Kim Gordon toca baixo em cima de uns saltos altos como ninguém. Com uma pinta estratosférica e power em doses proporcionais à dissonância do som dos Sonic Youth, aos 60 anos ainda tem uma silhueta de fazer inveja a muita moça de 30. Mas tem muito mais do que isso, como se comprova no livro que escreveu em 2014 e que acaba de sair em português: A Miúda da Banda.Desde logo, marca pontos pela escrita: uma espécie de raio-X às suas memórias e emoções mais profundas. Afinal, não será estranho que escreva como toca, com as vísceras todas ao barulho. Depois, destaca-se pelo seu percurso, nem sempre fácil, mas – como vamos percebendo pelas páginas fora – com a cabeça e a coluna vertebral bem no sítio, sem se deslumbrar nem distrair pelo caminho.
Publicidade
A miúda da banda referida no título tornou-se mulher e revela-se uma senhora. Nunca lhe interessou o showbiz e menos ainda o show off: só queria fazer a sua cena – e fez. O que, no caso dela, se foi dividindo (multiplicando) entre a música e as artes visuais.
É dos 30 anos que passou com a banda (27 dos quais casada com Thurston Moore, guitarrista e também ele membro fundador dos Sonic Youth) que fala este livro. Mas não só: da infância e juventude na Califórnia dos anos 60 e 70 à relação complicada com o irmão, a ida para Nova Iorque, os homens da sua vida, os amigos e os livros que a marcaram (ou não tivesse sido o seu primeiro trabalho numa livraria), as histórias por detrás das canções, a sua relação aberta com a música, a pintura e a moda, e a arte mais difícil de todas que foi conciliar a maternidade com os Sonic Youth, os sucessivos discos e digressões, e, como se não bastasse, ainda uns quantos projectos em paralelo. Por fim, e mesmo só no fim, desvenda a traição que acabou com o seu casamento.It's only rock'n'roll but she likes it. Bem, quase sempre. Embora tenha havido momentos em que não estava a gostar assim tanto como poderiam pensar os milhares de olhos postos nos Sonic Youth, em cima do palco, quais deuses do rock mais experimentalista e senhores do alargamento de fronteiras sónicas. Um desses momentos foi o que Kim Gordon escolheu para começar este livro: o derradeiro concerto da banda dela e de Thurston Moore, Lee Ranaldo e Steve Shelley, após três décadas a fazerem música juntos.
Publicidade
E NÃO FORAM FELIZES PARA SEMPRE
Publicidade
Há que lembrar que isto não são mexericos: são memórias. Contudo, no fim de contas, a conclusão é inevitável: o menino bonito da banda não fica muito bem na fotografia. Ironias da vida: Kim é a little trouble girl, mas pelos vistos Thurston é que arranjou sarilhos. E dos grandes.Kim Gordon começa, então, pelo fim. Mas depois volta atrás, com a agilidade de quem não só é capaz de transmitir o que lhe vai na alma através das cordas de uma guitarra como também domina as técnicas da narração para manter os leitores agarrados à sua prosa.E já não é de agora que Kim trata a caneta por tu: desde o dia em que assinou o seu primeiro artigo para a revista Real Life – acerca dos laços masculinos criados em palco pelos músicos – e em todas as letras dos Sonic Youth que ainda viria a escrever foi dando provas nessa arte de bem juntar palavras. Nestas 300 páginas, que passam quase à velocidade de um refrão, vamos mergulhando com gosto nos seus sentimentos e vivências. Num estilo escorreito e visual q.b., apanha as várias camadas desse mil-folhas que é a vida, sem se ficar pela cobertura de açúcar.
UMA FAMÍLIA ON THE ROAD E A DOENÇA DO IRMÃO
Publicidade
Durante a adolescência, a vida de Kim Gordon foi enriquecida com sucessivas viagens, saltitando de país e de escola: até à Secundária deixou a sua Los Angeles natal para ir viver com os pais e irmão, primeiro no Hawaii, depois em Hong Kong, expandindo o seu mundo conhecido muito para além da Califórnia. Não admira que quando se mudou para Nova Iorque, em 1980, já levasse o bichinho cosmopolita na bagagem.Estiveram para se chamar Male Bonding, Red Milk ou Arcadians. Felizmente não aconteceu e, graças a Thurston Moore, podemos todos suspirar de alívio. "Assim que o Thurston se lembrou de Sonic Youth, soubemos simultaneamente que tipo de música queríamos fazer", conta. E se um verso é capaz de prever o futuro, The days we spend go on and on seria, sem dúvida, premonitório dos 30 anos seguintes da banda.O que não invalida que lá para 1995 não tenham decidido mudar de nome para Washing Machine. A editora achou que tinham enlouquecido e, como era previsível, recusou. Então, usaram-no como título de um álbum.Boa parte deste livro é dedicado à música: disco a disco, vai-se traçando o percurso dos Sonic Youth, as circunstâncias que estiveram na origem de cada registo e o onde, quando, como e porquê de algumas músicas: quem é a Karen de "Tunic (Song for Karen)", por exemplo; em homenagem de quem foram escritas "JC" e "100%", ou de onde veio o título "Bad Moon Rising".
VÊ TAMBÉM: Ian Svenonius entrevista Kim Gordon e Thurston Moore
AS HISTÓRIAS POR DETRÁS DAS CANÇÕES
Publicidade
E se, por esta altura, já estão a desconfiar que a "Little Trouble Girl" possa ser Coco Gordon Moore, a filha do casal sónico-já-não-tão-jovem-assim… enganam-se. Mas para ficarem a saber vão ter mesmo de pegar no livro e ler. É da maneira que descobrem também as maradices de Courtney Love que deixaram Kim Gordon desde logo com os dois pés atrás em relação a ela, a embirração crónica que sempre teve com os Smashing Pumpkins, ou a inesperada confidência que lhe fez Kurt Cobain pouco antes de morrer.