Música

O Criolo deixou de flerte e lançou um profundo olhar para o samba

É isso aí, o Criolo se rendeu à uma antiga vontade e fez um álbum inteiro de samba. Parece ter sido um jeito que ele encontrou de reverenciar as primeiras coisas que o impactaram na infância. Talvez a sua passagem pelo Pagode da 27 seja o fator responsável por incorporar à obra uma cadência vocal bem de raiz, acompanhada pela forma e produção das músicas. Espiral de iLusão soa como se os caras estivessem tocando no seu quintal, com aquele clima gostoso bem de bairro e de celebração entre amigos.

Nas letras, rola emoção, melancolia, paixão, alegria e protesto. Um certo prosear — naturalmente trazido dos anos dedicados ao rap — faz a diferença e mostra o que ele tem de melhor para contribuir com o tradicional estilo. O trabalho resulta novamente da longeva parceria dele com Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, responsáveis pela produção musical e os arranjos. Mas é claro que a lista dos talentos que colaboraram para a qualidade do álbum é maior. A banda montada é muito boa e o peso dado a ela na gravação a beneficia justamente.

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Criolo expandiu o terreno fértil para expressar suas ideias. Ele se aproveita bem disso e, nos pontos altos do disco, faz poesia com tudo o que pode. Canta a tristeza em “Dilúvio de Solidão”, o amor, em “Lá Vem Você”, e se politiza em “Menino Mimado“.

Nos encontramos dia desses pela manhã para falar sobre um pouco de tudo o que reflete e se reflete em seu novo trabalho. Veja por onde a conversa caminhou:

Noisey: É conhecida a sua antiga paixão pelo samba. Até porque você sempre teve a referência do samba em casa desde pequeno, por meio dos seus pais. Fala um pouco disso.
Criolo: Em casa sempre teve samba, como sempre teve vários outros sons. Minha mãe era apaixonada pelo Raul Seixas, Luiz Gonzaga, Nat King Cole, Nelson Gonçalves. E meu pai sempre gostou do Moreira da Silva, Bebeto, sempre foi louco pelo Martinho da Vila. Então tinha um pouco de cada um desses universos lá em casa. Fora as músicas da época, né, que a gente escutava aquela rádio AM, e na televisão, o que tinha de tema de novela era o que passava na rádio, e raramente tinha algo diferente. Vivíamos esse rolê sonoro tranquilo. A gente sempre curtiu, mas eu não sou um estudioso do samba. Do mesmo jeito que meu pai também não. Ele não é, por exemplo, um colecionador de vinis de samba que sabe falar da história tal… Ele simplesmente é um cara que curte. Tranquilo. Nós sempre escutamos samba desse jeito. Em casa, meu irmão toca violão, meu pai nunca tocou instrumento musical. Nunca rolou em casa aquele samba de domingo, de reunião entre amigos. Acho que rolou agora esse disco por conta de ter alguma coisa pra dividir, apresentar às pessoas. Até agora não tinha algo que valesse juntar todo o lance e apresentar para um álbum.

Então todos esses sambas são uma coleta que você fez de composições criadas ao longo do tempo?
Eu sempre escrevi alguma coisa de samba, a vida toda. Digo, de 1994 pra cá. Num determinado momento da minha vida, entre 2009 e 10, escrevi um tanto a mais de sambas. E isso ficou guardado. Ficou esse momento. Aí agora no final de 2016, entre setembro/outubro, veio muita coisa pra mim de desabafo, sentimento, e estava vindo em samba. Não que eu tenha escolhido. É do mesmo jeito que vem a emoção e eu faço um rap. Foi esse caminho. E acho que essa força de agora se conectou com a energia de 2010. Essas coisas se encontraram e as pessoas ao meu redor começaram a sentir essa energia também. A grande surpresa pra mim foi a parada vir agora e o sentimento desaguar desse jeito. E eu não reprimi isso, deixei acontecer, como sempre faço com os raps, com qualquer coisa que me visite. Aí aconteceu das pessoas ao meu redor sentirem essa energia e me mostrar que eu tinha alguma coisa ali que de repente dava pra fazer, já que era um sonho meu antigo. Mostrei o que eu tinha pro pessoal escutar e foi esse caminho que seguiu.

