Iranianas lutam pelo direito de torcer durante a Copa do Mundo

Enquanto garota de 11 anos em Yazd, cidade religiosa localizada em região central do Irã, Fatemeh se apaixonou pelo futebol ao ver a seleção argentina jogando na TV da sala da casa de seu tio durante a Copa de 98, realizada na França.

“A maioria das partidas passava tarde da noite no Irã”, declarou à VICE, via mensagem no WhatsApp (Fatemeh e as outras mulheres iranianas entrevistadas para este artigo pediram para que seus nomes completos não fossem revelados, por medo de sofrerem represálias pela forma como criticam abertamente o regime iraniano). “Tínhamos só uma TV e éramos obrigados assistir os jogos com as luzes desligadas e volume baixo, para não perturbar os adultos”.

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Ajoelhada na escuridão próxima aos seus primos, forçando os olhos diante da tela diminuta, Fatemeh se via hipnotizada pela uniforme azul e branco, pelos passes suaves e a beleza do então galã Gabriel Batistuta.

Poder observar este estranho e exótico mundo a diversos quilômetros de distância, com direito a breves olhadelas em torcedoras argentinas presentes no estádio, algumas dançando com suas camisetas e shorts, servia como um brutal contraste com a sua realidade, dominada por mulheres em hijabs.

“Yazd sempre teve crenças islâmicas bastante estritas”, afirma. “Mesmo hoje, 20 anos depois, se uma garota sai na rua usando um vestido colorido ou curto, ela será recebida com olhares raivosos da maioria das pessoas”.

Assim que a Copa do Mundo se aproximou do fim, Fatehem começou a torcer pelo Persepolis F.C., time familiar do Teerã. A cada ano, seu pai e irmãos viajavam seis horas de carro para a partida anual no estádio de Azadi contra o Esteghlal F.C., uma partida tão importante que muitas empresas e comércios simplesmente não abriam no dia do jogo. Posteriormente, quando voltavam para casa com os rostos vermelhos e histórias pra contar sobre todo o bafafá, cornetadas e hostilidade sem limites entre os mais de 100.000 torcedores sempre a um passo de virar algo ainda pior, Fatemeh mais do que nunca queria fazer parte daquilo.

“Assisti muitas daquelas partidas em casa, sozinha”, comenta. “Lembro em especial do dia que o Persepolis derretou o Esteghlah e ganhou a Copa do Golfo Persa em 2011. É uma das lembranças mais agridoces que tenho”.

Quando o Irã enfrentar o Marrocos na Rússia em 2018, Fatemeh finalmente pisará num estádio pela primeira vez, quase duas décadas depois de ter assistido ao jogo da Argentina há tanto tempo. Como diversas torcedoras iranianas indo à Rússia por conta da Copa, ela planeja levar uma faixa ao estádio, junto de suas bandeirinhas do Irã, contendo uma mensagem direcionada não só à FIFA como ao governo iraniano.

O texto é simples: “Eu também quero um assento em Azadi”.

Iranianas protestam contra a Revolução de 1979. Desde então a presença de mulheres não é permitida em estádios. Crédito: Wikimedia Commons

A proibição da entrada de mulheres em estádios de futebol no Irã tem início na Revolução de 1979, quando a monarquia persa foi derrubada e em seu lugar entrou a república islâmica. Nos anos seguintes, o clero aos poucos introduziu restrições cada vez mais severas às mulheres nos mais variados segmentos, por fim instaurando uma lei que as impedia de frequentar eventos esportivos envolvendo homens como um todo.

Para mulheres com Fatemeh, nascidas oito anos após a revolução, a proibição foi só mais um fato infeliz da vida de quem vive sob um rigoroso estado islâmico.

“No Irã, estas restrições islâmicas não são negociáveis”, diz. “Nestes ambientes religiosos extremos, as garotas são gradualmente forçadas a aceitarem este tipo de discriminação, aos pouquinhos, ao longo do tempo. Não é como se tivessem acordado um dia e resolvessem proibir nosa presença em estádios; foi um processo e estas coisas acabaram por se tornar parte de nossas vidas. Durante o crescimento, acredito que grande parte das meninas nem mesmo se questionam porque não podem frequentar estádios com seus pais e irmãos, porque a resposta já estava clara. Resta arrependimento e nada mais”.

O futebol sempre integrou a cultura iraniana, pelo menos desde o final do Séc. XIX, mas ao final dos anos 90, ter se qualificado para a Copa de 98, a primeira em 20 anos, fez com que o esporte virasse uma febre no país. Muitas meninas, incluindo Mahsa, à época uma jovem de 16 anos no Teerã, acabaram por conhecer o futebol nesta época.

