Esta matéria foi originalmente publicada no Broadly US.
Depois de sua prisão no final do ano passado, a palestina de 17 anos Ahed Tamimi dominou as manchetes do conflito entre Palestina e Israel por meses. Em dezembro de 2016, a garota de então 16 anos foi levada sob custódia de Israel depois que um vídeo dela estapeando um soldado das Forças de Defesa Israelenses (FDI) viralizou. Um pouco antes do incidente, Ahed tinha recebido a notícia de que seu primo de 15 anos, Mohammed Tamimi, tinha levado um tiro na cabeça do FDI, esfacelando o lado esquerdo de seu crânio.
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Hoje, Ahed continua presa numa cadeia israelense, onde cumpre pena de oito meses como parte de um acordo fechado em março. Apesar de estar separada do público, sua imagem continua onipresente entre aqueles que apoiam a causa palestina: do Uruguai a Londres, simpatizantes fizeram murais e cartazes com o rosto dela, e manifestações pedindo sua liberdade aconteceram no mundo todo. Enquanto isso, sionistas de extrema-direita a chamam de uma ameaça para a segurança nacional, com jornalistas como Ben Caspit propondo que Israel “deveria colocar a cabeça dela a prêmio em outra oportunidade, na escuridão, sem testemunhas e câmeras.”
Mas o caso de Ahed é único só pela atenção que recebeu da mídia. A cada ano, Israel detém entre 500 e 700 crianças palestinas, principalmente por jogar pedras. Segundo o jornal israelense Haaretz, essas crianças são julgadas em tribunais militares israelenses, que processam exclusivamente palestinos e respondem por quase 100% das taxas de condenação. (Enquanto isso, israelenses são julgados em cortes civis israelenses, mesmo quando residem em territórios palestinos ocupados ou cometem uma ofensa atrás da linha verde, que forma a fronteira real entre Israel e o que restou da Palestina histórica.) Segundo a Human Rights Watch, entre 2013 e 2016, a polícia israelense arquivou 91,8% das queixas de violência de assentados israelenses contra palestinos sem indiciar nenhuma pessoa.
Segundo a Dra. Nadera Shalhoub-Kevorkian, uma professora palestina de direito que vive em Israel e cuja pesquisa foca em trauma e abuso de poder no contexto dos assentamentos, o horror da ocupação é inevitável para as crianças palestinas. “Isso está em seus espaços educacionais, no caminho para a escola, em suas casas e bairros – esses são os espaços, espaços íntimos e importantes, que estão sendo violados”, ela diz.
Toda manhã entre 7h e 8h, a Dra. Shalhoub-Kevorkian acompanha um grupo de crianças palestinas de seu bairro até a escola na Cidade Velha de Jerusalém. No caminho, ela testemunha o que chama de “invasões diárias” e seus efeitos nos estudantes. Segundo ela, não é incomum que crianças sejam despidas para revista, com fuzis apontados para elas, antes de começar seu dia de aula. Alguns dias antes de conversarmos, ela diz que uma garota de 11 anos teve o véu rasgado e a mochila tomada durante uma revista pelas forças israelenses no caminho para a escola.
Mesmo quando as crianças não são abordadas por soldados, a presença militar é palpável, ela diz. “Andando pelas ruas você vê soldados armados com fuzis, ou de guarda em lugares estratégicos para mandar uma mensagem de que a sua vida e seu corpo estão sendo policiados — de que seu espaço está sob poder deles.
“Eles estão mandando uma mensagem de que a sua vida e seu corpo estão sendo policiados — de que seu espaço está sob poder deles.”
Mas não é só a presença da FDI que serve como um lembrete inescapável da ocupação e da violência que ela traz. Em 2015, o prefeito de Jerusalém Nir Barkat encorajou civis israelenses a carregar abertamente armas de fogo. “Dada a escalada recente de violência na situação de segurança, aqueles com licença para portar armas e que sabem usá-las devem andar armados — é imperativo”, ele disse. “De certa forma, é como estar na reserva militar.”
Pelos relatos da Dra. Shalboub-Kevorkian sobre a vida em Jerusalém, o pedido do prefeito foi atendido. “Todo mundo carrega armas, fuzis potentes, mesmo os assentados na Cidade Velha… Eles carregam fuzis, protegendo seus filhos dos nossos filhos”, ela diz.
