O que aprendi a conduzir pela América durante três meses

Há certos momentos em que paras no meio do frenesim que existe à tua volta e acabas por te perguntar: “Onde é que eu estou? Isto é real?”. Foi num desses momentos, numa típica casa de estudantes universitários, que a ficha me caiu. Estava em Santa Bárbara, na Califórnia e havia demasiado álcool, drogas e cheiro a erva no ar para que algo fizesse sentido e, contudo, tudo se alinhou perfeitamente e os últimos três meses tornaram-se numa realidade e não mais num sonho.

Lembro-me de dois meses antes estar sentado num lancil de passeio algures no centro da Flórida, um pouco antes de se chegar a Orlando, olhar maravilhado para a minha vida e não perceber como era possível ali estar. Eu? Eu? Qualquer outra pessoa fazia mais sentido, mas como era possível eu estar ali, sentado à frente de um supermercado a beber um café num copo de papel, tamanho extra-large, e a comer uma caixa de donuts enquanto sorria ao ver mulheres brancas e velhas, com aqueles chapéus que só têm a pala, a andar vagarosamente até às suas mini-vans, enquanto que atrás delas seguiam rapazes mulatos carregados de compras em grandes sacos de papel castanhos. Ali estava eu, a testemunhar uma América que ninguém conhecia.

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A razão de eu estar ali? Uma road trip pela América do Norte com mais três amigos, num Jeep velho e ferrugento, cujo cheiro a café de saco e peidos de fast food se tinha entranhado demasiado nos estofos.

O jeep mal-cheiroso. Fotografia por João M. Fernandes.

De certeza que já viste muitos filmes sobre road trips, desde as trips psicadélicas de um Johnny Depp na pele de Hunter S. Thompson, ou então em adaptações mal feitas e inspiradas na história do Pela Estrada Fora, mas a verdade é que nenhum livro ou filme te pode preparar para as dificuldades e desafios que a vida na estrada aberta te irá colocar.

E não, numa viagem destas não há nada de fácil, ou romântico, ou confortável. Desde que saí de Lisboa até apanhar o voo de regresso de Los Angeles que a minha vida tinha o tamanho de uma mala de cabine. Luxos deixaram de existir assim que passámos por Nova Iorque, onde ficámos a dormir sobre um colchão de espuma encardido num apartamento decrépito e sem água canalizada no centro de Greenwich Village. Privacidade? Boa sorte com isso, porque a todos os momentos havia pessoas a querer falar contigo, a perguntar (outra vez) como estava a ser a viagem e para onde íamos e de onde vínhamos.

E as horas fechadas no carro… as horas fechadas no carro em que tinha tempo para ler, escrever sobre os joelhos, pensar sobre a vida, conduzir, falar, querer matar o gajo do lado por ele não se calar, voltar a pensar e julgar que afinal nem era má ideia voltar para um emprego corporativo. Fechado naquelas quatro portas tinha tempo para tudo, a estrada não perdoa seja o que for e se queres chegar às luzes de Las Vegas, às noites de copos e miúdas malucas que deliram contigo, então tens que fazer cada uma das milhas que estão entre esta cidade e a próxima.

O Bairro Francês de Nova Orleães ao final da tarde. Fotografia por João M. Fernandes.

A maioria das pessoas pensa que pinto as coisas da maneira que mais me convém, mas foda-se… experimenta fazer uma viagem de 16 horas, em que a temperatura está nos dois graus negativos, a estrada gelada e o carro não tem aquecimento. Ah, claro, e as escovas do carro funcionam tão bem que tens que parar de cinco em cinco minutos para raspar o pára-brisas com o cartão de crédito e uma caixa solta de um DVD qualquer. Isso põe-te à prova.

Mas admito que foi graças a essa brutalidade, essa insanidade que em certos momentos tomou conta de nós, que conhecemos uma América que a maioria dos viajantes não conhece – nem vou falar dos turistas. Desculpa-me se já fizeste a Route 66, mas isso é metade do que nós loucamente alcançámos em três meses. Há uma América que os filmes nunca te vão mostrar, uma sociedade calcinada e ferida que só podes conhecer quando passas a pertencer àquele povo.

Algures no deserto do Vale Morto. Fotografia por João M. Fernandes.

E conhecemos, porque deixámos que a estrada tomasse conta de nós. Já imaginaste chegar a uma cidade como Nova Orleães e o único sitio em que podes ficar é num acampamento de pessoas cuja casa foi destruída pelo furacão Katrina? Ou então deslizares pela região de montanha dos Lagos Mamute, na Califórnia, veres um hotel e perceberes que não existem mais alternativas e assim, com o carro estacionado nas traseiras, vai um fazer o check-in e os outros três entram pelas escadas de emergência e dormes num chão de alcatifa por 12 dólares?

Ou as pessoas, o tipo sem dentes que nos arranjou o carro no fim do mundo da Geórgia, que fumava um cigarro enquanto soldava o motor sem protecção nos olhos. Ou o Bob de Montreal, que era uma cobaia humana e que desapareceu das redes sociais pouco depois de saírmos de lá – presumo que alguma experiência lhe tenha corrido mal. E, para acabar, a rapariga negra na caixa do Walmart que olha para ti como se fosses um famoso de Hollywood só porque és europeu e tens um sotaque exótico e nem se apercebe que as tuas roupas já não são lavadas há duas semanas e a sandes que levas vai ser o teu almoço e o teu jantar.

Esta viagem pela América do Norte ensinou-me como ser um vagabundo, um nómada itinerante cuja única hipótese de chegar ao final da viagem era ter que me abrir ao mundo e aceitar aquilo que viesse na nossa direcção. Tudo o resto pouco importava: os gritos trocados uns com os outros, a vontade de abrir a porta e atirar o teu amigo em andamento, de ficares a viver com a miúda que conheceste no dia anterior, as ressacas, as dores nas costas, as constipações e a comida de plástico do Harby’s e da Wendy’s. Tudo isso pesava, mas acabava por não interessar para nada. A estrada chama por ti com tanta força que tudo aquilo que desejava após alguns dias numa qualquer cidade era partir pela estrada fora e ficar na expectativa daquilo que nos ia acontecer.

Ser perseguido pela polícia, apanhado no meio de uma tempestade de neve, dormir numa mansão ou numa praia do Golfo, se o cabrão nos vai pagar o jantar ou é a dividir por todos, se é desta que te passas da cabeça e esmurras o teu amigo ou se é hoje de madrugada que saem da casa de duas miúdas com um grande sorriso na cara e ainda vão beber mais um copo antes de aterrarem totalmente felizes da vida.