenas pelo próprio Kane. Ele já tinha um emprego; queria que o fórum fosse só um hobby.
Kane criou duas salas — uma para música e outra off-topic, chamada The Lounge [O Salão] — e evitou a criação excessiva de threads dedicados a sub-tópicos. E, é claro, deu um nome ao fórum; inspirado pelo episódio “The Computer Wore Menace Shoes”, de Os Simpsons — aquele em que Homer, em seu novo PC, visita um site cujo único conteúdo é Jesus Cristo dançando um disco na frente de um background azul. Foi assim que, em meados de 2006, nasceu o Dancing Jesus. Por fim, Kane surrupiou uma imagem do único outro site Dancing Jesus atualmente encontrável nos resultados de busca do Google — uma loja online de bobble heads — e usou a imagem do produto deles como logo do fórum. Depois, escolheu um username: Jesus.
“Nunca gostei daquela porra de ‘Admin’”, ele diz, rindo, quando pergunto qual username ele usava nos fóruns. “Eu me chamava Jesus. Porque eu era o chefe, né? Era eu quem comandava tudo.”
O primeiro passo foi falar do site para os amigos. “Eu dizia: ‘Olha, criei esse fórum aqui, se você quiser compartilhar música, então me procura, porque comprei um servidor, para não ser derrubado tão rápido quanto esses outros sites.’ De início, não havia nada que fizesse as pessoas voltarem, então, sim, eu pegava links em grandes sites de torrent, como o Oink’s Pink Palace. Porque era nesses lugares onde as músicas realmente vazavam primeiro. Nunca uma música vazou originalmente no Dancing Jesus, éramos só um fórum.”
O Dancing Jesus nunca chegou a hospedar qualquer arquivo ilegal. Ele não tinha os meios para tal. Era simplesmente um fórum. Os usuários encontravam arquivos ou links em outros cantos, e usavam o fórum como um lugar para compartilhá-los e conversar sobre eles. Se o MegaUpload ou o Pirate Bay eram mecas colombianas da cocaína defendidas por kalashnikovs, então o fórum Dancing Jesus era uma boate britânica obscura a mil quilômetros de distância, com um pequeno público fiel e um punhado de traficantes amadores, e Kane era o dono. Sim, ele estava infringindo a lei — culpado do que é chamado de “autorizar a infração de direitos autorais” — mas sua posição na cadeia alimentar era tão humilde que nem valia a pena pensar no assunto.
Ele ouvira dizer que um dos usuários do Dancing Jesus talvez estivesse obtendo diretamente alguns vazamentos — “através de um contato que costumava escrever para a Kerrang antigamente” — mas mesmo isso não passava de um boato. Ele viu que uma usuária chamada Trix, uma mulher casada, segundo dizia seu perfil no fórum, estava criando uma reputação por sempre postar cópias de alta qualidade no fórum, mas ninguém chegou a questionar a sério de onde elas vinham.
Em sua época dourada, o Dancing Jesus sintetizava um geist sem igual na música britânica. A cada duas semanas uma nova banda legal parecia surgir, e o conceito de datas de lançamento de cópia física estava levando uma surra da exigência de imediatez da internet e seus consumidores. O vazamento de discos e o compartilhamento de arquivos se tornaram basicamente a norma entre os jovens. Os provedores de serviço de internet ainda não haviam começado a perseguir os sites suspeitos, 28% dos britânicos confessavam baixar de graça materiais que não estavam em domínio público, e 80% admitiam desejar que houvesse uma forma de compartilhar arquivos via P2P dentro da lei. Para os fãs da música em dia com a tecnologia, era como os loucos anos 1920; para os donos de gravadoras, era como a Grande Depressão.
Kane com os carrinhos na Tesco.
