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Desporto

O Brian Clough foi mesmo o melhor treinador que a Inglaterra nunca teve

Ao pé dele, o José Mourinho era apenas "confiante".

Como pode um treinador ser um “grande”? Bem, pode seguir a via mais fácil, que é montar uma equipa com a dose certa de génios da técnica com a habilidade para resolver as equações de Navier-Stokes enquanto rasgam uma defesa italiana, juntamente com meia dúzia de verdugos zelando pela aplicação prática do lema mussoliniano “Vitória ou Morte” e um guarda-redes decente. Pode também elevar a fasquia e dedicar-se a tentar ensinar um plantel de vinte estivadores a fazer três passes seguidos ao final de uma semana e, se possível, salvá-los da mais que certa descida de divisão ao final de dois meses. Mas há ainda uma terceira espécie de treinador: aquele que, com o plantel de estivadores, atropela as equipas perfeitas e lhe rouba todas as glórias, suas por direito. Falemos um dos treinadores que pertencem a essa estirpe.

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Apesar de gozar da notoriedade de grande goleador dos campos de batatas do campeonato inglês nas décadas de 50 e 60, a carreira de Brian Clough como treinador começou, tal como tantas outras, pelas tortuosas divisões inferiores do futebol britânico. Após uma breve passagem pelo Hartlepool Utd, Clough é contratado pelo Derby County, clube demasiado habituado a vegetar pela segunda divisão nacional. Mal chega a Derby, juntamente com o adjunto/olheiro Peter Taylor, faz uma pequena revolução: contrata uma data de desconhecidos escolhidos a dedo pelo perspicaz Taylor, dispensa onze jogadores e trata também de despachar duas

tea ladies

do clube por se rirem de uma derrota da equipa. A operação deu bom resultado: ao fim de duas épocas, consegue colocar o Derby nos lugares de promoção à primeira divisão.

Apanhado entre o fogo cerrado da tremenda competitividade da divisão de elite, o Derby vai aguentando-se em posições respeitáveis, ao mesmo tempo que faz por debelar os seus problemas financeiros. E em 71-72, após uma época a lutar taco-a-taco com cada um dos candidatos ao título nacional, a equipa cumpre o último jogo do calendário e parte de férias ocupando o primeiro posto e à espera que Leeds Utd e Liverpool não vençam os seus jogos. Já em Palma de Maiorca, a má qualidade das comunicações com a velha Inglaterra impede-os de saber se, afinal, são ou não campeões. Mas hão-de suspeitar que sim, quando, no dia seguinte, virem o hotel espanhol inundado por jornalistas.

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A cavalgada de Brian Clough até à glória do campeonato não se faz de mansinho. Bem pelo contrário. Clough é já uma figura com um incomensurável impacto mediático e sabe manejar muito bem a imprensa. É o convidado favorito dos programas de televisão, porque, perante o ataque permanente de questões e provocações, consegue manter um à-vontade sobre-humano. Adora a pressão. E ilustra essas frequentes aparições em frente às câmaras com um infindável catálogo de insultos e

one-liners

com entrada directa para o cânone (ou, como diria Toni, para “os canhenhos”) das grandes “bocas” do futebol. Um exemplo: o que faz um treinador quando um jogador discorda das suas opções? “Bem, eu pergunto-lhe de que maneira ele acha que se deve fazer, falamos sobre isso durante 20 minutos e depois decidimos que eu tinha razão”. E quando se meteu com o Muhammad Ali?

O

chairman

do Derby nunca suportou o ego de Clough e as relações entre ambos inquinariam em menos de um ano. No desemprego, até tinha mais tempo para os media. Mas quem fala publicamente com tal desprendimento, rapidamente haveria de encontrar inimigos. Uma das presas favoritas dos seus comentários incisivos era o Leeds Utd, que era, à data, uma das forças dominantes do futebol inglês e era orientado pelo incontestabilíssimo Don Revie. O Leeds era aquilo que a gíria futebolística benevolente haverá de descrever como uma equipa “aguerrida”. Não, era uma equipa de valentes caceteiros e de, dizem, alguns fiteiros particularmente irritantes. Revie era o líder espiritual desse futebol embrutecido, mas eficaz. Já Clough representava o contrário — era o último reduto romântico do futebol atraente e leal, o do futebol jogado “da maneira certa”, com a bola no pé e a rolar pelo chão, porque “se Deus quisesse que o futebol fosse jogado nas nuvens, não teria colocado a relva no chão”.

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As polémicas entre ambos não foram caso único, uma vez que Clough também trocou umas cacetadas com os não menos intocáveis Matt Busby e Alf Ramsey, mas com Don Revie o ódio, que já não era recente, conseguia ser bastante primário e obsessivo. Só isso pode explicar que, após a federação promover Revie a seleccionador nacional inglês, o ex-treinador do Derby tenha aceitado tomar o comando do próprio Leeds. Fê-lo porque, imagine-se, queria superar Revie usando a sua própria (ex-)equipa. Está claro que nunca conseguiria segurar o balneário que durante tanto tempo criticou. A piada durou pouco e o despedimento chegou ao 44º dia. Talvez não tenha ajudado o modo como se apresentou ao balneário: “Podeis atirar as vossas medalhas todas ao lixo, porque foram ganhas com batotice” (o original cheating é mais forte). A passagem pelo Leeds viria a ser

romanceada

, inclusive. Depois veio

o filme

, que, sendo de futebol, também conseguiu ser bom.

