Onde está a política radical de ‘Cyberpunk 2077’?

Cyberpunk 2077 já vem ali dobrando a esquina e seu trailer na E3 2018, além de relatos da demonstração a portas fechadas pra imprensa, deram início a um debate sobre o que de fato é cyberpunk no mundo dos games.

Muitos acreditam existir um cyberpunk ideal, puro, original que vai muito além das luzes de neon e braços robóticos que povoam muitos de nossos games do gênero. No fundo, alguns esperam pela política “punk” que existiu no cyberpunk que veio antes, e depois contra as referências à Blade Runner e trilhas sonoras cheias de zumbidos em qualquer filme ou game. Estaria Cyberpunk 2077 só metendo uma mecânica de primeira pessoa em um design já comprovado? Nos tiraram a política por trás dos console cowboys agora que se encontram por toda parte?

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A verdade é que talvez não tivesse tudo isso de “punk” ali desde o começo.

Se há um momento cyberpunk original, provavelmente este seria a publicação de Neuromancer de William Gibson em 1984, ganhador dos prêmios Nebula, Hugo e Philip K. Dick. Lançado no começo dos anos 80 junto a Blade Runner (1982), Tron (1982), Fuga de Nova Iorque (1981), Videodrome (1983), Akira (1982) e mais uma porrada de obras importantes pós-70, o romance de Gibson fazia parte de uma nova onda da ficção científica que se voltava para algumas tendências midiáticas da época. Acredito que tal foco nestas tendências foi o que ajudou um apanhado coerente de ideias chamadas “cyberpunk” a emergirem.

A primeira destas ideias lida com a relação entre o indivíduo, a tecnologia e a sociedade na forma de Neuromancer, que acompanha as desventuras de dois personagens, Case e Molly. Case é um hacker (ou console cowboy, como dito no livro), daqueles que passa na surdina pelas barreiras tecnológicas que a maioria das pessoas nem sabe que existem. Molly é uma espécie de traficante e também uma assassina cujas unhas, pele e glândulas foram transformadas em armas contra o mundo ao seu redor. São mais dois entre milhões de freelancers que usam a tecnologia no cotidiano para reescrever as leis do mundo futurista (não tão distante) em que vivem.

A segunda ideia é de que poder acumula mais poder. As grandes corporações em Neuromancer são entidades eternas que criam produtos e usurpam nações. Não restam dúvidas de que as famílias, megacorporações e organizações criminosas que mandam no mundo continuarão a fazê-lo; se o poder atrai ainda mais poder, então há menos disponível para os outros, e em Neuromancer (bem como todas as outras obras mencionadas anteriormente) sugerem que a melhor coisa que alguém pode fazer é tentar sobreviver. Talvez consiga obter um pouco de poder para si e dar cabo de um vilão qualquer, mas a estrutura das forças vigentes te dará um chute no rabo aconteça o que acontecer. Você pode tentar pegar a grana e sair correndo, mas logo um assassino da Yakuza criado em laboratório vai te encontrar.

A segunda metade do Século XX foi, sendo bem franco, uma desgraça para muitos. A Guerra Fria se apresentava com violentos e drásticos efeitos em países pelo mundo, graças às operações secretas e outras nem tanto perpetras por Estados Unidos e União Soviética; o nacionalismo reinava em diversos países, muitas vezes com consequências genocidas. Nos EUA, movimentos de cunho progressista tiveram algumas grandes vitórias antes de perderem força e serem abandonados pelos políticos que haviam chegado ao poder para representá-los. A economia afundou ao longo dos anos 70, a influência norte-americana aparentava estar enfraquecendo e a guerra parecia sempre prestes a bater na porta.

