Recentemente, a ONU anunciou 17 metas globais para os próximos 15 anos. A meta pro Brasil é Redução das Desigualdades. Inspirados por isso, pensamos numa série de matérias pra VICE, Noisey, Thump e Motherboard. Clique no link acima pra sacar todas.
Uma fila de carros se forma na rua. Dentro deles, homens de todas as idades, classes sociais e regiões diferentes observam o movimento das ruas com olhos famintos. A maioria está de regata ou sem camiseta, com o som ligado no máximo. O trânsito parece ser constante nas vias, mas ninguém buzina ou parece se importar com isso. Todos olham fixamente para as 10 meninas que estão distribuídas nas calçadas. Faça chuva ou faça sol, a maioria das garotas está nua da cintura pra cima ou vestindo biquínis em cima de salto-altos generosos. No dia em que tive a oportunidade de passear na rua, o sol estava forte e castigava os pedestres, que procuravam refúgio nas sombras dos “inferninhos”, nos botecos ou nas árvores. As garotas mandam beijos aos carros, dançam ou fazem um sinal para que os homens entrem nas casas. Em resposta, os motoristas uivam excitados ao convite feminino de sexo pago. Esse é só mais um começo de tarde de um sábado abafado no Jardim Itatinga.
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Escondido entre duas intersecções de importantes rodovias de São Paulo, o bairro, considerado uma das maiores zonas de prostituição da América Latina, foi criado durante o período da ditadura militar como uma resposta da sociedade conservadora de Campinas a fim de expulsar da região central da cidade qualquer pessoa que trabalhasse com o sexo. Ironicamente, lá também foi instalada, à época, uma Delegacia de Costumes.
“Criado em 1969, em plena ditadura militar, como medida de higienização da cidade e para concentrar as prostitutas num único lugar, o bairro ganhou vida própria e rapidamente se tornou referência para profissionais do sexo e clientes de muitos cantos do Brasil”, explica Amara Moira, que é travesti, mestranda na Unicamp e representa a ala das transexuais e travestis que são atendidas pela Associação das Mulheres Guerreiras (AMG).
A associação é a principal organização instalada nas ruas do bairro: presta auxílio às profissionais do sexo que trabalham no Jardim Itatinga e/ou na região de Campinas, buscando impedir violações de direitos e assegurando um bom ambiente de trabalho para a categoria das profissionais do sexo.
A ação começou em 2003 graças à luta de profissionais do sexo da cidade, e, em 2007, a associação finalmente foi registrada no papel. “A prostituição não é crime, mas muita gente utiliza o espaço de trabalho delas para criminalizar a atividade. Muitas eram vítimas de tentativas de expulsão, ameaças, violência policial e até mesmo [violência] dos comerciantes. Assim, elas começaram a se juntar para discutir sobre a situação, e nasceu a Mulheres Guerreiras”, explica Betânia Santos, trabalhadora do sexo há 23 anos e uma das coordenadoras principais da associação junto à Amara.
Um dos principais objetivos da Mulheres Guerreiras é organizar a categoria, lutar para que seja finalmente aprovada uma regulamentação que tire o exercício da profissão da criminalidade e também atender às prostitutas em casos de violação de direitos. “Essa é uma profissão que se exerce no anonimato, em meio à vergonha e ao medo; então, é difícil que uma profissional que esteja enfrentando dificuldades ou violência saiba com quem contar”, conta Amara.
Embora a categoria seja reconhecida no Brasil e contratar serviços de qualquer profissional do sexo não configure crime, qualquer espaço com o intuito de lucro em cima da profissão é considerado um delito pelo Código Penal Brasileiro. São as “casas de prostituição”, no caso, que podem gerar uma pena de dois a cinco anos e multa.
