Crime de pensamento no Canadá
Ilustração Por Alexi Lalas

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Opinião

Crime de pensamento no Canadá

"Se o sistema de controlo do poder está em como se percebe a realidade, a mente humana é o objecto do poder. É o que pensamos que constrói a experiência do que vivemos".

“He dipped the pen into the ink and then faltered for just a second. A tremor had gone through his bowels. To mark the paper was the decisive act. In small clumsy letters he wrote: April 4th, 1984” - em "1984", de George Orwell

Na Universidade de Laurier no Ontário, Canadá, a professora Lindsay Sheperd, exibiu numa aula de Canadian Communication in Context um debate emitido pela estação pública local de televisão sobre a questão de género. O debate era entre Nicholas Matte, professor de Transgender Studies e Jordan Peterson, professor de psicologia da Universidade de Toronto. No seguimento desta aula, Lindsay foi chamada ao departamento de Gendered Violence Prevention and Support, onde esteve 40 minutos a responder a um interrogatório.

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No áudio desta reunião, que Lindsay gravou e pôs a circular na Internet, entende-se que o problema, segundo o departamento, é o facto de Lindsay não ter criticado o ponto de vista de Jordan Peterson o qual, alegando exercer a sua liberdade de expressão, recusou tratar os alunos transgender pelos pronomes them e, juro, zir/hir. Este caso foi mediatizado porque, segundo a lei C-16, no Canadá a recusa em usar os pronomes transgénero é classificada como discurso de ódio e está sujeita a multa. Peterson defende a posição de que é perigoso o Estado intervir na forma como a linguagem é usada, uma vez que esta é a ferramenta que usamos para pensar e transmitir ideias e, por isso, ao interferir nas palavras que usamos está-se a interferir em como se pensa.


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A gravação da reunião surpreende e põe em evidência de forma explícita uma realidade perturbadora. Trata-se de um interrogatório de primeira instância [a Universidade veio, entretanto, pedir desculpa pela situação], para determinar se o facto de Lindsay não ter condenado a posição de Jordan Peterson significa que concorda com as suas ideias. Uma autêntica policia do pensamento como só imaginei que existisse em ficção. Lindsay, chocada com o que lhe estava a acontecer, justifica a exibição do vídeo como uma maneira de educar o espírito crítico dos alunos no debate de diferentes pontos de vista e também com a intenção de mostrar que as questões gramaticais, que podem, à primeira vista, parecer entediantes, são relevantes e têm um impacto real em como estamos no Mundo e nos relacionamos.

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“Orthodoxy means not thinking-not needing to think. Orthodoxy is unconsciousness” - em "1984", de George Orwell

Nas universidades dos EUA e do Canadá existem os chamados “safe spaces”, espaços seguros em português. Aparentemente são espaços onde os alunos podem estar a salvo de “micro-agressões” e outra série de coisas substantivadas numa espécie de linguagem nova. Se analisarmos este conceito de safe spaces, verificamos que, na realidade, as universidades estão a funcionar como um mecanismo de coacção e marginalização de quem não pensa como deveria pensar.

Por outras palavras, os safe spaces são, ironicamente, o contrario de safe para quem quer pensar pela sua cabeça, coisa que confirma a suspeita de que este nunca foi o propósito inicial. O Campus inteiro deveria ser por definição safe space, porque essa é a ideia da universidade; um sítio onde as pessoas se sentem seguras para expressar ideias livremente sem serem julgadas. O que acontece também no que antes conhecíamos por amizade.


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Ao ouvir o áudio de Lindsay Sheperd na Universidade de Laurier, reconheci instantaneamente que estava a ser acusada do que, em newspeak, se conhece como crime-pensante. Newspeak é o termo que, no seu romance 1984, George Orwell deu ao novo idioma imposto por um futurista estado totalitário, através de um mecanismo que consistia na criação de novas palavras e na proibição de outras. Esta ficção, escrita em 1948, não é apenas a distopia de uma futura sociedade controlada, manipulada e sem livre vontade através da propaganda e do controlo da informação, mas também a tese de que a linguagem é a ferramenta mais eficaz para subverter a realidade e, assim, ao manipular a percepção da realidade, alcançar o poder absoluto.

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O exercício de olhar para o Mundo nessa perspectiva é curioso. Vemos que a malta anda o dia todo a olhar para “tele-ecrãs” e a repetir as mesmas coisas que o trending lhes põe à frente da cara, numa cacofonia de little brothers. Claro que este exercício deixa de ter graça se prestarmos atenção e observarmos os padrões que se repetem e o sincronismo destes fenómenos histéricos, ao ponto de parecer que seguem os passos de um manual de instruções.