Como escrito por Dante Douglas do Paste, “Os primeiros romances cyberpunk dos anos 80 viam um future sombrio, povoado por megacorporações que eventualmente engoliriam as nações onde surgiram”. Nesta vasta rede de conexões e acúmulo de poder, o que poderia um único indivíduo fazer? Os questionamentos de Deckard quanto à humanidade, os aprimoramentos para a sobrevivência de Molly Million e o niilismo total de Snake Plissken surgem a partir daí. Pessoas são pequenas, quase nada diante da força do átomo, da Guerra do Vietnã, da insegurança social e dos mercados globalizados.

Juntando uma dose saudável de influência da Nova Onda da ficção científica e o trabalho de autores como Alfred Bester e Philip K. Dick, o cyberpunk é o mix perfeito das ansiedades do final do Século XX. É algo melancólico, ainda que esperançoso para o indivíduo. Ganhar eleições não faz parte do cenário, mas meter fogo em algum chefão da máfia e lucrar uns trocados? Aí rola.

Então qual a relação entre estética e política no cyberpunk? Mesmo que deixemos de lado os filmes que influenciaram o movimento, os romances estão cheio de apetrechos que permitem a hackers voarem pelo cyber-espaço, drones controlados por corporações multinacionais suspeitas, implantes cibernéticos, locais em ruínas, estações espaciais neomodernas e mais um monte de imagens maravilhosas que exigem que prestemos atenção.

Um braço robótico raramente é só um braço robótico; ele é também o derivado de uma nação ou corporação que te ataca com lasers cortantes. Os mundos das obras cyberpunk se dividem em termos visuais e como seus locais e pessoas aparentam e se relacionam nos revelam tanto quanto qualquer diálogo ou texto. Roy Batty lutou contra Deckard em um apartamento podre enquanto discutia a inevitabilidade da morte e da finalidade das coisas. Nestes primeiros trabalhos cyberpunk, a estética não está lá só pra servir de decoração, muitas vezes ela é a responsável pelo trabalho pesado da narrativa.

O cyberpunk surge num momento logo após a aceleração do capital de finanças, em que o crescimento econômioco passa a lidar com o número de transações que se pode supervisar e não quantos objetos podem ser produzidos. O capitalismo fica mais espalhafatoso, mas para muitos residentes dos países onde o cyberpunk surgiu, as indústrias que outroram serviam como símbolos da pujança econômica, sumiram. O maquinário se tornara invisível.

Então tudo começou a degringolar com o surto de investimentos movidos à cocaína e hedonismo dos anos 80. Foi esta cultura que criou Patrick Batemans e Jordan Belforts. Este é o mundo dos freelancers, jet-setters, daqueles que pulam de consultoria a investimentos e uma posição acadêmica sem pausa pra respirar entre estas. Seja lá o que for você irá fazer, tudo depende de certa engenhosidade e em que ponto você se encontra na grande máquina econômica; o neoliberalismo, cujos princípios econômicos se baseiam em individualismo puro aliado à destruição do trabalho público e conceito de bem-comum, impera.

Não há diferença entre aparência e substância aqui.

Não há diferença entre aparência e substância aqui. Todos são atomizados ao nível individual e não há como voltar. Você age apenas considerando o próprio bem, mesmo que faça parte de um grupo, porque no final, só dá pra confiar em si. Política e estética são uma coisa só, e isso ocorre porque nenhuma das duas leva a lugar algum. A “lição” contida nestas primeiras obras cyberpunk é que talvez você se safe com a grana, mas se o fizer, será sozinho. As vielas são escuras e o neon cria sombras arroxeadas; você terá que cuidar daquele braço robótico sozinho, então talvez seja uma boa hora pra se especializar em micromecânica.

O crítico de ficção científica Darko Suvin certa vez disse que o leitor ideal de cyberpunk deve ser “uma espécie de especialista em mídia global” que vive “à base de prosperidade capitalista multinacional. Estas pessoas vão contra, mas vivem dentro do sistema; e o sistema não lhes permite vislumbrar seus mecanismos”.