Mas, nessa tempestade de compartilhamento P2P, as novidades prosperavam na música. Bandas como Patrick Wolf, Foals, Hadouken!, Little Man Tate, Bombay Bicycle Club, Klaxons, Bromheads Jacket, Maximo Park, Futureheads, Cooper Temple Clause, Forward Russia, e The Sunshine Underground eram nomes fáceis no fórum Dancing Jesus. E Arctic Monkeys também, é claro. O nu rave veio e se foi, certos artistas da música eletrônica (Burial, Aphex Twin, Four Tet) tiveram a bola levantada pela galera, e havia também uma preferência nítida pela música indie americana de caráter mais experimental; bandas consagradas como Neutral Milk Hotel ou Modest Mouse eram temas constantes de discussões e análises. Compilações de final de ano feitas pelos fãs se tornaram um ritual, e vou confessar aqui que a primeira experiência que tive do Burial foi o som de “Archangel”, sanduichado de maneira bastante nobre entre “The Photos on My Wall”, do Good Shoes, e uma faixa há muito esquecida do Towers of London, em uma mixtape não-oficial do Dancing Jesus. Mas ainda era uma coisa de nicho — durante todos os anos em que permaneceu em atividade, a quantidade de usuários do site jamais ultrapassou os 12 mil.
“Virou uma coisa popular, mas eu ainda era totalmente contra a ideia de ganhar dinheiro com ele”, diz Kane. “Eu não tinha vontade de ganhar dinheiro com o site, e sabia que isso só me colocaria em encrencas. Por isso, não colocava propagandas, e pagava tudo do meu bolso. O meu prazer era ver a comunidade crescer. As pessoas estavam compartilhando músicas entre si, compartilhando indicações — nutrindo amizades online, basicamente. E tenho minhas suspeitas de que alguns relacionamentos começaram por lá.”
Com os admins e moderadores assumindo o pouco trabalho que havia para fazer, Kane passou a prestar cada vez menos atenção à pequena mas ardorosa comunidade que criara. As coisas estavam mudando na vida real, e ele se concentrou em seus estudos na universidade. Foi atrás de mais trabalhos como designer de sites, viajando para Londres após ser abordado, na função de produtor digital, pela NME.com. Ele ouvia seus amigos falarem sobre o Dancing Jesus, mas nunca mencionava o fato de estar envolvido. Kane, contudo, talvez ingenuamente, não fez esforços para proteger sua verdadeira identidade na internet. “Se as pessoas quisessem saber quem eu era, dava para descobrir, e descobriram. Os usuários achavam o meu Myspace e postavam fotos minhas no fórum – isso não me incomodava. Mas nunca tomei precauções para me esconder da polícia, porque nunca acreditei de verdade que houvesse algum perigo.”
Kane não se via como um criminoso cibernético. Ele não era parte de nenhuma panelinha obscura que trocava links em serviços de mensagens encriptadas, não coletava vazamentos direto das fábricas de CDs, e tampouco enviava carregamentos de cópias piratas por navio para a China. Ele nunca ouvira falar da cena warez, e não era usuário da darknet. Era só um fã de indie razoavelmente por dentro das novas tecnologias, com um pequeno fórum, que mexia um pouco com compartilhamento de arquivos. Quem nunca?
Sentir-se inocente foi provavelmente o que o impediu de ver o furacão que começava a surgir no mar. Governos de ambos os lados do Atlântico estavam começando a investir mais recursos humanos do que nunca nos casos de pirataria online. Em 2010, Alan Ellis, fundador do Oink’s Pink Palace, o famoso tracker de BitTorrent que o próprio Kane utilizara no passado (e também, coincidentemente, do nordeste da Inglaterra) se tornou a primeira pessoa no Reino Unido a ser processada por compartilhamento ilegal de arquivos. Embora a prisão tenha chegado às manchetes, o mesmo não aconteceu com a punição. Alguns usuários receberam sentenças de serviços comunitários e multas de £500, mas o próprio Ellis foi considerado inocente, graças ao trabalho de defesa do famoso advogado David Cook, especializado em crimes cibernéticos, e à equivocada decisão da promotoria de acusá-lo de fraude, e não de infração dos direitos autorais.
Mas havia outros sinais. Novos usuários apareciam no Dancing Jesus, dizendo que eles haviam sido empurrados para lá porque todos os lugares em que costumavam ficar haviam sido fechados e levados à justiça. Mas Kane não se perturbou. “Nosso site já tinha anos de funcionamento, e deliberadamente não gerava renda nenhuma. Eu tinha certeza de que, se alguém estivesse incomodado com o que eu fazia, entraria em contato comigo. Nunca me disseram para fechar o Dancing Jesus.” (Procurei a Unidade de Proteção dos Direitos Autorais da BPI para perguntar se eles chegaram a enviar algum pedido para que o Dancing Jesus fosse desativado. Eles preferiram não comentar.)