“War is peace, Freedom is Slavery, Ignorance is Strength” - em "1984", de George Orwell

É verdade que, normalmente, as coisas são na realidade sempre outras coisas. Mas, começa-se a notar um padrão nos activismos progressistas de que as coisas parecem, na realidade, o contrário do que dizem ser. Vemos que as instituições educativas estão a fazer o contrário de educar. O “neo-feminismo” não quer igualdade, pelo contrário, exige privilégios e quer conquistá-los pela força; os “ultra-tolerantes” não toleram quem não é “ultra-tolerante” e organizam-se para acusar, perseguir e até criminalizar quem não pensa como eles.

E o padrão repete-se… Os activistas que se dizem anti-racistas são os primeiros a envolver a raça em todos os assuntos da vida em comum, ao ponto de a comunidade negra americana se ter desentendido e até combatido estes movimentos; as notícias são não notícias; o contrário da verdade já não é uma mentira, é uma pós verdade e vários etceteras… Em newspeak chama-se duplo-pensar, acreditar em dois conceitos contraditórios ao mesmo tempo.

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Mas, as coisas não podem ser e não ser ao mesmo tempo. Tem de haver uma matriz de coisas que são e coisas que não são. Porque, se tudo vale, o resultado é que nada vale e aí perde-se tudo.

Pessoalmente, sabia que algo com estes contornos de um progressismo repressivo estava a acontecer, principalmente do outro lado do Atlântico, mas não tinha percebido que era a um nível institucional. Pensei que era só uma Fad, que se metamorfoseou numa espécie de sindicato juvenil “Suzy Creamchesse”, que conseguiu algum poder de coação na cultura e estava a testar os limites. Não percebi que vinha de cima, dos adultos, que é muito mais grave, porque os adultos estão, sim, todos a correr atrás do alpiste e não têm interesse em ser cool ou modernos. Significa que está a ser financiado.

“At the time he was not conscious of wanting it for any particular purpose. He had carried it guiltily home in his briefcase. Even with nothing written in it, it was a compromising possession” - em "1984", de George Orwell

Há uns tempos, encontrei um amigo que estava com uma t-shirt da Margaret Tatcher e ri-me por me lembrar dele como eleitor de esquerda nos tempo do Louçã. Perguntei-lhe se estava a “trollar”, até porque estávamos num bar frequentado por artistas, que são todos muito de esquerda, ao longe principalmente. Ele respondeu-me que estava a ver quantas vezes lhe chamavam xenófobo, islamofóbico e facho. Tinha perdido a conta aos fachos, levava uns quantos Islamofóbicos e, naquele dia, tinha estreado o “mansplaining”.

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Lembrei-me hoje deste episódio porque, neste Mundo em que tudo começa a parecer o contrário do que realmente é, a t-shirt da Tatcher estava a ser usada como símbolo de rebeldia como antes se usavam as t-shirts de bandas de música, inseridas em movimentos artísticos que também eram uma resposta, uma expressão de liberdade individual. Foi assim que nasceu o Rock n' Roll, como libertação.

“When it comes to the pinch, human beings are heroic” - em "1984", de George Orwell

Se o sistema de controlo do poder está em como se percebe a realidade, a mente humana é o objecto do poder. É o que pensamos que constrói a experiência do que vivemos. E quando começam a aparecer actores sociais a jogar sujo, precisamos cada vez mais destes heróis. O medo é a emoção mais primária da psicologia evolutiva humana, porque faz com que a atenção seja toda concentrada nas informações que asseguram a sobrevivência.

E, quem quer que seja que esteja a financiar isto, criou uma munição para dividir, que pode romper relações, amizades e até o meio de sustento. Mas, os humanos defendem-se, sempre. Onde há poder há sempre contra-poder. E, se o poder está na mente das pessoas e se a batalha da mente humana está na informação e nos processos de comunicação, significa que temos muito mais poder hoje do que pensamos.

Isto não significa que os detentores do poder sejam os meios onde se comunica e se passa informação, mas sim que é nesses meios que se constrói poder. Mas, são estes movimentos que saltam as regras do jogo para agarrar poder, que fazem com que políticas insurgentes nasçam nas franjas do sistema. São estes movimentos, que infringem na liberdade mais fundamental de todas, que conduzem a uma reacção individualizada que não estava a participar politicamente.

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“During times of universal deceit, telling the truth is a revolutionary act” - em "1984", de George Orwell

É esta sensação opressiva por parte de uma cultura massiva e dominante que, habitualmente, gera uma interessante contra-cultura minoritária e marginal num espaço de liberdade. É nesse espaço alternativo de liberdade, fora dos olhares, espontâneo e resiliente, onde as coisas normalmente acontecem.


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