FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

Como me senti depois de 70 dias deitado numa cama para uma experiência da NASA

No dia 2 de Dezembro acordei e, pela primeira vez em 70 dias, levantei-me.
nasa-patient-8179-200-1423087111
Foto cortesia do autor.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE US.

No dia 2 de Dezembro acordei e, pela primeira vez em 70 dias, levantei-me. Ou pelo menos tentei. As enfermeiras mudaram-me para uma cama de hospital onde pudesse estar na vertical. Tinha aparelhos ligados aos dedos e aos braços para medir a pressão sanguínea, bem como uma máquina de ultra-sons que conectava directamente com o coração. Incentivaram-me a permanecer em pé durante 15 minutos.

Publicidade

Enquanto estive naquela cama vertical, senti as pernas mais pesadas que nunca. O pulso acelerou para 150 batidas cardíacas por minuto e comecei a sentir um formigueiro por toda a pele. Estava empapado em suor. O sangue começou a circular pelas pernas e a cobrir as veias. Senti que ia desmaiar. Desde o princípio esforcei-me por me manter em pé, mas era cada vez mais difícil. Quando passaram oito minutos, o pulso baixou de 150 a 70. Estava à beira do colapso. A minha visão começou a ficar turva e assim que o pessoal médico percebeu que os valores indicados nas máquinas estavam a descer, colocaram-me imediatamente na horizontal. Pouco depois confessaram que nenhum dos sujeitos do estudo tinha conseguido permanecer em pé durante os tais 15 minutos.


Vê: "Podem as terapias alternativas salvar-nos a vida?"


A reacção do meu corpo era absolutamente normal. Depois de passar 70 dias inclinado num determinado ângulo, tinha perdido cerca de 20 por cento do volume sanguíneo. Permanecer de pé, depois daquele tempo, simulava os efeitos que o sistema cardiovascular dos astronautas experimentam quando a sua nave entra na atmosfera da Terra ou de Marte.

A primeira vez que expliquei a minha experiência no estudo, estava em plena fase de lua de mel: apesar de haver um desfile constante de investigadores a picar-me e a testar-me, foi um dos períodos mais relaxantes da minha vida de adulto. Passei muitos anos apressado. Ou eram os exames da universidade, ou a evolução no trabalho, ou cumprir com obrigações sociais. E, de repente, toda a pressa desapareceu. Para além da minha obrigação de seguir com o protocolo do programa, não tinha qualquer outra responsabilidade. Era livre de fazer o que quisesse, sempre que não implicasse abandonar a cama, comer algum petisco ou fazer uma sesta. Às vezes passava o dia inteiro a ler. Outros dias falava ao telefone durante horas com os meus amigos e familiares. Passei horas incontáveis a fazer mudanças na minha equipa de Fantasy Football e a jogar StarCraft2. Por vezes limitava-me a descansar, reflectindo sobre o passado, planificando o futuro e disfrutando da qualidade do momento. Apreciava bastante estas oportunidade que o isolamento me oferecia, mas, o que é novidade, eventualmente, deixa de o ser.

Publicidade

As oito semanas que se seguiram foram o oposto do período anterior. Os dias eram marcados pela comida, o exercício, as leituras dos sinais vitais e uma ou outra prova isolada. Fora disso, a maior parte do tempo era vazio. Até as provas se tornaram rotineiras e monótonas: pediam-me frequentemente que ficasse totalmente imóvel enquanto recebiam dados. Uma máquina de RMN media o crescimento e a deterioração dos músculos e com um equipamento de raio X mediam a minha densidade óssea. Com uma espécie de borbulha de plástico captavam dados sobre a minha capacidade respiratória. Passava longos períodos de tempo sozinho com os meus pensamentos, observando um tecto feito de placas de esferovite.

Na quarta semana percebi uma alteração psicológica significativa. Estava habituado ao meu estado de isolamento social. Comecei por escrever cada vez menos e-mails aos meus amigos, as conversas com os trabalhadores do centro eram cada vez mais curtas e práticas. Também reduzi o número de chamadas telefónicas, porque não tinha grande coisa que contar.