“Muitas ouviram falar do futebol quando souberam da qualificatória contra a Austrália, que dominou o país na época”, disse à VICE via WhatsApp. “A partida começou às 12h no Irã, mas quase ninguém foi pra aula ou trabalhar naquele dia. As escolas chegaram a mandar avisos solicitando aos alunos que não faltassem, mas o que acabou acontecendo é que famílias inteiras se reuniram em torno de seus televisores, por mais que não houvesse lá muita esperança de um resultado positivo. Vencer aquela partida foi inacreditável. Rolou festa na rua a noite inteira”.

O Irã pode ter caído na fase dos grupos naquele ano, mas esta nova geração de torcedoras seguiu cativada pelo esporte. Apesar da seleção iraniana não ter conseguido se qualificar nas Copas de 2002, 2006 ou 2010, muitas destas mesmas torcedoras começaram a acompanhar o trabalho de seleçõe europeias como Espanha, Inglaterra ou Alemanha. Mas ser torcedora no Irã não é fácil: os obstáculos não são poucos e vão além da postura do governo.

“Tinha uma frase que eu costumava ouvir bastante, ‘Que importância tem o futebol para uma menina?’”

“Após a revolução, regras cada vez mais rigorosas foram impostas à vida social”, comenta Mahsa. “Garotas no ensino médio não tem acesso a diversas coisas, não é mais possível socializar com amigos em cafés, restaurantes ou shoppings, como acontecia antes. Em 98, lembro bem de uma escolinha de futebol term coçado suas atividades no Teerã. Fui até lá, mas muitas de minhas amigas não puderam me acompanhar porque suas famílias eram muito religiosas e não permitiram, considerando futebol um esporte nada adequado para garotas. Quando eu tocava no assunto, achavam que eu era louca. “Tinha uma frase que eu costumava ouvir bastante, ‘Que importância tem o futebol para uma menina?’”.

Já em 2010, havia esperanças de que o Irã estivesse se tornando um país mais aberto e tolerante à ideia de torcedoras. Fatemeh lembra como naquele ano, as mulheres puderam assistir a seleção de vôlei iraniana jogar em Teerã pela primeira vez em décadas. “Comprei os ingressos no ato”, disse. “Não consigo nem descrever como me senti, como estava feliz de estar ali naquele estádio, por mais que homens e mulheres estivessem em arquibancadas separadas. Ainda assim, só assistimos a dois ou três jogos, até voltarem a proibição. Os teólogos islâmicos do país decidiram que o ato ia contra a religião e deveria ser impedido o quanto antes”.

Porém, ao longo da última década, a ascensão das redes sociais deu às torcedoras iranianas uma nova válvula de escape onde não só podiam acompanhar seus esportes favoritos, como também podiam protestar contra as restrições impostas em seu país.

Redes sociais como Facebook e Twitter são oficialmente bloqueadas no Irã, mas milhões de usuário burlam o bloqueio para acessá-las, através de proxies e redes virtuais privadas (VPNs), num jogo de gato e rato praticado por muitos iranianos comuns e pelo governo na caça de novas VPNs antes que sejam censuradas.

Para muitas torcedoras iranianas, as redes sociais permitiram o acesso a muito mais informação sobre times iranianos e europeus do que antes, descobrindo até mesmo que a presença feminina em seu país é muito maior do que esperavam. Fatores como estes levaram ao surgimento de um movimento crescente de protesto contra as muitas discriminações sofridas pelas torcedoras. No começo desta semana, torcedoras e jornalistas usaram o Twitter para denunciar um gigantesco outdoor da Copa do Mundo em Teerã, com os rostos de diversos torcedores iranianos. Todos homens, é claro.

“Nós mulheres não compartilhamos da alegria de nosso país”, tuítou @Banafshehjamali. “É disso que estamos falando quando o tema é discriminação de gênero e eliminação de metade da população do país”.

Para muitas iranianas, esta situação é familiar até demais, mas ao menos elas finalmente tem uma voz.

“Crescendo, simplesmente não sabíamos se haviam outras meninas em cidades pelo país que gostassem de futebol também”, afirmou Mahsa. “Mas as redes sociais mudaram esse panorama. Elas deram mais confiança às mulheres em fazerem suas vozes serem ouvidas e, por meio disso, as conscientizaram sobre os direitos que merecem dentro de uma sociedade. Há torcedoras que não puderam ir ao Brasil ou Rússia para apoiar a seleção na Copa porque seus maridos lhe negaram este direito e agora elas podem protestar contra isso”.

