O Spotify reduziu volume das músicas para acabar com hegemonia do som altão
Immagine: Flickr

 / Orin Zebest / Composizione: Jason Koebler

FYI.

This story is over 5 years old.

Motherboard

O Spotify reduziu volume das músicas para acabar com hegemonia do som altão

Seus ouvidos agradecerão o fim da "loudness war".

No final de maio, o Spotify promoveu uma mudança em seus arquivos musicais que passou batida por quase todos os ouvintes do serviço. Coube a engenheiros de som, ratos de estúdio e gente com ferramentas apropriadas detectar que o nível de volume de tudo aquilo que é tocado na plataforma foi reduzido.

Usando software específico, esses caras fizeram medições em playlists populares, como a Top 50 Global e em discos de diversos estilos, do soul ao metal, e sacaram que algo está diferente. A conclusão é a de que o Spotify reduziu o "loudness" aplicado aos arquivos que tocam em seu serviço.

Publicidade

E aqui vale a explicação: "loudness" é um termo em inglês sem tradução direta para o pt-br quando falamos de som (nem tente "barulho", amiguinho). Ele é usado para descrever a percepção humana de um volume sonoro. "A amplitude de uma onda sonora está para a temperatura, assim como o loudness está para a sensação térmica", compara o produtor brasileiro Pedro Luce, do Freak Estúdio. Quando a gente ouve algo, portanto, o que vale é a percepção daquele som, e não os valores que podem ser apontados por um decibelímetro.

Foi só em 2011 que a União Europeia de Radiodifusão, uma das principais entidades de radiodifusão no mundo (sim, ela não tem relação com aquela União Europeia e tem membros ativos de outros continentes), estabeleceu pela norma EBU-R128 uma unidade de medida de loudness, batizada de LUFS (sigla para Loudness Units relative to Full Scale). Trata-se, a bem dizer, de uma unidade de medida mais inteligente para entender a percepção humana de volume.

Ao contrário do RMS, medida usada para determinar o volume médio de produções audiovisuais, o LUFS ignora as frequências baixas e valoriza as médias e altas acima de 2 kHz — região mais sensível para os nossos ouvidos. Um grito, por exemplo, dá mais sensação de volume do que um contrabaixo, ainda que o RMS aponte números mais elevados para o instrumento (e os graves pesam muito na medida antiga). Isso acontece porque a voz humana fica na região média.

Publicidade

Para os nossos ouvidos, o baixão não importa tanto, e os algoritmos que determinam os LUFS trabalham justamente da mesma forma. A medida foi criada para tentar emular como funciona a nossa audição.

O que os engenheiros de som gringos constataram é que o Spotify reduziu o índice de LUFS de tudo aquilo que toca em sua plataforma de -11 LUFS para -14 LUFS, número parecido com o que já havia sido constatado em concorrentes como o YouTube (-13 LUFS) Tidal (-14 LUFS) e Apple Music (-16 LUFS). Na prática, o volume para os ouvidos humanos estará mais controlado, mas é possível que você nem perceba a mudança. Então, qual é a importância disso?

SOM MELHOR

Inicialmente, a publicação da norma EBU-R128 não visava plataformas de streaming e o mundo da música. A intenção era normalizar os padrões sonoros daquilo que é exibido na TV. Sabe aquele lance de um comercial mais alto do que o outro? Ou diferenças nos volumes entre programas e anúncios? A intenção era acabar com essa patifaria e botar um teto naquilo que é exibido pelos canais de TV. O número escolhido foi -23 LUFS.

A TV brasileira foi obrigada a adotar o mesmo valor a partir da publicação da lei 12.810 de 15 de maio de 2013. Na Globo, o padrão passou a valer a partir de 31 de julho daquele ano. O papo sobre o nível de loudness em plataformas de streaming começou a se intensificar a partir de 2016. E ele é importante, já que tem potencial para melhorar a qualidade daquilo que ouvimos.

Publicidade

Uma das principais técnicas para turbinar a percepção de volume de uma música é por meio da compressão. Ela pode ser realizada com hardware ou programas específicos durante a masterização. Como o nome indica, a técnica comprime a onda sonora; assim, coloca um teto nos picos das ondas e promove ganho nas partes baixas. Imagina pegar um eletrocardiograma e apertar aqueles risquinhos para que as partes mais altas e mais baixas fiquem mais niveladas.