"Olá, Drew! O que é que contas?".

"Nada de especial. Continuo de cama…".

No entanto, passava os dias totalmente despreocupado. Ao fim e ao cabo, continuava a cagar para um bacio. Só que, por vezes, era assaltado pelo medo e pela angústia e tinha a certeza de estar à beira de uma crise mental. Como iria suportar ficar deitado numa cama mais 10 semanas?

nasa-patient-8179-200-body-image-1423088032

A dada altura, o que me provocava mais ansiedade era a visita da minha namorada. Eu estava plenamente consciente do meu estado mental alterado e tinha a certeza do meu horrível aspecto, embora não visse um espelho há mais de um mês. "Como seria o nosso encontro, se nem sequer podia mover-me para cumprimentá-la? Seria capaz de manter uma conversa longa após tantas horas isolado? Como reagiria ela, quando me visse naquele estado, distante, vulnerável e tão dependente? Não pude evitar um par de lágrimas. Nem sequer poderia reconfortá-la.

Publicidade

Assim que entrou no quarto, saltou para a cama, abraçou-me e beijou-me. Uma enfermeira interrompeu um momento para nos informar que a minha namorada não podia estar na cama, em nenhum momento. Nem sequer podia tocar na cama "por razões de segurança". Esperámos tanto por aquele momento e nunca imaginámos que fosse assim.

Sentou-se numa cadeira junto a mim e estivemos à conversa durante muito tempo. O contacto físico era limitado. Não podíamos sair juntos, nem explorar a cidade. Nem sequer podíamos partilhar a comida, já que os visitantes não podiam trazer comida do exterior. Quando começaram a apagar as luzes, a minha namorada voltou para o hotel, onde dormiria sozinha. Era como uma anedota cruel que nos recordava a ambos tudo o que estávamos a perder. O pior é que também serviu para me tirar do estado meditativo e despertou em mim o desejo de recuperar a minha vida fora daquelas paredes. Esta foi a última interacção real com outra pessoa até mais dois meses depois.

nasa-patient-8179-200-body-image-1423087855

As semanas seguintes passaram sem qualquer detalhe que valha a pena mencionar. Comecei a perder a noção dos dias. Evitei contar o tempo que faltava. Em vez disso, media o tempo da minha estadia consoante o grau de sensibilidade perante as pequenas frustrações diárias, que pouco a pouco iam danificando a minha mente. Porque é que tinha de beber água por um copo normal sabendo que, devido à inclinação da minha cama, acabaria por entorná-la pelo peito e pela mesa? Porque é que serviam a sopa em pratos rasos? Para começar, porque é que serviam sopa a pessoas que estavam na cama? Alguma das pessoas que ali trabalhavam era consciente do que é estar deitado numa cama?

Publicidade

A quinta vez que me serviram um bocado de peixe aquecido no microondas, perguntei se havia outra opção, outra coisa qualquer. Durante as reuniões de orientação, garantiram-nos que fariam o possível por satisfazer todas as minhas preferências, mas a resposta da dietista limitou-se a um amável pedido de desculpas e uma explicação que se resumia a que todos os pacientes deveriam manter uma dieta uniforme. Perguntei se podia substituir os cereais secos por aveia e, uma vez mais, a resposta foi negativa. Tudo o que consegui foi a inclusão de pimenta preta na comida.

Mais ou menos na sétima semana, os outros participantes no estudo CFT 70 tinham chegado ao fim da sua estadia. Felicitei-os antes de saírem, embora tenhamos estados todos demasiado isolados para que pudesse realmente notar a sua ausência. Agora que já não estavam, eu era o último objecto de estudo no centro.

nasa-patient-8179-200-body-image-1423088062

Durante a recta final, forcei-me a pensar em tudo o que poderia retirar daqueles 70 dias. Tinha lido centenas de páginas, meditado com regularidade, tinha redescoberto a minha paixão pelos jogos de computador, era um craque no Fantasy Football. E, sobretudo, ia rechear a minha conta bancária com quase 18 mil dólares. De maneira que, depois de 10 semanas encontrava-me em bom estado anímico e saudável… até me pedirem para ficar na posição vertical, de pé.