Então, no dia 1º de setembro de 2011, houve uma batida forte na porta da frente. “Três semanas antes, eu estivera em Londres para aquela entrevista com a NME.com. Estou deitado na cama, são umas seis da manhã. Minha mãe entra no meu quarto. E diz: “Kane, a polícia está aqui”. Enquanto ele descia as escadas, ouviu vozes com sotaque de Londres, e, atordoado de sono, imaginou ilogicamente que entrara sem pagar no metrô depois da entrevista de emprego. Mas havia seis agentes na casa, dois dos quais da cidade de Londres, dois da delegacia de polícia local, e dois de uma unidade investigativa da indústria da música. E quando estes últimos se apresentaram, Kane entendeu o que estava por vir.
Eles entraram em seu quarto com o objetivo de coletar provas. “Acho que esperavam alguma operação de pirataria, mas tudo o que encontraram foi meu notebook com It’s Always Sunny in Philadelphia passando no último volume. Isso provavelmente não me ajudou em nada. A primeira coisa que viram ao abrir meu computador foram dois torrents de temporadas completas, o dessa série e o de Curb Your Enthusiasm.” Kane foi preso. Ele tinha 22 anos.
Apesar do drama da prisão, a ficha da gravidade da situação não caiu para Kane, nem para seus pais, amigos, ou mesmo para os agentes envolvidos no caso. Um dos policiais de Londres murmurou para ele que “pode parecer que a coisa é séria, mas provavelmente vai acabar tudo bem para você.” E quando Kane chegou à delegacia policial de Gateshead, foi recebido com o som animado de um policial de lá: “Eeeia! Primeiro acusado de um caso desses que recebemos por aqui!”
Em sua primeira entrevista, ele aceitou toda a culpa pelo site e rejeitou oportunidades de atribuir qualquer parcela dela aos moderadores ou administradores do fórum. Kane foi solto sob fiança e, surpreendentemente, informado de que o Dancing Jesus, que fora tirado do ar pelas autoridades, poderia ser reativado se ele assim desejasse, contanto que mais nenhum link de download fosse hospedado por lá. Fora isso, a única outra coisa que eles queriam saber: quem era Trix? Kane não fazia ideia. Ele deu reset no fórum, contou aos usuários o que acontecera, e proibiu a postagem de links.
Então o caso esfriou. Tentativas de responder à fiança foram canceladas repetidas vezes pelas autoridades, e, em junho de 2012, quase um ano após sua prisão, ele recebeu notícias estranhas. “Liguei para perguntar se ele queria que eu pegasse o trem e fosse responder à minha fiança, e disseram: ‘não, não venha. Você oficialmente não está mais sob fiança policial.’” Kane contou aos amigos e à família, e todos imaginaram que ele fora desculpado, ainda que misteriosamente.
Não foi antes do recurso de Kane para reaver suas posses apreendidas que o capítulo seguinte e mais fatídico teve início. Kane estava sendo processado pela BPI (British Phonographic Industry) e, dali em diante, as coisas começaram a cair por terra. Seu servidor no Dallas, pelo qual não tinha que pagar muito, fora apreendido pelo departamento de Homeland Security dos EUA, colocando Kane sob a mira dos caçadores de pirataria mais ruidosos do mundo, e fazendo do seu um dos primeiros casos de infração aos direitos autorais nos quais autoridades americanas e britânicas trabalharam em conjunto. Kane começou a sentir que a coisa tomava proporções maiores do que ele imaginara no início. A BPI o estava processando, e aquilo não era brincadeira. Era hora de arranjar alguma assistência jurídica.
Meses se passaram. O trabalho na NME não se concretizou, o Dancing Jesus foi tirado do ar de uma vez por todas, e, na época em que a maioria dos que têm vinte e poucos anos estaria ensaiando para sair da casa dos pais, Kane tinha dificuldades em fazer quaisquer planos que fossem além do mês seguinte. Só em outubro de 2013, quase dois anos e meio após sua prisão, Kane foi intimado a comparecer perante o Tribunal da Coroa de Newcastle.
Ao chegar no tribunal naquele dia, Kane viu o prolífico usuário do fórum de nome Trix pela primeira vez. Não era uma mulher casada, e sim um homem de 22 anos de Leicestershire, chamado Richard. Kane declarou-se culpado de infração de direitos autorais. Outro ano se passaria até que ele fosse chamado para ouvir a sentença.