Casos como o de Ghoncheh Ghavami, a britânico-iraniana presa em 2014 após assistir uma partida de vôlei no Teerã em protesto à proibição, ganharam força, encorajando um número cada vez maior de torcedoras a organizarem seus próprios atos do lado de fora de estádios. No ano passado, quando foi negado às iranianas a entrada na qualificatória do Irã contra a Síria, diversas manifestações ocorreram do lado de fora do estádio de Azadi. Recentemente, muitas ainda se disfarçaram de homens com barbas e bigodes falsos para poderem assistir à partidas, postando então fotos no Instagram e Twitter como inspiração para as outras.

“Quando era jovem, tinha cabelo curto, mas nunca tinha pensado em me disfarçar para entrar no estádio”, comenta Mahsa. “Nem sabia de tantas garotas que gostavam de futebol. Agora, uma menina numa cidadezinha pode fazer algo e logo o país inteiro acaba sabendo. Na outra semana, tantas outras garotas tentarão entrar no estádio seguindo a ideia da primeira. Tudo isso ajuda a deixá-las mais corajosas”.

Caso sejam pegas, porém, a punição é severa. Como a entrada de mulher em estádios é ilegal, há o risco de prisão e os guardas tem permissão de usar o tanto de força que for necessário.

“Há garotas que são torcedoras tão fervorosas que não ligam pro que pode acontecer com elas, então se preparam para correr estes riscos.”

“Elas são incrivelmente corajosas”, afirma Fatemeh. “Além da prisão e violência, a família da garota será interrogada pelas autoridades. Mas ao proibir o acesso ao futebol, é como se este se tornasse um fruto proibido. “Há garotas que são torcedoras tão fervorosas que não ligam pro que pode acontecer com elas, então se preparam para correr estes riscos”.

Ao longo das próximas três semanas, Mahsa, Fatemeh e um grupo de nove torcedoras iranianas que foram até a Copa do Mundo, pretendem desafiar o regime de seu país ao criar seus pequenos protestos contra as regras de lá durante as partidas da seleção iraniana.

Durante a competição, as regras já rigorosas do país quanto a mulheres e futebol, ganham notoriedade por apertarem ainda mais. Cafeterias e restaurantes geralmente são proibidas de exibirem os jogos para impedir que mulheres e homens possam assistir juntos aos jogos em público, ao passo em que mulheres viajando para a Copa são orientadas oficialmente a respeitarem os valores do estado islâmico, o que inclui o uso do hijab em público.

“Não iremos usar o hijab”, declara Masi, uma das responsáveis pelo plano para realização dos protestos durante as partidas. “Não interessa a eles o que vestimos. Estamos discutindo isso via Telegram e WhatsApp. Todas teremos camisetas feitas para a ocasião, estampadas com mensagens como ‘Por que tantas regras para as iranianas?’ e ‘Acabem com a proibição nos estádios agora!’. Estamos planejando levar alguns cartazes conosco. Os canais de televisão de lá nos censurarão, mostrando apenas os parlamentares iranianos e seus familiares, com hijab e tudo, mas pelo menos poderemos mostrar nossa indignação para o resto do mundo”.

Cientes de que os oficiais iranianos na Rússia as monitorarão, as torcedoras temem atrair atenção demais, mas esperam que as câmeras do mundo mostrem seus cartazes, dando força à campanha que luta pela liberdade feminina de entrar em estádios no Irã. Esta exposição pode acabar convencendo à FIFA a manter a pressão sobre as autoridades iranianas para que mudem sua legislação.

Mas até mesmo o menor dos protestos contra o Irã, ainda que em outro país, tem seus riscos. “Estamos determinadas, mas também com medo”, disse Fatemeh. “Algumas de nós tem cargos públicos e é bem possível que voltemos desempregadas para casa. A polícia pode começar a investigar a nós e nossos familiares; tudo é possível no Irã e é claro que haverão mensagens de ódio nas redes sociais vindas dos extremistas”.

Há sinais de um futuro melhor, talvez. Em março, uma campanha forte nas redes sociais antecipando a visita do presidente da FIFA Gianni Infantino ao Teerã resultou no próprio comentando o assunto com o presidente iraniano, que por sua vez assegurou que o acesso logo seria liberado a Infantino.

Falta convencer as torcedoras, porém.

“Há muitos no governo que acreditam que as mulheres deveriam ter acesso aos estádios”, afirma Fatemeh. “Mas não está nas mãos deles a decisão. A força está no líder supremo do estado islâmico. Espero que ainda em vida possa ver estas mulheres frequentando partidas sem arriscarem suas vidas. Creio que todas nós só queremos ir a um estádio com respeito”.

Matéria originalmente publicada na VICE US.

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