"Ao tentar soar alto, eles acabam com a qualidade do som"

"Se você comprimir uma orquestra, quando o cara estiver tocando sozinho um violino mais fraco, você vai ouví-lo bem alto. Quando o resto dos músicos entrarem com os seus instrumentos, você vai ouvir tudo com a mesma intensidade", explica Luce. Ou seja, a compressão intensifica os momentos mais calmos e vazios da música.

Já deu para perceber o problema, né? Uma música é feita de momentos mais calmos e mais agitados. Na vida real, um violão sozinho não tem a mesma intensidade de quando a bateria entra. Quando a compressão ocorre de maneira exagerada, torna tudo mais alto, o que acaba roubando a dinâmica da música. É como ouvir aquele parça que fala gritando o tempo todo. Além de incomodar, torna-se monótono.

"Na produção nacional existem estilos abusando da compressão. Na música sertaneja, dentro dos artistas no mainstream, têm muitas produções e mixagens que são bem distorcidas. Você ouve o som da voz abafado. A bateria parece que o cara está tocando com um palitinho de dente. Isso tudo é resultado de um áudio muito comprimido e limitado. Ao tentar soar alto, eles acabam com a qualidade do som", diz o produtor Nando Costa.

Publicidade

Mesmo sabendo disso, produtores, artistas e gravadoras preferem apostar no som alto. Ou seja, cheio de compressão. Isso ocorre porque, entre eles, há a preocupação de que uma música se destaque quando comparada ao trabalho de outros artistas. Infelizmente, para uma boa parte dos ouvidos leigos, som alto é sinal de qualidade. Essa disputa para ver quem tem as músicas mais altas deu início a "Loudness Wars".

A corrida pelo volume mais alto acompanhou o surgimento da era digital na música, quando os CDs se tornaram a principal forma de distribuição do som. Antes disso, quando o vinil reinava, havia uma limitação física que não permitia turbinar a compressão. Um disco que produzisse som muito alto poderia fazer a agulha pular, arruinando toda a experiência musical. Quando o CD surgiu, esses limites acabaram. É como se tivesse surgido uma estrada sem limites de velocidade, e a compressão começou a ganhar ainda mais espaço.

Além disso, na era do vinil, o normal era ouvir um álbum inteiro do mesmo artista. A comparação imediata entre trabalhos não existia, então não havia necessidade de fazer uma faixa se destacar da outra pelo volume. Essa ideia começa a se corromper com o CD, quando fica mais fácil trocar de disco no rádio, e ganha força total com os tocadores de MP3, que introduziram o botão para tocar músicas aleatoriamente. Ao chegar na era atual das playlists, é difícil encontrar gente que escuta duas canções do mesmo artista na sequência. O resultado é que a música produzida no mundo ficou mais comprimida e mais alta. Veja abaixo esse gráfico reproduzido pelo site Sample Magic.

Publicidade

Gráfico mostra o índice de volume de discos entre 1965 e 2013.

Para piorar, falta de dinâmica não é o único efeito colateral da compressão excessiva. Ao colocar um limite na onda sonora, o processo causa deformações nela, o que pode gerar distorções na música. "Quanto mais o compressor trabalhar, mais ele vai causar a sensação de distorção na música", diz Costa.

Um dos discos que simboliza as cagadas da compressão extrema em função de ganho de volume é "Death Magnetic", do Metallica. Na época do lançamento, em 2008, muitos fãs perceberam e reclamaram da massaroca sonora no disco: sem dinâmica alguma e com muitos pontos de distorção. Para piorar, meses depois, a banda lançou o game "Guitar Hero: Metallica" que tinha versões remasterizadas, mais baixas, das mesmas músicas - afinal, era preciso normalizar o som dos diferentes álbuns da banda para o jogo.