Curti as vozes, remetem aos sambas mais tradicionais. Você estudou algumas referências?
Os vocais são total influência do que eu escutava em casa. Minha mãe escutava muito Nelson Gonçalves, Aguinaldo Timóteo, Aguinaldo Raiol, Vicente Celestino e outros grandes seresteiros. E você, criança, fica copiando o que a sua mãe está cantando. Você quer cantar junto, no seu microuniverso ali. O Ganja e o Cabral tiveram a sensibilidade de respeitar essa memória. O Ganja, pelo que me lembro, fez a direção de um show, uma vez, do Bezerra da Silva. E o Cabral tem uma história linda, né. Grande mestre. Juntaram os dois mais uma vez pra entender o que eu estava levando ali. Eles respeitaram e preservaram muito essa memória.

É muito louco pensar que numa época em que o rap está tão avançado você chega com um álbum que busca sua essência numa sonoridade de raiz.
Mas eu também sou louco pelos sintetizadores. Sou apaixonado, eu adoro. Tenho até umas coisinhas em casa de sintetizador, baixo, dos anos 80, que é uma satisfação pra mim. É até um momento de esquecer um pouco, dar uma relaxada na mente, ligar aqueles poucos equipamentos que tenho e ver que som sai. Acho sensacional! Pô, o que os caras fazem hoje em dia é muito louco. É que é uma outra parada. É um momento particular. Não estou querendo ir no caminho contrário ao que o rap está seguindo. Não foi pensado desse jeito. Essas emoções simplesmente desaguaram nessa sonoridade e a gente está respeitando isso.

Você se lembra da primeira música de rap que lhe impactou?
O que me influenciou muito no rap, o marco zero, foi na quinta série, quando um amigo fez um verso e eu descobri que as palavras rimavam. O moleque de 11 anos mandou uma rima, eu pensei: “Não é possível, mano, isso é real? Isso é uma mágica! O que está acontecendo? Quem inventou isso?” Aquela sensação de ouvir algo pela primeira vez na vida e trazer isso pra si. E depois de um tempo, o fato de eu ter escutado na rádio uma música muito comprida em que tudo rimava. E aquele texto parecia que falava da minha casa, do meu bairro, das coisas que meu pai chegava em casa reclamando do trabalho. E aquilo se chamava rap. A influência que eu tive era aquilo, eu não tinha uma dimensão. Não sabia da história do rap, que nasceu nos Estados Unidos e etc. Eu tinha 12, 13 anos. Pegou pelo lance do que o cara estava rimando. Mais tarde é que eu fui saber uma coisinha aqui, outra ali. Na nossa época, pra você saber alguma coisa, alguém pegava uma fita VHS pirata. Um som seu, pra chegar no outro bairro, demorava dois, três meses. Eu me joguei completamente nessa arte. O rap era o que eu queria pra mim. Eu quis escrever. Ficava o tempo todo escrevendo, escrevendo, escrevendo… O que é maravilhoso! Se aquilo mexe com você, de algum jeito você responde, tem uma reação. Isso é estar vivo. O samba veio muito de um outro jeito. E entender a força do samba, o quanto isso é importante pra gente, veio com o tempo. Pegando mais idade, escutando um pouco mais, conhecendo outras pessoas.

Foto: Caroline Bittencourt

A longa passagem pelo rap de certa forma se reflete em algumas rimas desses sambas.
Fica um tanto do meu jeito de cantar rap no samba porque são 30 anos escrevendo rap e acho que juntou esse samba das antigas, pela memória afetiva, com o olhar que eu tenho do mundo, das coisas que me emocionam e o que eu gosto e desgosto. E de como eu gostaria de contribuir para que as coisas mudem para melhor. Às vezes é algo mais interno, às vezes externo, longínquo ou próximo. E dá essa junção.

Quais são os seus álbuns fundamentais de samba?
Cara, Moreira da Silva, por conta do meu pai. Tinha dois, três vinis lá em casa. E tem muito vinil do Martinho da Vila, e as músicas do Benito de Paula. Umas canções que são muito especiais. Isso que meu pai trouxe pra dentro de casa, ficou forte.

Como foi o processo de elaboração das bases, do instrumental, em cima das melodias e letras que você já tinha?
A gente trouxe as músicas. O Cabral se encontrou comigo um dia pra harmonizar, ouvir o que eu estava cantando, ver onde estavam as notas… o Ganja estava num baita corre. Depois disso a gente se reuniu e apresentou pra banda que o Cabral e o Ganja montaram.