Como disse antes, a estética e política do cyberpunk estão profundamente entrelaçadas e ainda temos muito trabalho pela frente pra derrubar tudo aquilo que usa esta estética de forma “errada”. Imagino se em nossos sonhos de divisão do átomo da política e estética, da compreensão de que obras cyberpunk acertam, não são só uma desculpa para não ter que lidar com o fato de que liberação e opressão são dois lados da mesma moeda naquele momento de nascimento do gênero. Claro, você pode muito bem se tornar o empreendedor dos seus sonhos, mas não há esperança alguma para mudanças estruturais de grande porte no momento em que o cyberpunk nasce.

É muito mais fácil discutir o que é canône ou não, ou qual versão do gênero que amamos é a “certa” do que ter que confrontar o fato de que talvez seu ponto de origem seja um que nos tire toda a autonomia, nos desafiando a não sonhar, agindo ativamente para que continuemos justificando a distopia em vez de trabalharmos juntos na construção de algo novo.

Em 1992, durante a década em que cyberpunk foi passado adiante e o Muro de Berlim caiu, a acadêmica Nicola Nixon tinha alguns pensamentos negativos sobre o cyberpunk e o que este nos reservava. E se os console cowboys e razorgirls não fossem personagens a serem emulados? E se forem resquícios da mentalidade de Reagan que passaram pelos anos 80 com seus sobretudos?

“A fusão entre apreciação estética e boa política”, escreveu “surge, em certos críticos, como uma satisfação de desejos esquerdistas; o que, em outras palavras, significa que se alguém gosta daquela ficção, ela necessariamente tem que envolver a articulação de um projeto revolucionário perceptível”.

Seus pensamentos assombrosos de quase 30 anos atrás nos deveriam servir como uma pausa ao discutir se um game cyberpunk “acerta” ou não. Acertar, quando se fala daqueles projetos cyberpunk originais, talvez tenha servido de lição sobre como falar sobre algo que nunca esteve ali de fato.

Ao final dos anos 80, os fragmentos deste proto-cyberpunk foram declarados como parte de um gênero, e aquilo que uns chamam de excesso, pode ser encarado como um florescer para outros. As ruas encontram seu uso para as coisas; as pessoas só pegaram as ferramentas deixadas ali pelas outras obras e criaram em cima daquilo.

Vêm à mente jogos de tabuleiro como Shadowrun e Cyberpunk, que colocam os jogadores no papel de personagens vulneráveis, ainda que aprimorados, em um mundo desesperançoso em que, talvez, eles consigam seu final feliz. Ghost In The Shell extrapolou o cyberpunk até seus limites, denuncianbdo nossas concepções tradicionais sobre o corpo e eu. E nos trinta anos seguintes, vimos a ascensão do pós-cyberpunk e solarpunk como maneiras de criar que atuam junto de forma explícita as estas mesmas temáticas principais envolvendo humanos, tecnologia e o poder que emana quando estas coisas se colidem. O ensaio de Rani Baker sobre como jogos de tabuleiro cyberpunk lidam com a vida trans é emblemático de como o gênero trata tudo que está além de seu foco original: ele possibilita oportunidades, mas muitas vezes fracassa em explicá-las ou enquadrá-las de maneiras realmente progressistas.

O cyberpunk enquanto gênero tem uma história de mais de 40 anos, e sempre que surge, acabamos entrando nos mesmos debates do que ele significa e se alguma nova obra fez tudo do jeito certo, uma causa perdida ao levarmos em conta que o momento de surgimento do gênero se deu em um período comprometido do ponto de vista político, escrito para os jet setters dentro de nós que odeiam a máquina onde trabalham e são incapazes de imaginar uma mudança estrutural ampla. A estética é a política, mas as pessoas conseguiram mudá-la rumo a objetivos que não são nillistas e derrotistas, mas que abandonam o cyberpunk “original” e o que “significava” para fazer algo completamente diferente e novo.

Esta matéria foi originalmente publicada no Waypoint.

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