A ilegalidade das casas de prostituição obviamente dificulta o exercício da profissão e gera fatores inseguros para cada trabalhadora. Segundo Amara, a única forma legal é a prostituta atender na sua casa – e essa não pode ser alugada. Além disso, qualquer tipo de auxílio vindo de terceiros pode ser caracterizado como facilitação de prostituição, também previsto no Código Penal.
O poder público nunca chegou a oferecer uma alternativa de trabalho para essas profissionais. No caso de Campinas, a solução foi mandar o problema para um lugar afastado, longe dos olhos da família tradicional brasileira. Entretanto, o “gueto” adquiriu vida própria.
Para Amara, há um paradoxo que envolve o Jardim Itatinga. Ao mesmo tempo que a segregação das prostitutas trouxe menos riscos de sofrer as violências da profissão, também há a imposição de cada uma delas ter de trabalhar em uma casa de prostituição ilegal, o que ajuda a criar uma situação em que, a qualquer momento, o direito de exercer a profissão possa ser interrompido. “Dão com uma mão e tiram com a outra, de forma a nos deixar em situação sempre vulnerável, situação em que nos querem, pra que não enchamos a paciência.”
É essa complexa existência do Jardim Itatinga que permite que a associação milite também por uma das suas maiores missões: a regulamentação da profissão. “Essa é a importância do Projeto de Lei Gabriela Leite, o PL da regulamentação das casas de prostituição”, ela frisa.
Proposto pelo deputado federal Jean Wyllis, o PL leva o nome da grande mentora das militantes dos direitos das prostitutas, a finada Gabriela Leite, que lutou arduamente a favor da regulamentação. Como era de se esperar, o projeto tem sido alvo de muitas polêmicas, especialmente pelo argumento de que, se aprovado, ele irá legalizar a cafetinagem.
Tanto Amara quanto Betânia discordam dessa afirmação. Especialmente porque muitas críticas são tecidas por pessoas que nunca tiveram contato com a profissão ou sequer chegaram a conversar com uma trabalhadora do sexo sobre o assunto. “Ninguém fala da justificativa e ninguém pensa como as profissionais vão se beneficiar desse projeto. Só pensam no patrão, empregador, e não na figura do empreendedor. Até porque nós não queremos ser empregadas de ninguém – nós estamos desenvolvendo um trabalho autônomo”, defende Betânia.
“Demoniza-se a cafetinagem, mas esquece-se de perguntar para nós o que essas figuras representam. Muitas vezes são as únicas pessoas a quem podemos recorrer numa sociedade que aceita com naturalidade que nos expulsem de casa, da escola, que nos fechem as portas do mercado de trabalho formal”, completa Amara.
Na questão das travestis e transexuais, Amara explica em seu blog que “regulamentar as casas é oferecer opções para a pessoa que se prostitui; é também permitir que nós, pessoas trans e travestis, tenhamos acesso ao aluguel de imóveis; é também permitir que o trabalho sexual possa ser realizado em qualquer tipo de espaço, inclusive o alugado em imobiliárias: afinal, por que razão ele deveria estar segregado apenas aos becos escuros, quartos pulguentos, drive-ins, motéis?”.
Cerca de 30% do espaço do Itatinga é ocupado pelas trabalhadoras trans, que ficam segregadas em uma rua que funciona em uma dinâmica diferente em comparação à das outras casas. “Nós ficamos na rua, e não na frente da casa na qual trabalhamos, e aí vamos com o cliente ou pra um quarto de pensão, ou para drive-in, motel, ou atendemos no próprio veículo do cliente, num estacionamento que há por ali”, conta Amara. Estima-se que 40 garotas trans atuem no bairro; no entanto, Betânia atesta que esse número já chegou a 70.
“É importante o cliente não confundir uma travesti com uma mulher cis: em tempos de transfobia, essa confusão pode nos custar a vida; então, é melhor sujeitar-se a essa clara delimitação e evitar consequências piores”, completa Amara, explicando porque é tão clara a delimitação entra a área das mulheres e a das travestis.
