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cinema

O discurso de Spike Lee nos Óscares foi uma aula de história afro-americana

"Nossos ancestrais trabalharam na terra de antes do nascer do sol até depois do pôr do sol."
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
MS
Traduzido por Marina Schnoor
O diretor Spike Lee durante a premiação do Oscar

Este artigo foi originalmente publicado na VICE US.

Na noite de ontem, domingo, 24 de Fevereiro [madrugada em Portugal] fez-se (finalmente) história, quando a Academia de Hollywood deu a Spike Lee um Óscar para Melhor Argumento Adaptado, a sua primeira estatueta de sempre, pelo filme BlacKKKlansman. Spike, todo vestido de roxo em homenagem a Prince e com anéis à Radio Raheem que diziam LOVE e HATE, caminhou até ao palco com alegria e saltou para o colo do apresentador e seu colaborador frequente, Samuel L. Jackson, que muito mal conseguiu esconder a desilusão quando Green Book ganhou Melhor Argumento Original minutos antes.

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Depois de dizer aos produtores do evento para "não meterem a merda do relógio a andar", Lee sacou de um caderno e começou a ler o discurso de agradecimento. Foram uns minutos comoventes em honra da história afro-americana, em que mencionou nomes de antepassados que tornaram possível para que ele estivesse ali, em palco - desde os "escravos que trabalhavam desde demasiado cedo para se ver alguma coisa de manhã, até demasiado tarde para se ver alguma coisa de noite", à sua avó, que era filha de uma escrava, que o ajudou a pagar o curso de cinema em Morehouse e a Universidade de Nova Iorque. Também agradeceu à família, filhos e até às tribos indígenas, "cujas terras que pisamos lhes foram roubadas e a quem matámos enquanto as tentavam proteger".

O que o muito esperado discurso de Lee confirmou é que, para um afro-americano chegar ao topo, como os Óscares, é preciso mesmo muita ajuda. Lee recebeu dinheiro da família que foi crucial para ir para a faculdade e financiar o seu primeiro filme, She’s Gotta Have It. No filme entrava a sua irmã Joie, que depois disso protagonizou muitos outros filmes e o seu pai, o artista de jazz Bill Lee, cuja música entra em vários filmes do filho. Para além de um fato em homenagem a Prince - Prince foi responsável pela banda sonora do filme Girl 6 - Lee estava de Jordans feitos à medida, o que também era importante, já que Michael Jordan contribuiu financeiramente para o seu filme nomeado ao Óscar de 1992, Malcom X.

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Alguma vez teríamos escutado as palavras de Shelton Spike Lee se as pessoas que o ajudaram não tivessem acreditado no seu talento e ajudado a financiá-lo? Ao ouvi-lo a agradecer à avó, eu própria me lembrei da minha avó, que foi também quem me pagou a faculdade. Pensei nos meus pais, que pagaram as minhas aulas e campos de férias de escrita e nos meus amigos, que leram os meus trabalhos, assistem às minhas leituras ou tomam conta dos meus filhos para eu poder escrever. Quando as instituições de poder e privilégio se mostram fechadas a pessoas que têm a tua aparência, é preciso toda esta gente à tua volta a empurrar-te, a manter-te optimista, a acreditar em ti mesmo quando perdes e a permanecerem à tua volta para te manterem os pés na terra quando ganhas. Qualquer pessoa de cor que foi "a primeira" num espaço historicamente segregado, ou a receber reconhecimento dos seus colegas, conhece a importância crucial que têm todas essas pessoas, também responsáveis pelo seu sucesso.

Lee também foi generoso para outros afro-americanos, quer à frente da câmara como atrás: ao escolher Samuel L. Jackson uma e outra vez, ao contratar Ruth E. Carter para Do the Right Thing e Malcom X (ela agradeceu-lhe no seu discurso quando recebeu o Óscar de Melhor guarda-roupa com Black Panther). O seu actor estrela, John-David Washington (filho de Denzel Washington), interpretou a personagem principal em BlacKKKlansman, abrindo a porta à nova geração de actores negros em Hollywood, para quem ele pode vir a escrever papéis e realizar novos projectos.

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Apesar de Lee aceitar de bom grado o papel de provocador de Hollywood, as suas palavras foram suaves e focadas em amor e união. Encorajou o público a "fazer a coisa certa" nas eleições de 2020 e a "estar do lado certo da história". Mas, também disse que o fizessem em consciência, tendo em conta o contexto completo da nossa história e da humanidade de cada um. Spike quer-nos todos juntos.


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