Conquistando o Mundo Livre


Depois dessa batalha ficou aparente que as táticas de batalha élficas se baseiam em sentar na floresta e pegar os retardatários, confirmando assim as suspeitas de que elfos são uns bundões mesmo.

Houve um tempo em que o LARP (live action role-playing, ou jogo de interpretação ao vivo, uma das formas de se jogar RPG) nada mais era do que um bando de marmanjos virgens colecionadores de action figures que evitavam seus pensamentos suicidas arranhando uns aos outros com lanças de espuma num parque. Hoje ele é uma subcultura com sua própria indústria de milhares de dólares de armamentos falsos e uma série de torneios enormes que acontecem pelo mundo todo. Mas o lar natural do LARP é Quebec, onde franco-canadenses adultos acham perfeitamente aceitável fingir que vivem numa refilmagem de Guerreiros de Fogo feito como TCC prum curso de cinema. Eles até construíram mais de 100 estruturas “medievais” na “vila” de quase 150 hectares ao norte de Quebec que ganhou o apropriado nome de Grão-Ducado de Bicolline. 

Todo mês de agosto, milhares de exemplares modernos da humanidade rumam para esse lugar para uma semana de festival medieval que acaba na Grande Batalha, o campeonato mais importante do LARP. A primeira batalha aconteceu em 1996 como uma competição para uns poucos quebequenses praticantes de LARP, e agora recebe gente de lugares distantes, como Luxemburgo. Como isso foi anunciado como um evento aberto a todos, aluguei uma fantasia esfarrapada de Peter Pan por US$ 30 e fiz a viagem de duas horas até lá desde Montreal.

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Conforme estacionava na entrada, uma pequena “cabana de boas-vindas” surgiu de repente entre os pinheiros. Um organizador vestido como guarda suíço me mostrou o terreno, falou sobre as moedas cunhadas chamadas Solars e me deu um “cartão de batalha” com o meu nome (que depois troquei por três cervejas). Após recitar as regras, que incluíam “proibido fazer fogueiras” e “nada de violência”, ele me guiou até um enclave na pequena floresta da área, onde armei uma barraca. No caminho até lá passei por algumas construções com orcs jogando dados em frente ao fogo, um grupo de vikings assando um porco inteiro no espeto e um nenê vestido de elfo. Foi ficando claro que essa gente não estava de brincadeira.

Quando cheguei ao acampamento, meu vizinho, um “cita” de kilt de couro, estava reclamando que quase tinha sido expulso pela polícia da moda de Bicolline por causa de seus cadarços laranja, que “não estavam de acordo com os padrões medievais”. Mesmo assim não me preocupei com meu visual, tomei umas cervejas e dei um passeio. Depois de três canecas reais, eu caminhava pelas ruas ladeadas por tochas quando um clã de cavaleiros apareceu, derrubando bebida de seus chifres ocos. Do nada, um cara muito doido que parecia o Frei John correu pra mim, babando e com os olhos esbugalhados de anfetamina. Nesse tipo de situação a maioria das pessoas se cagaria de medo, mas eu fiquei hipnotizado pelo seu corte tigelinha da Idade Média. Antes que eu pudesse reagir, ele chacoalhou minha lata, espirrando cerveja pra todo lado.

“Por que diabos você não está tomando sua cerveja num chifre ou num caneco? Que merda, cara!”

Atordoado, eu só balancei a cabeça e decidi que não valia a pena ser expulso pelos guardas da segurança LARP vestido como um moleque de sete anos numa missão de dia das bruxas por causa desse lunático. Além disso, seria besteira perder a Grande Batalha épica sobre a qual todo mundo estava falando.


Esse cara descreveu sua classificação LARP como “escaramuçador”. Ele também é corretor de imóveis.

Mais tarde encontrei um guerreiro chamado Thorkol, membro orgulhoso do clã do Corvo. Seus longos cabelos loiros e barba vermelha irregular faziam ele parecer um viking na puberdade, mas na verdade ele era um comerciante de 20 e poucos anos que morava no porão da casa dos pais. Ele concordou em me levar pra conhecer o local e me apresentar aos seus “irmãos”. Enquanto atravessávamos a ponte levadiça que levava ao Grande Salão, contei ao Thorkol sobre o cuzão que tinha jogado minha cerveja no chão.

“Você tem que entender que as pessoas vêm até aqui pra ser alguém diferente. Eles não gostam de gente que tira sarro disso ou que não os leva a sério”, ele disse. “E eu também não. Foda-se essa gente. Dá próxima vez cubra sua cerveja com a capa. É como com as garotas. Alguns caras nunca conseguem pegar ninguém na vida real, mas vêm pra cá e agem como corajosos cavaleiros, e isso funciona.”

Mais tarde, Thorkol me levou pra dentro da cidade, onde seu clã estava festejando. Quando conheci o grupo eles se recusaram a dizer seus nomes verdadeiros, usando ao invés disso títulos como Tchakalouy, Morcius, Ulf ou Khylandra, a Princesa Fada. Um cara corpulento de chapéu emplumado e armadura que ficava gritando palavras de ordem pra todo mundo basicamente me mandou dar o fora, mas num liguajar antigo. Depois descobri que ele era policial na vida real. Foi interessante notar que mesmo nesse mundo de fantasia, policiais podem ser babacas em tempo integral.

No final da noite eu já estava de saco cheio dessa porra de jogo. Era como um purgatório social bizarro, moderado por pessoas com identidades falsas. Mas eu ainda podia esperar pela Grande Batalha, então fui dormir.

Acordei com gritos de guerra distorcidos. Puxei o zíper da minha tenda e vi um grupo de bárbaros em volta de um cara franco-canadense que parecia o Schwarzenegger no Conan. Levantando suas espadas num glorioso grito cerimonial, eles correram pro campo de batalha, desviando de isopores de cerveja e cadeiras de praia. Foi uma doideira que eu estava muito sonolento pra entender. Depois do cortejo de guerreiros que tiveram que fazer uma fila única pra atravessar a ponte até a gigantesca ravina onde seria a batalha, vi um regimento inteiro de cavaleiros totalmente equipados com espadas brilhantes passar enquanto terríveis criaturas do submundo guinchavam. A sede de sangue estava no ar.

Então a corneta soou e mais de dois mil LARPers correram uns em direção aos outros pro que deveria ser um embate bíblico de espadas e lanças. Mas o que aconteceu foi um borrão de armas de espuma cutucando a esmo, até que um “morto” rolasse pro lado fingindo convulsões. Como eles usavam um sistema de honra pra fazer a contagem de corpos, ouvi muitos marmanjos reclamando: “Te pequei!”, “Não pegou não!”. Eles inclusive faziam pausas para fumar e tirar sonecas, enquanto esperavam alguma coisa acontecer. Tive tempo até de filar um cigarro de um elfo morto — não tenho certeza se eles tinham cigarros industrializados na Idade Média, mas tanto faz.

Confuso e realmente entediado, tentei chamar atenção do rei que passava com sua corte, mas dois de seus guarda-costas de merda me bateram com as espadas de espuma, me acusando de ser “um assassino”. Essa foi a gota d’água. Depois de dois dias sofrendo bullying de um bando de nerds, eu estava me sentido mal comigo mesmo por sequer pensar que esse evento podia ser remotamente divertido, então arrumei minhas coisas e voltei pro mundo real.




Minhas muitas alegrias no Grão-Ducado de Bicolline. E por “alegrias” eu quero dizer “várias encheções de saco”.




Quem precisa de filhos quando se pode fingir ser um personagem da sua própria imaginação com milhares de outros canadenses iludidos infelizes?