Estive na marcha LGBT com xs Pink Trash

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Estive na marcha LGBT com xs Pink Trash

Não estranhem o título: este texto foi escrito ao abrigo do acordo queerográfico.

Antes que estranhem o título, deixem-me dizer-vos que, sim, este texto foi escrito ao abrigo do acordo queerográfico. Mas deixemos o melhor para o fim. Pela 14.ª vez, a marcha de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais saiu à rua em Lisboa para, do jardim Príncipe Real até à Praça da Figueira, ostentar o orgulho LGBT e protestar contra as desigualdades e fobias, nomeadamente: transfobia, lesbofobia, homofobia e queerfobia.

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Este ano, o desfile contou com cerca de cinco mil pessoas que, entre críticas e afectos, alargaram o protesto à crise económica, criando assim um “arco-íris contra a crise” e fazendo dele o lema da marcha. De entre as quase 20 associações e colectivos que estiveram presentes, decidi marchar ao lado das Pink Trash, um grupo de marchantes/activistas que se formou especificamente para o efeito e que alargou os protestos contra as discriminações — algumas dentro da própria comunidade LGBT — e contra o sistema económico vigente. Neste colectivo, quase todos os elementos são politicamente activos (participam em noutros movimentos anti-capitalistas) e não abdicam de levantar questões de classe, de autoridade e de crise. A própria ideia do grupo parte do conceito de White Trash — feios, pobres e burros —, que é aqui aplicado à causa LGBT e que faz a ponte com a frente que o grupo assumiu nessa tarde: por um lado, a luta contra a discriminação e, por outro, a luta contra o capitalismo, num circuito continuo em que ambos se alimentam. Quando as encontrei, uma hora antes da marcha, algumas Pink Trash já estavam a vestir-se, outras a maquilhar-se e ainda outras a pintar cartazes e t-shirts com palavras de ordem. O facto de se vestirem de forma “estranhamente extravagante” até pode sugerir palhaçada ou ausência de crítica, mas a ideia é precisamente a oposta. Salomé, como quis que lhe chamássemos, é uma das marchantes que optou por levar uma máscara semelhante à das Pussy Riot — e isso não é por acaso, porque a ideia passa por “fazer do próprio corpo uma cena riot”. Nas Pink, o pensamento político está ao dispor da estética. Como vimos, a extravagância na hora de vestir serve, entre outras coisas, como uma mensagem. “Ninguém manda no nosso corpo e não é por isso que temos menos direitos, se eu quiser vestir uma saia, visto”, insiste Salomé. O importante é contrariar a ideia do “gay certinho e normal que quer casar”. Apontando o dedo às discriminações que se conhecem dentro das comunidades LGBT, a Salomé condena, por exemplo, “a imagem do gay musculado, de barriga lisa e metrossexual, a imagem da lésbica gorda ou até a ideia de transexual que se assemelha à Roberta Close”. Pouco faltava para as cinco da tarde e já se tinham esgotado os preparativos. As Pink arrancaram e encontraram pelo caminho o edifício Conselho Distrital da Ordem dos Advogados. Como é óbvio, depois do debate do Prós e Contras sobre a questão da co-adopção por casais homossexuais (e de Marinho Pinto se ter posto na mira de muitos dos colectivos LGBT), as Pinks decidiram dar-lhe troco e grafitar na janela do prédio “Marinho, homofobia mata”. Durante o desfile, saltou à vista a adesão de estudantes Erasmus e turistas. Um deles, o Pedro, um estudante espanhol, está em Portugal há cerca de um ano, tempo suficiente para perceber de que temos um país com um ambiente igualmente preconceituoso em relação aos gays — mas menos, muito menos hostil, sobretudo pelo facto de a extrema-direita praticamente não existir no país. Aos 28 anos, Pedro veio para Portugal para concluir um mestrado, mas desde os primeiros dias que tem feito um esforço para se integrar. Na manifestação de 15 de Setembro procurou uma bandeira gay no meio da multidão e, desde então, tem estado envolvido com os grupos LGBT mais radicais, como as Panteras Rosas ou as Pink Trash. Depois de quase 30 anos, confessou-me esta foi a primeira vez que participou numa marcha disfarçado, com um vestido e cuecas na cabeça. Nunca o conseguiu fazer em Sevilha porque, segundo diz: “Lá, o ambiente é muito diferente, o conservadorismo é bastante acentuado e a aceitação é menor.” Existem, contudo, algumas semelhanças que critica. Para este estudante, a cultura gay transformou-se, tanto em Portugal como em Espanha, num mundo igualmente capitalista, fechado, dirigido por movimentos sociais-democratas, moderados e pouco comprometidos com a luta e as causas transversais à comunidade gay. A seu ver, o expoente máximo deste mundo restrito são os bares e discotecas que exigem entradas e consumos caríssimos e que, portanto, são apenas acessíveis aos gays bem posicionados na sociedade. O desfile decorreu com normalidade, num misto de cor e música e alguns transeuntes a protestar em surdina. A acabar, e para provar que a comunidade gay não é um universo uno, o conjunto de discursos habituais por parte das associações organizadoras — cada um com a sua sensibilidade, cada uma com a sua proposta. E se pensam que dali não vêm propostas inovadoras, pensem duas vezes. Estes eventos servem precisamente para nos informar, malta desinteressada pela temática. Já não me lembro de onde ouvi falar pela primeira vez do acordo queerográfico (pode ter sido nos discursos finais ou no boca-a-boca da marcha), mas este é um dos melhores exemplos das surpresas que estas associações e colectivos nos reservam. Trata-se de um manifesto subscrito por 130 pessoas e é, no fundo, um “compromisso brincalhão” que pretende ser em simultâneo “um acto de subversão linguística” para que se “libere a palavra” e para nos oponhamos ao “estabelecido”. Como se a dita ideia de acordo pudesse ser contemplada na oralidade ou no pensamento — e agora que penso nisso, em alguns casos parece que sim —, são utilizadas diversas artimanhas, igualmente condicionantes, difíceis de aplicar por mais do que duas linhas e que pretendem reformular as palavras existentes ou adicionar outras inexistentes, recorrendo para ao uso da “@”, do “x” ou do “*”. Ainda estou a decidir se se trata de uma ideia genial, ou se é apenas parvo, mas não se queixem de falta de iniciativa por parte desta malta.

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