“Aqueles três anos todos entre a prisão e a sentença, as pessoas ficavam me perguntando — o que está acontecendo? Você vai pegar cadeia? Talvez. Não faço ideia. Ninguém sabia. Não havia diretrizes para sentenciar um caso como o meu. Todo mundo que era próximo de mim achava que eu levaria uma reprimenda, e talvez uma multa salgada. Mas, no fundo, eu sabia que alguma coisa estava acontecendo. Sabia que a indústria da música queria fazer de mim um grande exemplo.”
Para compreender o caso de Kane, é preciso examinar a atmosfera que o cercava. O fracasso notório no processo contra o Oink’s Pink Palace, o caso internacional em andamento de Kim Dotcom e sua cara equipe de defesa, haviam deixado um gosto ruim nas bocas da indústria da música. Esses casos passavam uma mensagem de que os processos contra a pirataria online, ao contrário do que acontecia com os pirateadores de CD, muitas vezes punidos, podiam ser driblados e debelados se você fizesse as jogadas certas e pagasse por uma boa equipe de advogados de defesa. A BPI passara o verão de 2014 lutando contra Google, Microsoft, Yahoo e outros motores de busca, para que eles começassem a empurrar para o final de seus rankings os sites de compartilhamento ilegal de arquivos, com pouco sucesso. Centenas de casos iniciados pela BPI no decorrer dos anos 2000 haviam resultado em nada além de multas (a maiora na casa de £5.000) e processos. Mas, como processar só funciona mesmo se o perpetrador tem como arcar com o reembolso, isso não tinha poder de dissuasão. Sentenças prisionais são um poder de dissuasão.
Nos EUA, sentenças longas por pirataria estavam sendo emitidas, mas o Reino Unido parecia um lugar mais leniente. Seria possível defender, portanto, que chegara a hora certa para a escolha um bode expiatório; um caso grave, ideal para causar medo nas massas; um sucesso inequívoco para a Unidade de Proteção dos Direitos Autorais da BPI que poderia virar uma história de horror da pirataria pelos anos seguintes. Você pode imaginar que Kane Robinson, que de magnata da internet nada tinha, contando apenas com um defensor público, sem lucros decorrentes da pirataria para arcar com os custos do processo, e sem nenhum especialista em crimes cibernéticos à vista, parecia um alvo bem fácil.
“No final de semana antes da sentença, sentei com meu advogado, e ele leu para mim que eles me acusariam de piratear 46 dos 50 top singles de 2010/2011. Eu disse a ele a minha refutação. Mas aí, no dia da sentença, essa quantia de £240 milhões surgiu do nada, de repente. E minha sentença acabou se baseando integralmente nisso. Não sei se minha equipe de defesa foi mais lenta no gatilho, ou se a promotoria colocou esse dado no último minuto, mas parecia que todo mundo naquele tribunal havia concordado que eu deveria ser punido.”
No dia 10 de novembro de 2014, apesar de não ter antecedentes criminais, Kane foi sentenciado a 32 meses de prisão. Richard Graham, também conhecido como Trix, recebeu uma sentença mais curta, de 21 meses. O rosto de Kane apareceu na capa de jornais locais e nacionais. A foto dele segurando o Prêmio Q do Arctic Monkeys vazou para a imprensa. Ironicamente, a maioria dos veículos cortava o prêmio da foto, e nenhum repórter refletiu por que exatamente Kane o teria em mãos. Não interessava encontrar qualquer tipo de legitimidade, ele era um cyber vigarista.
O Daily Mail pintou o fórum como se fosse tipo uma grandiosa mansão Gatsby da devassidão pré-lançamento, escrevendo em 11 de novembro de 2014 que o Dancing Jesus tinha “70 milhões de usuários” (mais do que a Apple Music e o Spotify juntos, se fosse verdade) que podiam “ouvir praticamente qualquer música ou disco antes da data de lançamento”. O diretor da Unidade de Proteção dos Direitos Autorais da BPI, David Wood, publicou uma declaração: “A sentença de hoje envia uma mensagem clara, para os operadores e usuários dos sites ilegais de música: a pirataria online é uma atividade criminosa que não será tolerada pela justiça, no Reino Unido ou no exterior.” Em outro lugar, a sentença foi descrita como “bastante severa” e como sendo do tipo “mais fácil de se encontrar em condenações criminais de casos de direitos autorais relacionados à fabricação e venda de CDs e DVDs pirateados.”
