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Música

Kanye West: Retrato do Monstro Enquanto Jovem Obra de Arte

O jornalista musical Kirk Walker Graves introduz o álbum de 2010 de Kanye West, 'My Beautiful Dark Twisted Fantasy' e explica como o disco é histórico, mesmo com apenas 4 anos de idade.

33⅓ é uma série inglesa de livros dedicados aos discos mais incríveis já feitos – um livro por disco, um autor por livro. Nos próximos meses, vamos publicar trechos desses ensaios aprofundados. Esta semana, Kirk Walker Graves, um jornalista musical que vive no Tennessee, introduz o álbum de 2010 de Kanye West, My Beautiful Dark Twisted Fantasy. Leia abaixo o Capítulo Um:

Escondida no meio de capas de tabloides e aparições em reality shows, no silêncio gélido entre tuítes, nos períodos de relativa calma que precedem novos ataques de histrionismo, perdida na estática cultural nociva que se agarra ao nome dele, sempre esteve a música – apesar de todos os esforços para nos distrair. E na primeira década do século 21, Kanye West criou o melhor – o mais consistentemente ambicioso e empolgante – som pop de todos os artistas norte-americanos, de hip hop ou outro estilo, da época. De "Through the Wire" – o primeiro single de seu LP de estreia de 2004 – até "Lost in the World", a penúltima faixa de My Beautiful Dark Twisted Fantasy (MBDTF) de 2010, mais desafio místico que canção pop – ele reivindicou sua posição como o primeiro visionário pop da era digital, um talento polivalente, um gênio intuitivo da colagem. Mais conhecido inicialmente como o produtor garoto prodígio de Jay Z na virada do milênio, com as batidas levadas por samples "chipmunk soul" em "Izzo (H.O.V.A)" e "Heart of the City (Ain't No Love)", a música de West agora ilumina o horizonte pop com um brilho gauche próprio.

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Por pura escala e brio visionário, MBDTF é a obra prima do rapper, o trabalho que contém a expressão mais completa possível de sua visão estética. O disco abre com uma canção de ninar declamada em inglês ruim pela rapper Nicki Minaj, e termina com uma pergunta implacável impossível de responder – "Who will survive in America?" – feita pelo falecido bluesologista Gil Scott-Heron, através de um sample de seu "Comment No. 1". Entre o começo e o fim são 68 minutos e 38 segundos de um circuito fechado de narcisismo, um bufê de delícias sonoras que mistura opulência rococó ("So Appalled") com ansiedade pornográfica ("Hell of a Life"), concepção de suicídio ("POWER") com sentimento de onipotência ("POWER"), humildade redentora ("All of the Lights") e ambição que arrisca tudo ("Monster"). O disco une samples disparatados num espírito de corajosa experimentação, incorporando rock progressivo num encadeamento aqui, metamorfoseando uma melodia pop de rádio em um gancho acolá. Cada música quebra com a intensidade de um episódio maníaco, empregando cada cor da paleta sonora para pintar uma fantasia pop sui generis. MBDTF é tamanho testemunho do poder do maximalismo norte-americano que é quase preciso procurar na literatura – em gigantes do século 20 como The Recognitions e Women and Men – uma analogia apropriada. Simplificando, o disco tem poucos pares na maneira como chuta as portas e entra para o cânone da música pop.

