O Goma decidiu parar de pixar

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Entrevista

O Goma decidiu parar de pixar

Uma conversa com o pixador mais famoso de Belo Horizonte, solto na semana do Natal, depois de quase oito meses preso por uma pixação que ele alega não ter feito.

"Agora eu quero ser feliz", cantarola Goma enquanto busca cadeiras para nos acomodar em sua casa, no bairro Glória, em Belo Horizonte. No dia 20 de dezembro de 2016, o pixador mais conhecido da capital mineira deixou o presídio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves, na região metropolitana da cidade, depois de conseguir um habeas corpus. Foram quase oito meses de cadeia por causa de uma pixação na igrejinha da Pampulha, feita em março, sobre os azulejos de Cândido Portinari — ato do qual ele garante não ter participado. A prisão controversa gerou comoção e revolta de pixadores, amigos e ativistas, que se mobilizaram por sua liberdade.

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Goma está livre, porém nem tão leve e solto. Aos 33 anos, João Marcelo Ferreira Capelão voltou para casa, mas de lá não pode sair, enquanto aguarda julgamento monitorado por tornozeleira eletrônica. "Essa tornozeleira é um saco, mano", reclama, de frente ao grapixo que deixou para a mãe, na laje, antes de ir preso: "Bom dia, Fatinha", dizem as letras gordinhas. Quando começa o papo, Fatinha chega e João pede para nos deslocarmos para dentro de sua loja, a Real Grapixo, esvaziada pelas apreensões da polícia. "Senão ela fica toda preocupada", diz baixinho, depois de agradecer pelas tornozeleiras de tecido, presente da mãe para evitar que o equipamento eletrônico o machuque.

"O Joãozinho é foda. Todo mundo adora o cara", diz o Caps, ex-pixador e um dos vários amigos que passaram na loja para dar um abraço no camarada. A fama, o carisma e a lealdade de Goma, no entanto, são as razões que o colocaram como alvo certo da política de combate ao pixo na capital mineira. Uma perseguição que o levou pela segunda vez à cadeia, de onde voltou decidido a se aposentar do rolê, depois de 19 anos de pixo.  "Lá, um pastor me falou: 'seu tempo aqui já tá acabando. Tive uma visão de um homem bem vestido, com um papel branco na mão, e a última vez que eu vi isso o cara saiu rapidão. Respondi: 'então eu vou sair rapidão também, só força'", relembra João, dando início a um papo que você lê abaixo.

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Goma, durante a entrevista, com a tornozeleira eletrônica. Foto: Bruno Figueiredo / Área de Serviço

VICE: Como você foi preso essa segunda vez?
Goma: Quando o Maru pixou a igrejinha da Pampulha, minha mãe falou: "João, vai dar problema pra você. Pode segurar a onda". Não deu outra. A Polícia Civil veio aqui, os caras já entraram falando: "Nós queremos saber quem é o Maru e onde ele mora". Falei: "aí vocês me apertaram. Não sei nem onde ele mora nem o nome dele. Não vou mentir pra vocês não, nós já demos rolê, mas eu não sei nada da vida dele".

E aí?
Eles falaram: "tá vendo essas camisas [da loja do Goma] com folha de maconha, com letra pixação? Se você não entregar agora nós vamos te levar por apologia e ainda vamos te envolver no caso". Comentei da decisão do STF, falei: "te mostro ali que, pela lei, isso não é apologia". Falaram: "mas é só pra te foder mesmo". Aí eu peguei as camisetas e falei: "pode me levar, então, que eu não vou caguetar ninguém". Me levaram preso, mas o Felipe [advogado] foi lá e me tirou na hora. Depois, o Frek foi intimado e nós demos ideia no Maru para ele se entregar. Passaram uns dias e pularam na casa dele, na do Frek e aqui na loja. Nesse dia, só prenderam o Maru, mas levaram tudo da loja, todas as roupas. Até a blusa que eu estava vestindo me mandaram tirar. Depois disso, passaram 28 dias e eles voltaram e me prenderam, de manhãzinha.

Como foram esses oito meses na prisão, Goma?
Foi difícil, né. Minha mãe e a [namorada] Tefa estiveram do meu lado, foram em todas as visitas. Meu amigo Zulai também. E os presos, que ajudaram. Quando eu cheguei, no Pavilhão 6, vi que eu era conhecidão. Todo mundo gritando: "colé, Goma!". Me dando altas paradas, cigarro, baseado. Os baseados eu devolvi porque já não estava mais fumando. Quando prenderam o Maru, um mês antes da minha prisão, eu fiz uma promessa pra Deus: "vou ficar um mês sem fumar maconha e sem pixar, que são as duas coisas que eu mais gosto de fazer". Sexo não entra, né. Tô falando das doideiras. Mas, quando deu 26 dias, eu fui preso. Pensei: "Deus tá me testando". Fiz uma oração e pedi a Deus para ele me dar forças. E tô conseguindo. Na prisão, os caras ficavam doidos. "Que isso, cê tá sofrendo, sô. Fuma um pra relaxar". Mas eu vi que não estava me fazendo falta.

