O que há por trás do programa de privatização em SP?

FYI.

This story is over 5 years old.

reportagem

O que há por trás do programa de privatização em SP?

Secretário da pasta da Desprivatização explica o plano da prefeitura e analistas falam dos possíveis desdobramentos do programa.

Foto: Caio Pimenta/SPTuris

Quase um mês após a prefeitura de São Paulo divulgar um vídeo narrado em inglês anunciando o "maior programa de privatização de sua história", em que coloca à disposição de investidores estrangeiros o autódromo de Interlagos, o Mercado Municipal e até mesmo os serviços funerários, governo e especialistas encontram lacunas no projeto que, segundo o secretário de Desestatização, Wilson Poit, deverá ser lançado ainda no primeiro semestre de 2017.

Publicidade

Poit, que já foi diretor da SPTuris e da SP Negócios (empresa de economia mista criada na gestão Haddad), comanda hoje a pasta de Desestatização e Parcerias, criada via decreto por João Dória (PSDB) no primeiro dia de mandato do novo prefeito da capital. A nova secretaria tem como primeiro desafio a concessão e privatização de mais de 50 itens da prefeitura. "Esta secretaria busca tirar o atraso da cidade", comenta o secretário, seguro da necessidade do programa.

Especialistas a favor e contra políticas de venda e concessão de bens públicos criticam a falta de informações sobre o modelo a ser adotado pelo programa de privatização do governo municipal paulistano.

Jorge Felix, mestre em economia e professor da Fesp (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo) se diz preocupado que a prefeitura não tenha justificado à sociedade a necessidade de vender o complexo do Anhembi e Interlagos. Os dois equipamentos, segundo Poit, serão os únicos integralmente entregues à iniciativa privada.

O Anhembi e o autódromo de Interlagos são geridos, hoje, pela SPTuris, empresa de capital misto da qual a prefeitura detém 97,6% das ações. A SPTuris diz não saber se Interlagos e Anhembi apresentam lucro ou prejuízo, alegando que o balanço financeiro é feito pela empresa como um todo. O balancete de setembro de 2015, divulgado no site da companhia, mostra que, contando com o GP Brasil de Fórmula 1, Interlagos apresentou geração de caixa naquele ano, apesar do prejuízo recorde da empresa.

Publicidade

A nova secretaria de Desestatização tem como primeiro desafio a concessão e privatização de mais de 50 itens da prefeitura.

Para Flávio Gomes, jornalista especializado em automobilismo, não deverá haver interessados em Interlagos. "Um autódromo não gera tanto lucro", diz ele, que critica a comparação feita pelo prefeito João Doria entre Interlagos e o autódromo de Yas Marina, em Abu Dhabi. "O investimento estatal feito por lá não se compara com nenhum lugar do mundo", contesta Gomes, destacando a interferência dos sheiks por uma prova da Fórmula 1 nos Emirados Árabes. Nesta quarta-feira (15) o prefeito João Doria recebeu uma comitiva de Abu Dhabi que estaria interessada em olhar o autódromo mais de perto.

Na última quarta (15), o prefeito João Doria recebeu uma comitiva de Abu Dhabi que estaria interessada em olhar o autódromo mais de perto.  O secretário Wilson Poit também explicou como seria a privatização de Interlagos. "O modelo inicial pensado é que seja mantida a pista e ainda há potencial construtivo para hotéis, museu, em algumas áreas" revelou, garantindo que não serão construídos edifícios na beira da pista e que o kartódromo deverá ser mantido e até reformado. A gerência do autódromo sinaliza, porém, que não há áreas pertencentes a Interlagos fora do perímetro da pista, com exceção do lago próximo à curva homônima.

fonte: Googlemaps

Bilhete Único

Outro ponto do anúncio do programa de privatizações deixou em alerta ativistas de segurança e privacidade nas redes: a oferta do banco de dados do Bilhete Único. O Roadshow da prefeitura a Abu Dhabi sugere a venda dos dados pessoais e de deslocamento das 15 milhões de pessoas cadastradas como usuários do Bilhete Único a empresas estrangeiras interessadas.

Em sua coluna do jornal Folha de S. Paulo, Ronaldo Lemos, representante do MIT Media Lab no Brasil, afirma que um negócio desta natureza seria ilegal. Segundo ele, pelo Marco Civil da internet, a coleta de dados pessoais no Brasil deve atender a alguns requisitos, como a obtenção do consentimento livre, expresso e informado, além de estas informações só poderem ser usadas para os fins que justificaram sua coleta (no caso, transporte urbano). Nenhum desses precedentes seria observado na transação proposta pela prefeitura, aponta Lemos.

