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Saúde

Fiz uma 'cirurgia cerebral' com uma doutora cujo cartão recebi na rua

Tive uma experiência imersiva de uma hora na tentativa de relaxar. Mas pelo que eu estava realmente pagando?
Daisy Jones
London, GB
MS
Traduzido por Marina Schnoor
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Fotos: Daisy Schofield.

Passo bastante tempo estressada. Quando era freelancer, eu rolava da cama e pegava uma lata de Red Bull num único movimento treinado. Aí eu virava o energético antes mesmo de abrir os olhos. Depois eu sentava no meu computador e digitava até lembrar de comer alguma coisa, geralmente um punhado de salsichas vegetarianas que eu enfiava na boca de qualquer jeito. Esta é a vida que você escolheu, eu pensava, com os dentes cerrados, confusa sobre o tempo, entrando em pânico com meu cheque especial. Se continuar trabalhando, talvez um dia você possa ter algum lazer.

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Hoje em dia me sinto menos estressada. Tenho um trabalho que não me destrói e faço um esforço para priorizar coisas que me trazem alegria, como comer arroz na cama ou fazer a coreografia de “Word Up” do Chromeo no Dance Dance Revolution. Mas todo mundo sempre pode relaxar mais – especialmente se você é um millennial esgotado. A maioria de nós é pobre. Nossos apartamentos alugados têm mofo. Nossos móveis da IKEA estão desmontando. Passamos nosso tempo – nosso precioso, finito tempo vivos – em escritórios, atrás de registradoras, ou seja lá o que pague as contas. O capitalismo é uma bosta etc.

Por isso, quando me entregaram um cartão na rua outro dia, fiquei intrigada:

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“Ultra relaxante” e “cirurgia cerebral” não parecem conceitos que combinam, assim como várias outras coisas – batata frita do McDonald's e milkshake de chocolate – e nem por isso você não vai experimentar.

Então, assim que voltei pro escritório, mandei um e-mail para a “Dra. Leon” marcando uma consulta. Ela respondeu dizendo que eu deveria chegar no dia seguinte às 12h30, tocar a campainha e começar minha jornada para me tornar uma versão melhor de mim mesma. Quando chegou a hora, arrastei meu corpo zoado pela Brick Lane, onde fica a “clínica” dela, e levei nossa estagiária junto para tirar algumas fotos.

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Chegando lá, fui recebida pela Dra. Leon (também conhecida como Sofia Lee-Henson, a criadora dos Sistemas XNN), que estava usando um jaleco branco e segurando uma prancheta. “Prazer em te conhecer”, ela disse entusiasmada, me guiando até o que lembrava um consultório de massagem com um toque vagamente médico. O cheiro era de leve óleos essenciais. “Por favor, fique confortável.” Ela apontou para uma cadeira macia, antes de passar alguns vídeos de pessoas com visual científico falando sobre como eu poderia me tornar melhor por meio de “aprimoramento neural”.

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Depois ela me pediu para preencher um formulário onde escrevi quão feliz eu me sentia atualmente numa escala de um a dez (sete, às vezes oito); se eu dava mais valor para amor, conhecimento ou poder (amor); e o que eu queria conseguir depois da sessão (criatividade, produtividade, os dois?) Depois, ela me levou para uma cadeira de massagem num canto, onde a Dra. Leon colocou óculos de proteção e fones de ouvido na minha cabeça e deu play numa música suave para tocar ao fundo.

“Está se sentindo confortável, senhorita Jones?”, ela perguntou. Fiz que sim com a cabeça. “Então vamos começar.”

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Não sei explicar direito o que aconteceu depois. A Dra. Leon espirrou um líquido mentolado na minha boca (“isso pode fazer alguns pacientes alucinarem”) e passou um tipo de gel na minha testa. Ela falou sobre meu microchip de “melhoramento” e como ele ia se enterrar no meu “saco cerebral”. Em certo ponto, minha cabeça começou a vibrar ligeiramente. Como alguém que tem quase uma sensação de ASMR indo no cabeleireiro e fazendo a sobrancelha, achei a experiência extremamente relaxante. Quando ela me disse que o “procedimento” tinha acabado e que eu podia me levantar, me sentir meio aturdida, como se tivesse recebido uma massagem na cabeça ou tirado uma soneca.

Claro, percebi logo que os Sistemas XNN são basicamente cinema imersivo. É algo muito estranho, muito absurdo para ser outra coisa. Depois, fora da personagem, Sofia me disse que começou o projeto seis anos atrás, junto com seu curso de Design Gráfico na Central Saint Martins.

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“Não sou uma pessoa muito espiritual”, ela me disse. “Não curto ioga; nunca me interessei por meditação. Então comecei a pensar que pontos de acesso eu poderia usar para me interessar mais por consciência plena e bem-estar – e ficção científica era o que fazia isso por mim. Era uma questão de criar escapismo, que depende do público – e você tira tanto disso quanto dá.”

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O propósito dos Sistemas XNN – que começou como um desdobramento do Secret Cinema – pode ser vagamente considerado “entretenimento”. Sofia atende alguns casais em primeiros encontros, por exemplo, e isso claramente visa ser uma performance. Mas a coisa toda também se encaixa muito bem nas ideias vagas e nebulosas sobre “bem-estar”, e algumas pessoas se consultam exatamente com esse propósito. “Meu objetivo atual é explorar cinema e a experiência disso como terapia”, ela diz no site de agendamento. “Explorando técnicas terapêuticas em uso atualmente, minha empresa XNN aplica métodos através da experiência, permitindo escapismo e a liberdade do público para explorar.”

Óbvio, tudo isso é muito vago, e Sofia não tem qualificações formais como terapeuta ou profissional de saúde, nem diz ter. Mas isso traz algumas questões interessantes quando se trata de até onde vamos para nos sentir menos estressados. Quando gastamos seja lá quanto numa massagem, máscara facial de sangue, ventosaterapia ou tanque de privação sensorial, por exemplo, não estamos realmente pagando pelo “procedimento” e seus supostos benefícios, estamos pagando por uma hora em que sentimos que estão cuidado exclusivamente de nós? De muitas maneiras, fazer uma falsa cirurgia cerebral não é diferente disso.

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Esses tratamentos também são considerados livres de culpa. Deitar numa cama no meio do dia em vez de trabalhar é visto como preguiça. Deitar numa cadeira de massagem depois de pagar £40 [R$190] por um procedimento “terapêutico” (o que essa sessão em particular teria custado) é cuidar de si mesmo.

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Não saí da “cirurgia” de mãos vazias. Sofia colocou uma pulseira médica no meu pulso quando cheguei, e quando fui embora ela me deu um pote com “solução de desenvolvimento” para “cuidado posterior”. O pote, claro, não tinha nada dentro. “Encha até a borda com seu líquido potável favorito”, dizia o rótulo. “Beba e repita até três vezes.”

De certa maneira, o pote é uma boa metáfora para a coisa toda. Me perdoe por falar como uma estudante de filosofia que acabou de descobrir Karl Marx, mas num clima tão exigente quanto o nosso – que nos ensina que trabalho é dinheiro, dinheiro é sucesso, e, portanto, lazer não é dinheiro e não é sucesso – pode ser difícil tirar um tempo pra você. Relaxamento é algo tão passageiro, e muitas vezes cheio de culpa, que pode ser mais fácil indulgenciar quando isso é vestido como algo médico, algo benéfico para o seu melhoramento, algo que pode nos tornar mais produtivos.

Ou talvez eu esteja muito desanimada com o mundo atual e deveria voltar ao trabalho.

Matéria originalmente publicada pela VICE Reino Unido.

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