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Como está a sua situação agora, com a tornozeleira? Você parece apreensivo.
Eu saí, estava todo felizão, achando que ia poder ficar na rua, igual todo mundo que eu já vi de tornozeleira, que pode ficar livre até certo horário. Mas fiquei sabendo que eu só ia poder ficar em casa. Tem o lado ruim, mas tem o bom também. Poder passar o Natal e o ano novo com a família, receber meus amigos. O [advogado] Felipe Soares falou que, na pior das hipóteses, eu posso pegar de cinco a seis anos [de detenção]. E, se acontecer uma injustiça ainda maior, podem me dar um regime fechado. Então, eu teria que voltar para completar a pena. Fiquei com medo, né? Não tô muito afim de voltar.

A mensagem que goma fez pra mãe. Foto: Bruno Figueiredo / Área de Serviço

Em 2010, você também foi preso por um pixo junto com os Piores de Belô , né?
É, cara! Foi a mesma coisa, me levaram preso por um rolé que eu nem estava. Os caras vieram aqui querendo saber quem tinha pixado o pirulito da praça Sete, o Detran da João Pinheiro e a estátua da praça da Estação. Aí falaram: "estamos ligados que você é amigo de todos eles, já vimos as fotos no Orkut". E eu: "uai, se já viram que somos amigos, então vocês sabem que eu não vou caguetar ninguém". E eles falaram: "então nós vamos te envolver". E me envolveram mesmo, fiquei quatro meses na cadeia.

O que foi diferente, nas duas experiências na prisão?
Ah, cara, nesses quatro meses eu sofri bem mais. Primeira prisão. Tacaram nós lá no DI, num lugar para 20 pessoas, onde eu cheguei a ficar com 100. "Ah, cê tá indo embora, tá indo embora". Aí passa mais um dia. E nisso foi indo dois, três, quatro meses. Todo mundo sofreu muito, tanto que os caras pararam, porque estavam pixando muito. Eu não, estava fazendo só grapixo na época. Saí e fiquei revoltado. Peguei o mapa de BH e falei: "vou pixar todos os bairros da cidade". Coloquei na minha cabeça que ninguém em Belo Horizonte conhecia todos os bairros e favelas. Aí comecei. Barreiro, altos rolês, sozinho, com os manos; depois, fui pra Leste, Norte, Noroeste, Sul, Centro, Venda Nova, Pampulha. Aí depois que acabei BH comecei a ir pra região metropolitana, para as cidades que tinham cadeia. Neves, Bicas, Igarapé, Sabará. Depois, eu viajei de fazer em todas as capitais do Brasil. Aí no meio disso eu fui preso.

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Foi na mesma época do "japinha"?
Foi. Eu cismei de trocar de pixação e pensei: "vou mandar uma parada pra zoar os chegados". Eu queria uma coisa pequena e vi a tradução de Goma em japonês. Comecei a mandar nas quebradas dos amigos pixadores, mandando salves, sem contar pra ninguém que era eu. Fiz um na frente da casa da Tefa e coloquei: "só love, só love". Ainda briguei com ela, pra ela não desconfiar. "Que isso, Tefa? Esse japonês tá tirando, uai!" (risos).

Você fez um no asfalto também, né? Que aparecia nas câmeras da BHTrans.
É, eu já fiz no asfalto, ali no Elevado Castelo Branco. No chão, bem de frente para a câmera. Aí todo dia aparecia na Globo: "bom dia, vamos ver as imagens da BHTrans no centro".

Goma na Real Grapixo com as prateleiras vazias. Foto: Bruno Figueiredo / Área de Serviço

Você tem pixos favoritos, que guarda na memória?
Os que eu achei mais foda foram os que eu passei mais risco. Teve um rolé que eu, o Zock e o Error fizemos na Padre Eustáquio, no terceiro andar de um predinho. Eu estava na janela, já ia fazer sozinho, todo "goelinha", aí o Error falou: "ô, Goma, faz do meio pra lá. Deixa eu fazer do meio pra cá". Quando a gente trocou de lugar e já ia começar a mandar, veio um cara lá do quarto e já deu um tiro de dentro mesmo, estourando a janela e tudo. O Error já pulou direto pra rua, destroncou os dois pés. Do jeito que caiu, ficou. Eu fiquei escondido numa marquise e, quando fui correr pra pular em outra e descer, o cara já deu mais cinco tiros tentando me acertar. Esse me marcou muito. Também gosto dos que saíram no jornal, quando eu fiz os protestos.