A severidade da pena de Kane é uma questão polêmica. É possível lançar um olhar comparativo ao caso do cidadão americano Bennie Lydell Glover, ex-operário de uma fábrica de CDs da Universal Music, que pirateou e vazou centenas dos discos mais importantes do mundo durante dez anos, operando como o principal fornecedor do infame grupo warez Rabid Neurosis, vendendo cópias piratas físicas a inúmeros clientes na área de Nova York e entorno, e descrito recentemente pelo New York Times como “o homem que faliu a indústria da música”. Em 2010, Glover foi sentenciado a três meses de prisão.
A etiqueta de preço de £240 milhões calculada pela BPI foi o golpe fatal, e é um tanto difícil descobrir de onde ela veio. Como Kane acabou custando à indústria da música uma quantia tão astronômica com um fórum de apenas 12.000 usuários? Quando comparado a outros casos de pirataria, parece quase uma brincadeira. São £236 milhões a mais do que o cofundador do Pirate Bay, Hans Fredrik Lennart Neij, foi obrigado a pagar em danos. Kim Dotcom, o magnata milionário da internet responsável pelo infame MegaUpload.com, foi responsável por danos de apenas £100 milhões a mais do que Kane, de acordo com sua acusação. Isso apesar do MegaUpload.com ser responsável por hospedar e distribuir 12 bilhões de links, comparados com os 22.500 links que foram somente postados pelos usuários no Dancing Jesus, e não hospedados.
“O argumento de autorizar a infração é bastante simples”, explica o especialista em leis relativas à música Chris Cooke, da Complete Music Update, “e o de que ele não hospedou conteúdo é irrelevante. Mas por que o tribunal considerou isso uma questão criminal a ser julgada é uma outra história. Se Kane não estava ganhando dinheiro, então é necessário presumir que o que os incomodou foi o tamanho da operação de Kane.”
O tamanho da operação foi quantificado nesse mítico valor de £240 milhões. Enquanto Kane estava preso, sua família e amigos criaram um crowdfunding para arrecadar o dinheiro necessário para pagar o advogado especializado em crimes cibernéticos David Cook, que tivera sucesso na defesa do Oink. Onde a equipe de defensores públicos de Kane fracassara, Cook conseguiu efetivar uma redução descomunal nos danos, para aproximadamente £500.000. (Entrei em contato com a Unidade de Proteção dos Direitos Autorais da BPI para pedir informações sobre como fora feito o cálculo original de £240 milhões, mas eles se recusaram a comentar, como fizeram no caso de todas as perguntas que lhes enviei na pesquisa para este artigo. Contudo, deve-se observar que esse é o protocolo padrão de casos em que o réu se declarou culpado.)
“Essas leis sobre a internet são uma imensa área cinzenta”, explica Kane. “É assim que pessoas como David Cook se especializam em absolver os outros. Porque estamos em uma época em que esses advogados sabem mais sobre as leis digitais do que os próprios tribunais. Se você conseguir contratar o advogado certo, e tiver como pagá-lo, então consegue julgamentos mais justos para esses crimes digitais. Mas, se tudo o que você tem são defensores públicos, e está enfrentando toda a indústria da música e também um juiz que é novato nesses tipos de crime, aí, bem, você está fodido.”
O caso de Kane aconteceu num momento em que a determinação ferrenha da BPI a processar os casos de pirataria de música buscando sentenças prisionais estava em alta, mas o conhecimento e a experiência de tribunais, juízes, júris, e especialmente da defensoria pública, necessários para compreender as verdadeiras complexidades dos casos, ainda eram incipientes. Ele se tornou o alvo mais fácil em uma indústria do crime que, na verdade, opera numa escala vastamente superior à de Kane. Isto é um problema, e que cada vez se agrava mais.
Nos EUA, um cara de 23 anos acabou de ser sentenciado a três anos numa prisão federal por um caso de pirataria de música com valor estimado em US$ 7 milhões, e, no Reino Unido, em julho deste ano, o governo do Partido Conservador lançou uma consulta oficial sobre planos para multiplicar por cinco a pena prisional máxima para piratas online de música, de dois para brutais dez anos. Eles argumentam que isso se aplicaria apenas a criminosos culpados de “infração online de direitos autorais de escala comercial”. A ideia é que esse grau de punição se iguala ao das punições infligidas a infratores que cometeram pirataria offline, como o pirateamento de CDs.