A oferta do sexo pago é proporcional ao tamanho físico da região (que engloba 11 bairros), funcionando 24 horas por dia. Segundo Betânia, são cerca de três mil profissionais do sexo espalhadas em 117 “inferninhos”. Há dias que a rotatividade do bairro chega a 1.500 pessoas – e ela aumenta nos finais de semana, fato que se comprovou rapidamente na movimentação do sábado, dia em que visitei a área.
“Considero o Jardim Itatinga um dos maiores bairros para desenvolver livremente a profissão. É um lugar aonde você pode ir e vir, não tem impedimentos e é diferente do tratamento de tráfico de pessoas, pois a pessoa tem a liberdade de sair de lá quando bem quiser”, conta Betânia.
Outra vantagem também é que os programas realizados nas casas são negociados pelas garotas para não haver exploração. De acordo com Betânia, “aqui as profissionais têm moradia. Ela vai comer todos os dias, ganhando dinheiro ou não. Dentro do bairro, tem também a participação da Pastoral da Mulher, que trata diretamente as violações do direito das pessoas”.
O trabalho da associação, que hoje conta com 65 profissionais cadastradas, é meticuloso e de formiguinha para que a categoria consiga cada vez mais poder se unir. De acordo com a Amara, no entanto, a profissão é a única em que há mais uma proibição: a da criação de cooperativas.
Segundo uma das moradoras do bairro que não quis se identificar, o PCC se instalou na região duas décadas atrás para controlar o tráfico de drogas. Betânia explica que a chegada da organização não influenciou na vida das prostitutas nem na militância da associação. Porém, ela frisa que não há nenhum tipo de cooperação entre ambos. “Nós fazemos nosso trabalho, e eles fazem o deles. A gente não interfere nem pede a ajuda deles, e a associação fica alheia a essas parcerias. Mesmo assim, nós ainda somos acusadas de ter aliança com o crime”, reclama.
Mesmo com a presença da organização, a militante destaca que o bairro está muito diferente do que era quando ela ali chegou, nos anos 90, vinda do Maranhão. “Já tem outros tipos de pessoas se instalando lá, e também hoje já tem comércios especializados. Um crescimento muito bom e muito eficaz de melhorias.”
Observando o movimento, nota-se a incrível ausência de celulares nas vias públicas. Perguntei a respeito para a mesma moradora que comentou sobre o PCC, e ela confirmou que registrar o movimento das ruas no bairro é extremamente proibido. Fato que foi confirmado novamente por uma cafetina e também garota de programa que estava instalada em uma das ruas. “Se filmar ou fotografar, a regra aqui é tomar o celular e destruir. Muitas das garotas daqui trabalham em segredo,” disse a cafetina.
Embora Betânia acredite que seja muito difícil ganhar entre 5.200 e 10 mil reais por mês sem a família desconfiar, não há o que justifique a exposição das trabalhadoras na internet. “São elas que têm de decidir se assumir.”
Antes de a entrevista terminar, Betânia deixa bem claro que a associação condena qualquer tipo de exploração e tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. “Nós apoiamos a profissional que, quando completar 18 anos e for perfeitamente capaz de responder por si, tenha o direito de escolher o que quer fazer.”
Fora as questões das casas, ela conta que grande parte dos atendimentos feitos pela associação está concentrada na violação de direitos e também preconceitos relacionados à profissão. “Ainda tem o risco de elas sofrerem violência por parte dos clientes, mas é mais difícil. De qualquer forma, tentamos ajudá-las de qualquer jeito.”
No entanto, enquanto não for aprovada a regulamentação da categoria, essas mulheres ainda estarão expostas a riscos que vêm com a criminalização do espaço de trabalho. “O cenário atual, pensando-se em termos não utópicos, seria aquele em que assalto, agressão, estupro e mesmo morte não fossem elementos cotidianos do exercício da profissão do sexo. Seria também aquele em que ser prostituta não implicasse estigma e marginalização”, finaliza Amara.