Sobre a letra em que você diz: “Meninos mimados não podem reger a nação”. Como você vai reagir se o nosso próximo presidente for mais um menino mimado?
Eu acho que isso seria muito triste, não consigo nem mensurar. Isso não pode acontecer. Não vai acontecer. Você carrega sequelas do mau que lhe oferecem, né. É muito louco, a pessoa fala, “Isso aqui é importante fazer”, mas ela não tem ideia do quando isso mexe dentro de cada família, de verdade. Meu pai sofreu muito, cara. Eu vejo por ele, pelos meus avós. É um momento sombrio. Eu vejo hoje uma velocidade diferente, de 20 anos pra cá, de comunicação, de como enxergar mundo, de como os jovens se reúnem e o quanto eles estão abertos pro debate. O quanto eles não têm vergonha de demonstrar seus desejos, vontades, e estão afim de verdade de contribuir. Há uma velocidade muito saudável e, ao mesmo tempo que tem isso, tem um monte de coisa que simplesmente ignora completamente. Quem está regendo o país parece que ignora completamente essa mudança. E essa mudança veio do povo, não veio da mão deles. Por eles não mudaria nunca porque está bom pra eles.

Mas você acha que o povo tem voz quando nenhuma das demandas pedidas nas manifestações de 2013 para cá foi atendida? A tarifa do ônibus já subiu duas vezes…
Tudo foi levantado do povo. Se o povo não fala, não faz um escarcéu, não mostra a ferida aberta… E mesmo assim ignoram completamente, criam caminhos pra dizer que é um exagero, ou pra enfraquecer. É muito louco você ter a audácia de enfraquecer o querer do outro, a dor do outro. Aí eles criam mil caminhos pra esfarelar isso, pra boicotar. É muito doloroso, cara. E são meninos mimados, têm uma mente mimada: tem que ser do jeito deles, na hora deles, e, se tiver alguma mudança porque a população está indo pra cima, eles vão manobrar afim de que isso seja positivo pra eles.

Você teme pela eclosão de algo mais calamitoso nos protestos daqui, tipo na Venezuela?
A luta armada já acontece, é só você pegar os números da Secretaria de Segurança Pública de todos os estados e fazer uma conta de quantas pessoas morrem por ano e quais os motivos. Quantas pessoas são assassinadas ou perdem a sua vida em situação banal. O tanto de violência doméstica que acontece. Qual o número disso? Isso já está acontecendo. Agora, o grande lance é que entender da Lei e saber manobrá-la é uma arte de poucos, e eles sabem muito bem fazer isso. E eles vão criando o caos no país com a lei pautando. Acham-se umas brechas na lei e não se tem o que fazer. Não adianta correr, os extremos sempre vão se encontrar. Cada um com a sua questão, cada um com o seu porquê. Nós temos um menino que está até agora esperando a sua liberdade, o Rafael Braga. Porque falaram que ele estava fazendo tal coisa lá no Rio de Janeiro naquele momento, e que ele era um problema, um perigo pra nação. E nós estamos vendo várias pessoas hoje conseguindo algumas coisas pautadas na lei e aguardando em casa o que vai acontecer com elas. Enquanto não houver um diálogo real, uma mudança real de como se pensar a política, fazer a parada ser diferente, não adianta. É enxugar gelo. Tudo vai dos interesses. Quem leva você ao poder, e os interesses que existem nesse grande jogo. Enquanto não se criar mesmo, de verdade, um mecanismo de proteção, a sociedade vai ficar à mercê desses meninos mimados, e vai ser desse jeito mesmo. Até o que é televisivo está dentro de um interesse. Agora, no meio disso tudo, você não pode abrir mão de um ponto de serenidade. Porque se não tiver um ponto pra respirar você vai explodir. É isso o que querem: que você perca a cabeça e dê de bandeja o motivo pra ser enquadrado.