Contudo, há abismos imensos entre a criminalidade de uma empresa de pirateamento de CDs e a de um garoto que tem um fórum na internet. Começar uma empreitada de pirateamento de CDs não é fácil, ao passo que criar um site é. No caso do pirateamento de CDs, costuma ser bastante fácil ver quanto o perpetrador ganhou, e quanto custou à indústria da música, porque a venda de cópias físicas resulta em custos e lucros que são rastreáveis através das contas bancárias. Mas, nos casos de pirataria online, essas quantias associadas aos nomes dos infratores normalmente são estimativas exageradas, baseadas em quantas pessoas provavelmente baixaram alguma coisa, em quantas compras elas provavelmente não fizeram por causa disso, e de qual, portanto, provavelmente foi o custo para a indústria. É assim que se chega a estimativas descomunais como os £240 milhões, tiradas do nada. É um terreno duvidoso esse de tornar iguais em duração as sentenças prisionais para casos de pirataria online e offline.
O caso de Kane Robinson ilustrou como atribuir quantias de “escala comercial” a fãs de música sem ficha na polícia e que ficam em seus quartos é uma tarefa fácil e não contestada para os advogados da BPI, que trabalham em um sistema judicial britânico que claramente ainda está aprendendo as nuances e intrincácias desse mundo de crimes cibernéticos. Sentenças como a de Kane estão ameaçando se tornar mais comuns, e também crescer em potencial de mudar a vida dos réus. Com a infração digital de direitos autorais se tornando um dos crimes mais representativos do século XXI, cada vez mais aumenta o perigo de que a maioria das pessoas não entenda como diabos ela funciona. Mas, em vez de criar uma maneira de educar as pessoas desde pequenas sobre os perigos, a ética e as consequências da pirataria de música, tanto para elas mesmas quanto para os artistas (um problema que a empresa independente antipirataria Muso está tentando enfrentar), o governo britânico e a BPI estão fixados em concentrar todos os esforços na obtenção de sentenças cada vez mais brutais.
Na cadeia, a confusão entre as autoridades sobre como exatamente lidar com Kane continuava. Ele passou seis dias em um centro de detenção local em Durham, antes de ser transferido para Northumberland, onde ficou por seis meses. “Eu fui reclassificado por bom comportamento, e obtive autorização para ser transferido para uma penitenciária de segurança mínima em Kirklevington, que tinha regras bem mais relaxadas. Mas, quando cheguei, revelou-se que eu pelo visto poderia ter ido para lá já no primeiro dia.” Ele lembra dos companheiros de prisão quase rindo de seu crime: “Caralho, como assim você está aqui por baixar música?” Ao passo que a maioria dos prisioneiros recebe um plano de sentença relativo ao seu crime – para reduzir o risco de reincidência e ajudar na readaptação à sociedade –, Kane foi ignorado: “Por exemplo, se você está preso por um crime violento, recebe um curso de como controlar os próprios pensamentos ou coisa parecida. Mas eu nenhuma vez me encontrei com meu administrador de sentença para discutir algo do tipo. Eles simplesmente não tinham ideia do que fazer comigo.”
Ele sente raiva pelas injustiças de sua história, mas também consegue manter o bom humor a respeito de grande parte dela. “Você conhece algumas das piores pessoas do mundo na prisão”, diz ele, “mas também algumas das melhores. Aprendi mais por lá do que em três anos de facul.” E embora ele tenha ficado profundamente irritado com a cobertura que a imprensa deu à história, ainda consegue rir de como uma foto que tirou de brincadeira, de si mesmo imitando David Brent num sofá, acabou sendo publicada em tantas primeiras páginas, de forma tão grosseiramente pixelada.
De volta à casa em North Shieds, ele encontrou alguns pequenos trabalhos fazendo design de sites para amigos de amigos. Mas Kane está principalmente se reajustando à condição de ser livre novamente. A prisão foi um “sonho estranho”, e ele quer se concentrar em recolocar a vida nos trilhos. Pela primeira vez em quatro anos, Kane pode pensar em outras coisas que não seu processo, começando por como ele se manterá ocupado durante os oito próximos meses de toque de recolher das sete da noite às sete da manhã. O Call of Duty, ao menos, terminou de baixar.
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Tradução: Marcio Stockler.