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Mas se a série 33 ⅓ é devotada a discos pop marcantes das últimas duas décadas, por que escrever um livro sobre um disco que tem menos de quatro anos? Quanta perspectiva é possível conseguir? Em termos humanos, uma criança normal de quatro anos tem poucas realizações concretas além de saber usar o vaso e um entendimento funcional do velcro. E sendo a música uma força tão vital, um fenômeno tão sinônimo da vida quanto a respiração, não deveríamos aplicar parâmetros de desenvolvimento para nosso julgamento de seu valor? Nenhuma pessoa sã tentaria avaliar o legado de uma criança de quatro anos. Para a maior parte da música que acabamos apreciando, nosso amor se emparelha à provação crucial do tempo. O passar dos anos traça os riscos da música na cultura, coloca nossa primeira impressão em julgamento no tribunal da evolução do gosto e da opinião popular. Ouvimos, digamos, "Hey Ya" na entrada antisséptica de uma loja de departamentos e nos sentimos passando através de uma década perdida, somos carregados de volta para o momento de alegria perversamente polimorfa que sentimos quando a ouvindo pela primeira vez. Um disco verdadeiramente incrível é um milagre de dupla resistência, florescendo no santuário sitiado do coração – vencendo as novas músicas na competição pelo nosso ardor – e simultaneamente persistindo ao tempo no funcionalismo bizantina do sucesso de crítica. Refletimos onde e quando um disco se torna mais que um disco, procurando o ponto onde o encanto da música colidiu com nossa própria suscetibilidade. Encontramos significado, profecia, validação e mistério nesses pontos de ligação. O tempo, então, lega a música à posteridade, cultivando o crescimento de uma democracia inter geracional, um mundo onde os avós de amanhã podem compartilhar com os netos o entusiasmo nascente por London Calling, Pet Sounds, The Chronic e In the Aeroplane Over the Sea.

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Então a questão permanece: Por que escrever um livro inteiro sobre um disco tão novo? MBDTF é uma dose concentrada de Kanye West, que, à sua própria maneira, é uma dose concentrada da ainda jovem era digital. Nossa época é um período de acesso instantâneo e sem precedentes a livros, filmes, moda e ideias. A maioria das músicas já gravadas está disponível para download ou streaming, a apenas alguns cliques de distância. O arco da carreira de West reflete essa onipresença digital como nenhum artista antes dele, a arte de seus samples é como uma consciência pop trans-histórica. E enquanto o cânone da música pop continua a se autocodificar, novas tecnologias facilitaram mais que nunca documentar e compartilhar infinitamente nossas obsessões e revelações. Blogs e agora aplicativos se tornaram casas de câmbio para o tipo de serendipidade que alojamentos estudantis e rádios universitárias costumavam fornecer. Kanye encarna nossa era de apetite insaciável por agregar – por incorporar tudo de uma vez – e MBDTF é o som operístico dessa insaciabilidade aplicada à música. Para promover o disco, lançado no final do verão de 2010, ele fez shows improvisados das novas faixas nas sedes do Facebook e do Twitter, onde acabou abrindo sua infame conta.

Há muitas outras razões para dedicar um livro inteiro a MBDTF. Mas poucas competem com o grande tema do disco, a saga da necessidade patológica de grandeza de seu criador. Mais que um panegírico do excesso ou uma celebração de seu narcisismo, MBDTF é uma anatomia espiritual de Kanye West. Ouça atentamente o disco e você vai descobrir que o conflito fundamental é entre um imperador menino e seu medo irracional do esquecimento. "My-Beatiful-Dark-Twisted-Fantasy" – diz isso em voz alta. Esse poderia ser o título de um ensaio escrito por um garoto vingativo da terceira série. O disco é o retrato de um gênio refém da ambição, da frustração e da insegurança, uma alegoria sobre arte como a única resposta válida para a crise emocional e o único modo autêntico de redenção. Se essa descrição soa pretensiosa demais para uma discussão sobre um astro pop, é porque West não é um astro pop comum. Na verdade, não está claro o que ele é exatamente, ou o que ele pode vir a se tornar. Em MBDTF ele parece ter mais afinidade com artistas plásticos como Matthew Barney e Sigmar Polke do que com Lil Wayne ou Prince.

Do elenco inchado de colaboradores, da tapeçaria polissêmica de samples inspirados e ganchos de tirar o fôlego, do desejo cobiçoso de seu criador de herdar o manto do Rei do Pop, da conscientização durante a produção dos desafios da carreira de West, até seu desejo gritante de soar diferente de tudo que veio antes, MBDTF é um monumento à busca por perfeição. Para críticos e fãs de todas as faixas demográficas, ouvir o disco uma vez foi o suficiente para confirmar seu status de clássico instantâneo – mais uma explosão de quasar do que um marco – mas, sem dúvida, um clássico.

Siga o Kirk Walker Graves no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor