“A história dos últimos anos do Brasil é sobre a grande hipocrisia nacional”
Crédito: Agência Brasil

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Politică

“A história dos últimos anos do Brasil é sobre a grande hipocrisia nacional”

Uma conversa com Bernardo Mello Franco, autor do recém-lançado "Mil Dias de Tormenta", livro que reúne textos sobre a insana disputa por poder no país.

Dilma Rousseff reeleita, Eduardo Cunha presidente da Câmara dos Deputados; Dilma na mira do impeachment, Michel Temer leal, Michel Temer desleal; Dilma impichada, Temer presidente, Cunha preso; Temer no meio de escândalo, e outro, e mais um, e ainda outro. O caos ao redor da Presidência da República nos últimos anos foi tão grande que é fácil esquecer detalhes de uma disputa que forjou a desconfiança e o ceticismo do eleitorado em 2018.

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Mil Dias de Tormenta dá uma mãozinha para refrescar a memória. O livro, recém-lançado pela Companhia das Letras, reúne colunas escritas pelo jornalista Bernardo Mello Franco na página 2 da Folha de S. Paulo entre os dias primeiro de janeiro de 2015, quando Dilma assumiu seu segundo mandato como presidente, e 26 de outubro de 2017, logo depois da Câmara arquivar uma segunda denúncia criminal contra Michel Temer.

A história, é claro, não parou ali. O cenário absurdo que resultou dessa disputa pelo poder presidencial é sintetizado por Bernardo com um fato ocorrido na quarta-feira seguinte ao lançamento do livro em São Paulo. “A Polícia Federal concluiu o inquérito que indicia o presidente da república por corrupção. Em qualquer lugar do mundo isso seria a notícia mais importante do dia, mas hoje não é manchete em nenhum jornal”, diz ele, por telefone.

“E os jornais estão certos. Nem estão protegendo ele, nem avaliando mal a notícia. Simplesmente associar Temer a corrupção virou uma coisa banal, cotidiana.”

Os textos são curtos, têm meia dúzia de parágrafos cada um, e trazem um misto de análise, reportagem e opinião sobre o que se passava em Brasília. Hoje no O Globo, Bernardo conta que uma de suas preocupações é escrever para um público amplo, mesmo o que não acompanha política, e falar sobre o que aconteceu de importante no dia para além dos discursos oficiais.

“Outra coisa que sempre me impus foi tentar dar alguma graça no meio do discurso. Escrever de uma forma que não ajude a estragar o café da manhã das pessoas. Se você só narrar as coisas como são, sem distanciamento, sem humor, ninguém aguenta a realidade do Brasil”, diz.

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Veja abaixo uma entrevista com o jornalista.

VICE: Erros de gestão à parte, o impeachment de Dilma Rousseff foi uma injustiça?

Bernardo Mello Franco: Não acho que tem mocinho nem vilão na história. Dilma fez um governo muito ruim, a primeira sequência do livro é muito crítica à ela e à decisão que tomou de rasgar o compromisso de campanha e implementar o oposto do prometido em termos de política econômica. Agora, na minha visão, o impeachment foi aprovado com base numa justificativa muito frágil. O pretexto, das pedaladas fiscais, nem os próprios senadores e deputados chegaram a entender direito. Conversava com parlamentares no auge da discussão e eles não conseguiam falar mais de 30 segundos sobre as tais pedaladas. Ela não caiu por aquilo. Caiu, como foi dito pela senadora Rose de Freitas, uma líder do governo Temer em determinado momento, pelo chamado conjunto da obra. A constituição não lista conjunto da obra nem impopularidade como motivo suficiente para derrubar presidente. O preocupante desse processo é a banalização do impeachment, um mecanismo traumático na democracia.

Três personagens parecem centrais nessa história: Dilma, Temer e Eduardo Cunha. Dilma é candidata a senadora por Minas Gerais e vai bem nas pesquisas e Temer, apesar de tudo, continua presidente. O Cunha foi quem se deu pior?

A história dos últimos anos do Brasil é uma história da grande hipocrisia nacional. Cunha foi o grande símbolo disso. Não havia em 2015 quem não soubesse quem era Eduardo Cunha. Para minha surpresa, durante muito tempo houve vista grossa, certa indulgência com o conhecido passado dele em nome do fato que estava combatendo o PT. Em um ano e meio como presidente da Câmara ele fez oposição mais eficiente ao PT do que o PSDB em 12 anos. Depois que cumpriu sua função de abrir o processo de impeachment, coisa que nenhum outro presidente da Câmara teria feito com base em uma justificativa tão frágil, ele foi descartado.

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Um negócio curioso é que o Supremo [STF] levou cerca de duas semanas para afastá-lo da presidência da Câmara depois da abertura do impeachment. Essa história é das mais mal explicadas. O Supremo esperou 141 dias para decidir se deveria afastá-lo ou não. O pedido da PGR [Procuradoria-Geral da República] era de urgência, mas não se mexeu enquanto ele não cumprisse sua função.