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Esses deram o que falar.
Um dos primeiros foi aquele que eu fiz na frente da Polícia Federal, quando os mensaleiros foram presos. Com a frase do MV Bill: "quando for roubar dinheiro público, vê se não se esqueça que na sua conta tem a honra de um homem envergonhado ao ver seu filho passando fome". No outro dia, passou no jornal: "um dos principais pixadores da cidade fez um protesto contra os mensaleiros. O porteiro do prédio ao lado diz que a frase virou sensação. Todos que passam pelo local fazem fotos". Eu achei doido, né. Teve outra também, que eu fiz no Hospital João XVIII, quando estavam de greve. Coloquei a frase: "desrespeito do médico ausente, o filho do pobre no Brasil não é gente". Em frente ao Fórum, eu mandei: "a polícia prendeu o pixador pé rapado e soltou o deputado".

Você acha que as mensagens incomodaram?
Eu acho que eles estão pegando pesado com a pixação porque no Brasil não tem outro meio melhor de protestar que a pixação. Cê vai no hospital e sua mãe não consegue atendimento, como você vai protestar, se ninguém te dá ouvido? Aí você pega o ônibus lotado, paga imposto alto, a polícia te bate. Então, cê pixa. É o melhor meio de protestar contra as injustiças.

Estado e a sociedade dão mais valor para o muro do que para a vida.

Foi essa revolta que te motivou a pixar, Goma?
Não, isso veio depois. Meu interesse pelo pixo despertou aos 12 anos, mas fui começar a pixar aos 14. Foi na escola, eu era criança. Via a galera comentando, no recreio: "vocês viram o fulano de tal, que pixou a estátua?". Aí eu via as meninas pirando. Pensei, "pô, vou pixar também"(risos).

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Por que ainda é tão difícil de entender o pixo, tanto para o Estado quanto para a sociedade?
Eu fui preso, "de menor", umas oito vezes. Nunca procuraram saber por que eu pixava. Nunca me perguntaram. Se eles estavam achando que aquilo ali era errado, eles tinham que ter me ajudado a parar. Estado e a sociedade dão mais valor para o muro do que para a vida.

Depois dessa segunda passagem pela cadeia, quem vai ser o Goma?
Ao todo, um ano privado da minha liberdade por crimes que eu nem fiz. Primeiro, quatro meses, por um rolê que eu não estava; agora, quase oito meses por causa do pixo do Maru na igrejinha, que também não tem nada a ver comigo. Por causa do sofrimento da minha família, também, eu decidi que vou abandonar a pixação. Aposentei.

Foto: Bruno Figueiredo / Área de Serviço

Você falou de Deus várias vezes na entrevista. A religião está te ajudando?
Eu sempre fui um evangélico afastado. Só fumava maconha e pixava, mas sou certão. Tive a oportunidade de roubar em vários rolês, entrei em muito lugar em que dava para ter roubado. Eu sempre tive muito Deus no coração, mas a maconha e a pixação me impediam de me aproximar mais. Aí, nessa última prisão, li a Bíblia toda, do Gênesis ao Apocalipse, e resolvi seguir os mandamentos de Deus.

Por causa do sofrimento da minha família, decidi que vou abandonar a pixação. Aposentei.

Para você, o que é a pixação, Goma?
É o grito do oprimido. Uma arte de resistência, de protesto, que tinha que ser entendida como parte da cultura do Brasil, de cada cidade desse país. Eu identifico as cidades, vendo as reportagens, só pelos pixos nos prédios. Saí da cadeia já olhando as pixações no caminho. É uma arte, e que devia ser respeitada até mais que as outras, porque o artista faz onde quer, não pede autorização pra ninguém, não tem fim lucrativo nenhum e ainda coloca a liberdade e a integridade física em risco. Então, eu sempre vou amar a pixação. Só vou parar porque penso que, hoje, tenho muita coisa a perder.

Você acha que essa política de guerra ao pixo vai continuar em BH?
Pelo menos, o promotor do patrimônio agora mudou. Cabe ao novo pensar diferente. Porque, vou te falar. Preso ali, oito meses, eu vi ladrão indo e voltando; vi neguinho que rodou com mais de um quilo de droga saindo antes que eu; vi neguinho que matou outra pessoa indo embora antes que eu, que fui preso por crime ambiental. Aí a gente tem esse caso da Samarco, o maior crime ambiental da história, e ninguém foi preso até hoje, não deu nada. Já eu vou preso por uma pixação que eu nem fiz, e que foi limpa depois de duas horas, com um custo de oito mil reais, que o Maru que vai pagar, porque a multa já chegou pra ele. Então, eu fico preso esse tempo todo enquanto tá cheio de propaganda da Samarco na televisão

Qual a meta agora?
Quero reconstruir o meu sonho, que é a minha loja. Quero lançar meu livro, que eu escrevi todo na cadeia, e acabar um documentário que eu já estava fazendo antes de ser preso. Também vou seguir aquela meta de marcar em todos os Estados, mas de um outro jeito. Quero lançar o livro e o documentário em todas as capitais, e aproveitar para fazer grapixos em cada uma delas.

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