“Andar até a escola toda manhã me mostrou como as crianças são ameaçadas e aterrorizadas pelo aparato do estado, seja por soldados, assentados ou a patrulha da fronteira.” Diante desse trauma, argumenta a Dra. Shalboub-Kevorkian, as crianças palestinas de territórios ocupados têm poucas opções. “Em estudos de trauma, dizemos ‘lute, congele ou fuja’”, ela diz. “Essas crianças estão reagindo de modos diferentes, mas estão reagindo – não há outra maneira.”
Ela compartilha uma cena que testemunhou no caminho para a escola na manhã em que conversamos:
Em certo ponto, vimos um grupo de assentados vindo com seus fuzis e seus filhos pela rua. E vimos dois garotos palestinos de costas para um muro. Eles ficaram ali, congelados, até o grupo de assentados passar. Depois perguntei: “Shifa, o que aconteceu? Vocês têm medo deles?” E um dos garotos disse “Não, é que é cedo demais para lidar com eles”. Foi isso que eles responderam. Há diferentes modos de reação. Às vezes as crianças veem a situação, o jeito arrogante como soldados e assentados andam pelos bairros delas, em frente às casas delas, olhando com raiva, e então reagem gritando e xingando. Outras vezes, como os garotos hoje, eles só congelam no muro por um minuto.
Quando a ocupação apareceu no jardim da frente da casa de Ahed Tamimi em dezembro, ela escolheu lutar. Daquela vez — como muitas outras antes, quando ela tinha 11 e 15 anos — ela escolheu não ser complacente e confrontar os soldados que atiraram em seu primo e que aterrorizam seu bairro desde que ela nasceu. Vários membros da família Tamimi já foram detidos e mortos pelas forças israelenses.
A história dela inspirou alguns artigos de opinião e análises do incidente e do conflito no geral. As interpretações muito diferentes caracterizam a resposta internacional para a ocupação da Palestina: Uma matéria da Atlantic, que chama Ahed de “um símbolo da resistência palestina”, foi criticada por sionistas por retratar uma “’terrorista’ como heroína”; enquanto um tuíte do Newsweek focado no “histórico de Ahed de agressão contra policiais e soldados” foi criticado por culpar a vítima.
A narrativa de “terrorismo versus heroísmo” se liga aos rostos dos movimentos de resistência no mundo todo, mas mais insistentemente à libertação palestina. No caso dos palestinos, como com Ahed, a extrema-direita muitas vezes estende o rótulo de “terrorista” para além de combatentes armados, o usando para descrever quem resiste à ocupação de qualquer maneira, de crianças jogando pedras em tanques aos 62 palestinos mortos num massacre israelense no começo desta semana (onde não houve uma morte israelense sequer).
“O terrorismo diário do estado é o que deveria ser enquadrado como terrorismo, não a reação ou as ações de crianças.”
Segundo a Dra. Shalboub-Kevorkian, essa narrativa sobre palestinos, incluindo crianças que estão resistindo à ocupação, muitas vezes obscurece a imagem maior. “O problema”, ela diz, “é divorciar o contexto da opressão, desapropriação e racismo contínuos do estado de um momento em particular, onde Ahed está batendo no soldado… É uma opressão estrutural, é uma história de opressão, é um legado. O único jeito de uma criança sobreviver a isso é dizendo ‘Este é meu espaço’, defendendo isso de diferentes maneiras”.
As forças e tribunais israelenses, previsivelmente, não são muito tolerantes com a resistência palestina. Em 2015, o Knesset israelense aprovou uma sentença padrão de 20 anos para quem for pego atirando pedras. Mesmo antes disso, em 2013, um estudo da ONU concluiu que o abuso de menores palestinos no sistema de detenção militar em Israel é “amplo, sistemático e institucionalizado”.
“O terrorismo diário do estado é o que deveria ser enquadrado como terrorismo”, diz Shalhoub-Kevorkian, “não as reações ou ações de crianças que estão tentando encontrar um modo seguro de acessar sua casa, de proteger sua casa, proteger sua escola e seu bairro”.
Ou, como ela disse depois: “A questão não é se as crianças jogam pedras num veículo militar. A questão é: o que um veículo militar está fazendo num bairro palestino?”
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