Pesquisadores do Hospital Universitário de Copenhagen, da Universidade Técnica da Dinamarca e da Universidade de Aalborg publicaram um estudo que comparava as duas versões do disco. Abaixo, é possível ver a comparação de um trecho de 30 segundos da música "My Apocalypse". Repare como a banda conseguiu atingir a chamada "brick wall compression", um bloco de som sem dinâmica alguma.

Ao reduzir o índice de LUFS, o Spotify está dizendo para a indústria da música que não adianta tentar ganhar no berro. Tudo aquilo que tocar na plataforma estará no mesmo nível. Mesmo que algo seja masterizado bem alto, o volume será reduzido automaticamente. Claro, isso serve para normalizar a plataforma, como as TVs fizeram com os seus comerciais, mas, além de beneficiar o próprio serviço, o Spotify forçará a indústria a trabalhar de outra forma. As músicas terão que chamar atenção por outros aspectos que vão além do volume. A porta para sons mais dinâmicos está escancarada.

Publicidade

"Se você tiver um áudio muito comprimido, ele ficará menor pela falta de dinâmica. Quando você abaixa o loudness desse som, você tem a sensação de que ele toca muito mais baixo", explica Costa.Em outras palavras, as músicas com loudness acima de -14 LUFS soam mais baixas ao entrar no Spotify comparadas com aquelas que foram comprimidas abaixo do número mágico e entram na plataforma. O Nando Costa faz essa comparação no vídeo abaixo entre uma artista nacional masterizada por volta de -13 LUFS e uma música do Metallica do "Death Magnetic" (assista a partir de 40:30). Na época do vídeo, o padrão de normalização do Spotify ainda era -11 LUFS e a música também não havia sido masterizada especificamente para a plataforma, no entanto, ela se comportou muito melhor que o som dos vovôs metaleiros.

Neste site, é possível ver graficamente o que acontece quando uma música muito alta tem o volume abaixado ao entrar no Spotify.

"Às vezes a música não é ruim só por causa da composição, mas pela forma como é apresentada", crava Costa. Assim, o Spotify ajuda a botar um fim na Loudness Wars, o que deve gerar músicas com melhor qualidade de forma geral, com mais dinâmicas e com áudio mais limpo. Mas essa não é o único resultado do novo volume do Spotify.

PARA EVITAR A FADIGA

Sabe aquele alívio que sentimos ao parar de ouvir música e experimentar toda a paz do silêncio? Isso acontece até com quem ama escutar um som e está ligado a um fenômeno conhecido como fadiga do ouvinte (ou fadiga do ouvido). "Os efeitos de fadiga são super conhecidos, embora nem sempre as pessoas vinculem esses efeitos com o nome fadiga", explica a Dra. Tanit Ganz Sanchez, professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e fundadora do Instituto Ganz Sanches (especializado em tratamento auditivo). Entre os sintomas estão cansaço, irritabilidade, insônia e aumento de pressão.

A médica explica que temos um mini músculo cuja função é proteger o nosso aparelho auditivo, chamado estapédio. Menor músculo estriado do corpo, a função desse bichinho é barrar a entrada de sons muito agressivos em nossos ouvidos. Ele enrijece o tímpano e funciona como um filtro para que os sons cheguem mais suaves ao ouvido médio, porção do sistema auditivo que conduz o som até o ouvido interno, região onde fica a estrutura que realmente faz a audição. O problema é que exposições prolongadas a volumes intensos causa um cansaço nesse músculo.

Publicidade

"Comparo o músculo estapédio com o músculo do braço. Digamos que você passe meia hora puxando ferro na academia. Em algum momento, esse músculo vai dizer 'chega, não dá mais'. No braço, é algo que todo mundo conhece por causa da força feita para levantar o haltere. O músculo do ouvido também tem essa contração só que não temos poder sobre ela. Ela é involuntária e acontece sempre que você ouve som mais alto. Se você ouve som alto com frequência, seu músculo vai se cansar", explica ela.

Quando isso ocorre, seu ouvido entra em fadiga, e não é mais capaz de barrar os sons, que chegarão integralmente à estrutura auditiva. E essa exposição gera os sintomas falados ali em cima (isso sem contar nos efeitos a longo prazo, como a perda auditiva).