Bem, acho que você está num grande momento de sua carreira. E você também deve ter consciência disso. Quando pensa em tudo o que já rolou, como lhe cai essa ficha?
É um bagulho meio surreal, porque até então o sonho da gente era cantar no bairro vizinho e ver se a música rolava no Espaço Rap, na 105 FM. Isso gera um sonho muito distante. E venho de uma época que não tinha internet, era orelhão de ficha, que só tinha na avenida principal. Antes disso a fita K7. Eu sempre acreditei em mim, mas onde isso ia dar, nunca imaginei. O que aconteceu, eu nunca imaginei. Sempre acreditei nesse sonho. Aí aos poucos você vai experimentando coisas, as coisas vão acontecendo, e você vai vivendo. Nunca pensei que pudesse viver esse momento. Cantar com Milton Nascimento, fazer uma turnê a convite dele. É surreal. O Ney Matogrosso gravar um bolero seu, o Tom Zé gravar um samba, Gero Camilo gravar um forró. O Chico Buarque dá um salve. Cantar com o Caetano “Não Existe Amor em SP”, em 2011… O Mano Brown, do modo mais humilde do mundo, participar do meu DVD com o Emicida, estar ali com a gente. É muito especial mesmo. Poxa… Participar do disco de inéditas do Adoniran. É muito dessa força, essa energia, de muitas pessoas que vão passando pela sua vida e te dando um salve. Te ensinando, apresentando coisas. O Marcelo Cabral e o Daniel Ganjaman me ensinam muita coisa. Não só na parte de música, mas muita coisa. Assim como a amizade, o carinho e a irmandade com o DanDan, que é o Cassiano Sena, da Discopédia, há 24 anos. É uma grande energia de muita gente, porque simplesmente é assim. Não sei como seria se fosse de outro jeito. E está indo assim.

Ouvi dizer que você também teve uma fase meio Rock Brasil 80, é real essa parada?
Na minha adolescência?! Legião Urbana?! Viissh! Não tem o que falar, aquilo me emocionava muito. “Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou… Temos todo o tempo do mundo.” Isso é maravilhoso, cara! Tem coisas que você vai sacando o olhar dos caras pro mundo, e na primeira fase da adolescência começa a perceber que existem olhares. E que você também pode olhar pras coisas e ter opinião. E dar a sua ideia. Porque a gente vem de um ambiente de muita repressão. Seu pai não pode falar, ele tem que estar na fábrica, tem que bater o cartão, e se não fizer hora extra perde o emprego. Testemunhei isso anos e anos, o jeito como ele chegava em casa, o estresse que era. Na escola, até hoje a carteira tem que estar atrás da outra. Eu tenho que olhar pra sua nuca, não posso olhar os seus olhos. São pequenos gigantescos detalhes de uma construção de opressão. Quando escuto a música a parada já vem, vem muita coisa. É sensacional, cara. Isso aí é vida, é emocionante, tá ligado?

O que mais você escuta que a galera às vezes nem tá ligada?
Estou sempre escutando música. O Verocai pra mim é monstro. Aí do Verocai eu vou pro Beastie Boys, pras clássicas do Wu Tang Clan. De repente, do nada você está escutando Bahia Fantástica, do Rodrigo Campos, uma obra-prima. Mano Money’s, lá da quebrada, que é monstro. Sua mãe vem e já coloca um Luís Gonzaga… viissh! E acho que a parada pega também da relação que você tem com cada pessoa que te traz esses sons sem imposição. Sempre na intenção de dividir algo que gosta. Eu acho maravilhoso você escutar uma orquestra, emociona. Eu não vou saber falar daquilo, mas você se permite curtir. Tudo vem de como te apresentam aquilo. É muito chato quando alguém fala que aquilo não é pra você nas entrelinhas. O que difere é a estrutura que se dá pra cada pessoa, a condição social de cada um. Precisa haver acesso.

Tendo nascido em 75, você certamente pegou a onda dos bailinhos…
Bailinho de colégio foi fator total de influência pra mim. Os DJs que faziam as festas nas ruas. Independentemente de ter quermesse ou dia das crianças, eles sempre tinham o prazer de ligar as caixas, colocar o vinil pra rolar e te falar o que era cada coisa. É a tua escola musical.

Quer deixar um salve ou uma reflexão pros leitores?
Força pra lutar, serenidade pra respirar e ter um pensar melhor. Porque eles já são bem alimentados e muito bem articulados e apadrinhados. O ser humano não descansa, é da nossa natureza querer construir. Meninos mimados não podem reger a nação. Eles já quebraram tudo. O que mais querem destruir? Já arrancaram a nossa alma, e agora querem moer os nossos ossos. Não podemos perder a fé!