Tive que continuar deitado até ao dia seguinte. Nessa manhã amarraram-me a uma maca e levaram-me ao Johnson Space Center para realizar a primeira de quatro provas. Enquanto cruzava as portas automáticas, empurrado numa cadeira de rodas, senti na pele os primeiros raios de sol em mais de dois meses. Finalmente podia ver algo de diferente das paredes brancas do hospital. Não pude disfarçar o sorriso que se desenhava no meu rosto. Este tipo de privações fez com que pudesse apreciar os simples prazeres que o Mundo nos oferece.

Publicidade

Voltei a passar por uma enorme quantidade de provas às quais tinha sido submetido antes de iniciar o estudo: correr por labirintos, saltar, realizar exercícios de coordenação, provas de equilíbrio e medição da força das pernas e dos braços. E, como não podia deixar de ser, a "prova do impulso muscular", também conhecida como "descarga eléctrica na perna". Mas, desta vez, o medo que sentia durante as provas anteriores foi substituído pela expectativa. Já conseguia ver a meta. Cada descarga eléctrica aproximava-me da liberdade. Estava a apenas duas semanas de completar a minha estadia de 108 dias.

nasa-patient-8179-200-body-image-1423087370

No caminho para as instalações das provas, cumprimentaram-me muitas caras conhecidas e desconhecidas. Tinham aparecido muitos investigadores para presenciar os últimos passos do último participante do projecto CFT 70. Estava nervoso, evidentemente, mas acho que muitos deles estavam ainda mais emocionados que eu. O estudo tinha consumido três meses da minha vida, mas eles tinham dedicado quatro anos das suas vidas à investigação. Era um momento importante para todos os que ali estavam.

Rodeado pelos funcionários do centro e de frente para o meu público, saí da maca e coloquei os pés no chão. Senti um formigueiro, como se estivessem adormecidos. Apesar da força nas pernas, tinha dificuldade em manter o equilíbrio. Os primeiros passos foram curtos e arrastados e, de cada vez que avançava um pé, batia com o tornozelo no outro. Os meses que tinha passado na cama tinham diminuído a minha capacidade de coordenação. Notei algumas pontadas de dor nos tornozelos e nos pés, enquanto contornava os obstáculos do circuito. Ainda assim, mesmo sem conseguir caminhar em linha recta, completei todas as provas sem grande dificuldade.

Publicidade

Com mais uns dias de passeios e exercícios, o meu equilíbrio voltou e a minha resistência também. No final da segunda semana do período pós-cama, já me sentia fisicamente normal a 95 por cento. Estava pronto. Ao 108º dia fiz as malas e pus-me a pensar em tudo o que me esperava do lado de lá das paredes do hospital. no caminho para o aeroporto iria comer um burrito para pequeno-almoço, se calhar até um Bloody Mary. Estava a momentos de comer algo delicioso, beber algo maravilhoso, do sol e da minha namorada.

Despedi-me de todo o staff e agradeci-lhes profusamente. Apesar das minhas queixas, a equipa era composta de pessoas muito generosas, que tinham desenhado e executado de forma inteligente um feito maior. Estava verdadeiramente agradecido pelo seu foco, trabalho árduo e apoio.

Com 18 mil dólares depositados na minha conta bancária, uma agenda sem comprimissos e liberdade, senti-me como não me sentia há muitos anos. Não estava arrependido de nada. Portanto, enquanto bebia o meu Bloody Mary a preço de aeroporto, dei por mim a procurar outros estudos de investigação. Havia um em que infectavam os participantes com uma nova estirpe de gripe, em que pagavam quatro mil dólares por 10 dias… Quem é que diz que não poderia voltar a fazer tudo outra vez?


Segue o Andrew Iwanicki no Twitter e no Instagram.

Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.