A única diferença entre o estapédio e o bíceps é que ninguém sente dores nele, como as dores causadas por um dia de exagero na academia. A médica diz que pacientes com problemas no estapédio relatam sentir uma certa vibração nos ouvidos.

Dessa forma, ao botar um teto nos LUFS, o Spotify está contribuindo para a saúde do ouvido de seus clientes - vale lembrar, por exemplo, que a Apple já foi processada por gente que perdeu a audição por exagero no iPod. "Do ponto de vista da saúde, a redução de loudness é maravilhosa. Vai de encontro ao que a TV está fazendo e ao que os eletrodomésticos estão fazendo", Sanchez.

INTERESSES ECONÔMICOS

Serviço de maior qualidade, incentivo para a produção musical e cuidado com os ouvidos dos clientes. Parece que a decisão do Spotify de limitar os LUFS é boa para todo mundo. Mas há uma razão maior que todas: ela pode ser uma medida ainda mais interessante para a empresa do ponto de vista econômico.

No último mês de junho, a companhia abriu os resultados financeiros de 2016. Os números chamam a atenção sobre como serviços de streaming são uma grande fogueira para torrar dinheiro. No ano passado, o Spotify teve uma receita de US$ 3,3 bilhões, e mesmo assim, arcou com um prejuízo de US$ 600 milhões, que é coberto com a grana de investidores. A maior parte desse dinheiro vai para artistas e gravadoras, o que não é suficiente para acalmar os ânimos dessa turma).

Publicidade

No documento, o Spotify se comprometeu a pagar US$ 2 bilhões a gravadoras nos próximos anos. Embora não esteja especificado no relatório quem vai receber o quê, a empresa já anunciou acordo com a Universal e com a Merlin, que representa artistas independentes. Além disso, a empresa parece ter fechado com a Sony no começo de julho.

Quem está pagando a maior parte dessa conta é o usuário que paga pela assinatura do serviço. O Spotify anunciou que tem 140 milhões de assinantes, dos quais menos da metade (50 milhões) pagam pelo serviço. Os outros 90 milhões são assinantes gratuitos, que escutam propagandas entre as músicas. O problema é que as assinaturas resultaram em uma receita de pouco mais de US$ 2,9 bilhões, enquanto a receita vinda com anúncios foi de apenas 338 milhões. Em outras palavras, 35% da base de usuários do Spotify está gerando 87% da receita da empresa.

Para melhorar os números, o Spotify tem duas saídas. A primeira, que parece a mais lógica, é aumentar a base de usuários pagos. E ela vem tomando medidas para isso, como discos exclusivos para assinantes no lançamento e jabás nas playlists de usuários que não pagam.

E aí chegamos na alternativa de tentar tirar um pouco mais de quem só ouve na faixa. Manter os LUFS lá embaixo para preservar os ouvidos e evitar a fadiga dessa galera parece ser uma medida inteligente para fazer com que ela passe mais tempo na plataforma, o que aumenta as chances de exposição a mais propagandas, ainda que não tenha sido a intenção. Com mais gente ouvindo mais propaganda, o Spotify pode tentar negociar contratos melhores com os anunciantes atuais e atrair novos parceiros. Todos os entrevistados para essa reportagem concordam que esse pode ser um dos motivos da medida, pois, para o usuário comum, a redução de LUFS tem resultado pouco palpável.

Procuramos o Spotify para tratar da redução de LUFS (e não especificamente dos seus resultados econômicos) e a empresa disse: "O Spotify está sempre testando novos recursos para beneficiar seus usuários. As mudanças recentes na experiência de reprodução são parte dos aspectos que estamos avaliando, mas não temos mais informações para compartilhar sobre o assunto no momento".

De qualquer maneira, a redução de volume do Spotify parece ser aquele tipo de negócio bom para todo mundo: a qualidade da plataforma ficará melhor, produtores e artistas poderão focar em trabalhos melhores, os usuários ficarão com os ouvidinhos mais preservados e o Spotify ainda pode colocar mais um cascalho no bolso, o que, em contrapartida, preserva o serviço para todo mundo.

Leia mais matérias de ciência e tecnologia no canal MOTHERBOARD.
Siga o Motherboard Brasil no Facebook e no Twitter.
Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter e Instagram .