Foi uma das fases mais críticas da carreira. Fora

humilhado por Don Revie em plena televisão

, estava desacreditado e de costas voltadas para Peter Taylor, o seu companheiro de sempre, que não o acompanhou em Leeds. É certo que não há treinador que consiga fugir permanentemente ao fantasma do fracasso e do enxovalhamento, mas o falhanço parecia tão maior quanto o ego de Clough. O quão inchado poderia ser o melão de Clough naqueles dias? Bobby Robson, na sua autobiografia, faz as medidas: “Era dogmático, autocrático, poderoso. A sua personalidade entranhava-se nas pessoas.” Mais? “Ele era arrogante, disso não há dúvidas, não era como José Mourinho, que é, simplesmente, auto-confiante” – sim, “simplesmente auto-confiante”, em comparação. Quando assim é, há-de doer muito mais.

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Enquanto jogador, uma lesão grave pôs um fim abrupto à sua carreira. Parecia, a dada altura, que uma permanente maldição de irrealização haveria de o perseguir para sempre. Todas aquelas ganas contidas precisavam de um tubo de escape. A resposta surgiria dali a uns meses. No início de 1975 pega no Nottingham Forest (rivais clássicos do Derby), um barco sem rumo, perdido no fundo da segunda divisão. No ano seguinte convence Peter Taylor a reformar a velha dupla de sucesso e repete a fórmula: contrata toda aquela trupe de jogadores-fetiche que arrastou para todos os clubes por onde andou. E então começa a operar-se o famoso milagre do Nottingham, de que qualquer bom adepto de futebol já ouviu falar. Em 77 vence a segunda divisão e no ano seguinte sagra-se campeão inglês. Em 79 ganha a Taça dos Campeões Europeus e na época seguinte repete o feito. Isto sem contar com todas as taças internas que foi aviando. Foi assim que um bando de misfits se tornou na melhor equipa do continente. Agora diz-me, continuas a achar-te um fora-de-série por levar o Desportivo de Monção à Taça UEFA no Football Manager?

Clough nunca mais mudou de clube. Permaneceu no Nottingham até à reforma, somando mais umas quantas taças internas, também muito prejudicado pelo banimento das equipas inglesas das competições europeias (devido aos desastres de Heysel ou Hillsborough). Em 1993, no seu último ano, não evita a despromoção. E o clube cai num coma do qual ainda não acordou. É uma autêntica ave-rara entre todos os clubes campeões europeus: tem menos campeonatos nacionais do que continentais.

Clough foi sempre o “próximo seleccionador de Inglaterra”, mas nunca recebeu o convite. A federação temia-o pelo seu carácter. E talvez o habitual clima doentio e decadente da selecção não se coadunasse com o seu carácter. A equipa inglesa é e quase sempre foi um saco de gatos. Clough não o toleraria. Bem que o tentou, em 1977, mas a federação não lhe fez caso. Quando o seu amigo Bobby Robson foi seleccionador, e enquanto todos tentavam fazer a cama ao sir, o rumor também perdurou alguns tempos. Não deu em nada. Tornou-se, parafraseando o documentário que a BBC lhe dedicou, no “Melhor Manager que a Inglaterra nunca teve”.

Brian nunca escondeu a enorme decepção de nunca ter orientado a equipa dos melhores de Inglaterra. Volta e meia, aliviava um pouco dessa azia através de óptimas e intemporais arrochadas. Sobre a federação inglesa: “Tenho a certeza que eles acharam que, caso me dessem o emprego, eu quereria mandar naquilo. E foram astutos, porque teria sido exactamente isso que eu teria feito.” Sobre Sven-Goran Eriksson: “Pelo menos escolheram um treinador que fala melhor inglês do que os jogadores.” Mas as voltas que o mundo dá: o seu filho, Nigel Clough, abandonou o seu posto como treinador do — adivinhem — Derby County no passado mês de Setembro, após uma derrota contra o — adivinhem outra vez — Nottingham Forest. Quem foi chamado para o seu lugar? Steve MacLaren, indiscutivelmente um dos piores selecionadores que o país teve nos últimos anos.

Morreu com graves problemas de saúde devidos ao consumo abusivo de álcool. Todas as últimas declarações públicas corroboram os traços mais conhecidos da sua figura: a inconveniência e a impertinência, um não-tão-vago desprezo anti-autoritário e anti-académico — “Os jogadores é que perdem jogos e não as tácticas” —, um ódio a todos os tecnocratas do futebol actual, com certeza. A propósito, como se dirá “Clough” lá para os lados da Vestefália? Klopp?