Depois disso, já preso, ele continuou um personagem ameaçador. Houve uma expectativa geral que fizesse delação contra Temer, com quem atuou em parceria durante muito tempo. Só no futuro vamos entender porque ele decidiu não falar. Joesley Batista deu uma pista naquela conversa com Temer no momento que sugere estar pagando uma mesada para Cunha.

Foto: Chico Cerchiaro

No final de março de 2016, pouco menos de um mês antes do impeachment, você escreveu sobre uma pesquisa do Datafolha segundo a qual apenas 16% das pessoas acreditam que uma gestão Temer seria boa ou ótima. Dava para imaginar que seria tão ruim?

O impeachment da Dilma foi visto como atalho para um grupo que estava na oposição há 13 anos, basicamente o PSDB e uma certa direita encastelada no Congresso e empresariado. Viram no Temer capacidade de negociação e um sujeito facilmente manobrável na presidência para aprovar uma agenda que vinha sendo represada pelo PT, tanto reformas econômicas de viés liberal quanto uma agenda mais conservadora. Ninguém viu ele como estadista. Ninguém teve expectativa que ele fosse popular.

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A expectativa é que ele conseguiria entregar o que prometia. Esvaziou em parte porque vai deixar a presidência sem aprovar a principal promessa para o setor financeiro, que era a reforma da previdência. E isso é decorrente da fragilização dele, por que durante um certo período ele estava aprovando tudo.

Agora acho curioso uma presidente ter caído por ser muito impopular e ser substituído por um vice-presidente que conseguiu ser mais impopular que ela. É uma das contradições desse processo que a história vai destacar.

Jair Bolsonaro quase não aparece nas colunas. Ele é citado duas vezes. A primeira delas, em julho de 2017, já como possível candidato à presidência que se beneficiaria com Lula fora da corrida por conta da condenação em segunda instância.

O Bolsonaro, como parlamentar, sempre foi uma figura irrelevante. Ele próprio costuma dizer até com certo orgulho que era deputado do baixo clero. Não teve papel importante em nenhum dos episódios, nem impeachment, nem na sustentação do Temer. Era um personagem até caricato no Congresso, por isso essa ascensão dele foi uma surpresa. Ele não era visto como um personagem nacional.

Você estava na bancada do Roda Vida que entrevistou Bolsonaro. Acha que a abordagem poderia ter sido diferente?

Bolsonaro nunca tinha feito entrevista ao vivo na televisão e acho que o saldo geral não foi ruim para ele. Falou o que a base queria. Foi uma lição, a mesma que a imprensa norte-americana passou com Donald Trump. Quando você vai entrevistar um político, de direita ou esquerda, presume que vai se manter uma linha de razoabilidade nos temas principais, civilizacionais, vamos dizer assim. Não espera que o sujeito vai defender tortura, golpe militar, fuzilamento. As divergências são em outros campos. Bolsonaro, assim como outros populistas de extrema direita, subverte esse pacto mínimo estabelecido no Brasil com a constituição de 88. Ele conversa fora das pequenas bases de consenso que existem na política. É um desafio.

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Agora é impressionante como os seguidores dele se organizam para fazer bombardeio nos jornalistas em cima da pessoa física.

Você sofreu com isso?

Não fiquei abalado. Já esperava. Mas confesso que fiquei impressionado com o volume. Esses caras tão se impondo no debate por meio da gritaria. Tenho como política não entrar em bate-boca com militante, não escrevo para militante de nenhum partido nem para político. Escrevo para leitor que pode concordar ou não com a minha opinião, alguém que tenha interesse no debate livre de ideias.

Não gosto de ser personagem, não quero ficar maior que a coluna, maior que a notícia. O livro tem me causado uma exposição que não estava acostumado, prefiro ficar no anonimato das páginas de jornal, ir na padaria em paz [risos].

Por último, você costuma ler os comentários das colunas na internet?

Eu lia e me divertia com os comentaristas. Tinha padrão: as reações mais violentas, durante as colunas do impeachment, eram quando eventualmente eu fazia um reparo ou restrição da Lava Jato. Era quase um assunto proibido. Hoje não é mais. Aliás, vários assuntos proibidos não são mais. Falar mal do Gilmar Mendes [ministro do STF], eu comecei quando ainda não estava na moda [risos]. Falar mal do Cunha quando ele era meio protegido do sistema político. E criticar abusos da Lava Jato, o que não significa que eu seja contra a operação.

Ninguém está acima de crítica, ainda mais figuras que têm tanto poder, como procuradores e juízes. Entendo que a primeira obrigação do jornalismo, especialmente o político, é fiscalizar o poder. Sempre tentei radicalizar essa visão, no sentido de que todo detentor de poder deve ser fiscalizável e criticável. Não deve fazer juízos de valor como "ah não, o saldo desse cara é positivo" ou "não vamos falar mal porque vai enfraquecê-lo". Isso para mim não existe. Elogio tem bem pouco no livro [risos].

Mas, bom, no Globo, a ferramenta do blog não permite comentários. Aí acho que alguns leitores que apareciam todo dia para me criticar na Folha talvez estejam sentindo saudades. Mas confesso que também estou sentindo saudades deles.

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