Publicidade

O secretário Poit aponta, no entanto, que o tema já foi estudado, e garante a legalidade do processo. "Cada usuário poderá liberar ou não seus dados pessoais na medida que o concessionário faça uma contrapartida. Se o usuário optar pela troca do bilhete por outro com benefícios, como serviço de débito ou crédito, deverá fornecer estes dados pessoais. Se quiser manter o bilhete único como ele é hoje, os dados não serão repassados", explica.

"A economia de dados é um grande mercado; se essa venda [do Bilhete Único] for feita em São Paulo, acabará sendo replicada em todo Brasil" — Antonio Arles

Antonio Arles, ativista de segurança na rede da ONG Actantes, demonstra preocupação de que a SPTrans tenha que pagar para ter acesso aos dados de mobilidade, o que Poit garante que não irá ocorrer. "Não vamos abrir mão do controle da movimentação de gente na cidade. É muito importante para melhorar o sistema de mobilidade urbana de São Paulo. No edital vamos deixar claro que queremos ter um centro de controle com acesso a estes dados."

Arles ressalta, porém, que nenhuma empresa estaria interessada num banco de dados sem a possibilidade de grandes lucros — o que é confirmado pela importância dada por Dória para esta concessão — e que a operação pode se tornar uma tendência. "A economia de dados é um grande mercado; se essa venda for feita em São Paulo, acabará sendo replicada em todo Brasil", diz o ativista.

Publicidade

"A privacidade dos 15 milhões de usuários [do Bilhete Único] estaria ameaçada, e isto teria implicações além das imaginadas", explica Arles, citando o vídeo com mais de 750 mil visualizações no qual a jornalista e ativista espanhola Marta Peirano relata o caso da Holanda, que no início do século 20 coletou informações sobre a religião de seus cidadãos e estes dados acabaram como ferramenta do holocausto quando Hitler invadiu o país.

Venda ou concessão?

Outra novidade apontada pelo secretário da Desestatização é a criação de um fundo de investimentos para a cidade onde serão depositados os recursos obtidos com o chamado plano municipal de desestatização. "Todo dinheiro que vier destas concessões, privatizações, PPPs e desonerações vai para este fundo de investimento: um dinheiro que será 'carimbado' e jamais será colocado no mesmo caixa da prefeitura. É dinheiro que vai para educação e saúde, em primeiro lugar, e também para habitação, segurança urbana e mobilidade urbana", explica Poit.

Joel da Fonseca, economista e articulista, é um defensor da liberalização do Estado . Para ele, a nova gestão municipal merece um voto de confiança por, segundo ele, trazer uma nova visão de gestão. Segundo Joel, aqueles desconfiados deveriam aceitar a proposta como um experimento. "Privatizações precisam ser debatidas de modo prático, não ao nível de princípios", defende. Mas completa que "o diabo mora nos detalhes. Um processo mal feito pode ser muito contraproducente".

Publicidade

O economista e pesquisador de políticas públicas da FGV Marcos Fernandes também defende que a prefeitura ocupe-se somente do essencial: creches, o atendimento social à população mais necessitada e a zeladoria. No entanto, se diz preocupado com a relação do atual prefeito com empresas. "No setor público, doações não podem ser objeto de barganha; as empresas precisam saber que é algo de mão única, e que a Prefeitura não deve nada. O João Doria precisa ter mais consciência disto nessas redes de relacionamento privadas", afirma.

Fernandes defende que haja equilíbrio entre a rentabilidade das empresas que venham a participar do processo e o acesso do público aos equipamentos urbanos, visão compartilhada com o ex-vereador petista e professor de urbanismo da USP Nabil Bonduki, e que Wilson Poit diz também se preocupar.

"Me parece mais uma ação de marketing pessoal do prefeito, para mostrar uma visão privatista de gestão." — Nabil Bonduki

"Isso é uma preocupação muito grande nossa: que seja muito bom para a população, melhor do que hoje e sem aumentar custos; que seja bom para o governo municipal, que poderá priorizar, redirecionar; e que seja bom para o parceiro privado, senão ele desiste. Vamos criar modos de fiscalizar o serviço e atrelar isso à concessão. O valor dessa fiscalização pode ser embutido no próprio contrato", afirma Poit.

Bonduki e Fonseca também se posicionam contra a venda direta de Interlagos e o Anhembi. "A concessão de alguns espaços por um período de tempo, com a contrapartida de que sejam feitos investimentos de modernização que fiquem como herança para a cidade, é mais interessante", defende o urbanista.

Entre pontos indefinidos e polêmicas, a maioria dos especialistas ouvidos pela reportagem dúvida que o programa seja levado adiante de modo integral. "Qualquer alienação de patrimônio público deve passar pela aprovação da Câmara e de outros atores, como o MP, o que dificulta o processo", explica Bonduki, que completa: "Me parece mais uma ação de marketing pessoal do prefeito, para mostrar uma visão privatista de gestão."

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.